19 de junho de 2014

Crônicas de ônibus (II)



Por Clênio Sierra de Alcântara



Fotos: do autor         Todos os registros que aparecem aqui foram feitos em diversos logradouros do bairro de Brasília Teimosa, zona sul do Recife



Embarquei no primeiro dos dois ônibus necessários para que eu chegasse ao meu local de trabalho e logo me acomodei na parte dos fundos do coletivo, que alguns passageiros chamam de cozinha. Em plena segunda-feira, e naquele horário, conseguir assento vago era um verdadeiro acontecimento.












Sentei, abri a bolsa e peguei o livro. Estava eu mergulhado nas páginas do meu Proust quando de repente irrompeu estrondoso, vindo de um aparelho no qual estava acoplado um pendrive, no colo de um rapaz sentado ao meu lado, a voz – o barulho, melhor dizendo – perturbador de uma cantora – nunca esquecerei estes versos tão lindos, quase baudelaireanos – que dizia assim: “Rapariga é você/ Mal amada? Não seja tola/ Ele não quer você..”.






O convívio social é um dos exercícios mais difíceis que nos cobra a existência. Porque afora as nossas idiossincrasias, gostos e vontades, nem sempre atendidos, temos – devemos – aprender a aceitar e a – existem pessoas que não gostam desta palavra que vou escrever já, já, porque, dizem elas, demonstra que se é e/ou se quer ser superior a alguém; como eu quero que o politicamente correto vá para as cucuias, eu a escrevo sem sentir remorso algum – tolerar – eis a palavra politicamente incorreta – as idiossincrasias, gostos e vontades de outrem. O pior dessa tarefa árdua de convivência é esbarrar justamente com indivíduos que, mal-educados, prepotentes e intolerantes – estão vendo? Eu não temo a patrulha -, querem impor suas idiossincrasias, gostos e vontades aos demais atores sociais.












Certamente porque deve ter chovido reclamações na central de atendimento ao usuário sobre episódios como aquele, o consórcio que administra o serviço de transporte público de passageiros da Região Metropolitana do Recife lançou uma campanha buscando sensibilizar e/ou despertar a consciência de indivíduos como aquela criatura que calhou de sentar junto a mim naquela manhã de segunda-feira, para fazerem uso de fones de ouvido quando quisessem apreciar suas músicas, de modo a não incomodar os demais ocupantes do coletivo. Foi tudo em vão. Alguém me disse que, como em muitas outras situações, adestrar animais exige tempo e paciência; imaginem seres humanos. Acredito piamente nisso. E tanto que, em momento algum, eu me mantive confiante de que aqueles cartazes da campanha desencadeariam uma mudança de comportamento. Continuaram os malcriados ligando seus aparelhos de som – caixa com pendrives e telefones celulares nas alturas, perturbando o sossego da viagem dos outros passageiros.
































































































Certa feita um jovem casal de evangélicos sentou-se bem à minha frente; e o rapaz logo pôs um repertório gospel para todo mundo ouvir, como se todos os que ali estavam verdadeiramente também quisessem apreciar aquela cantoria enfadonha. Dali a pouco a bateria do celular do nobre moço exauriu-se, pondo fim àquela cantilena; e ele comentou com um misto de aborrecimento e profecia: “Foi o inimigo [ o inimigo, vocês sabem, é o diabo] que fez isso”. E eu cá com os meus botões ateus dei uma risadinha marota dizendo: “Que inimigo providencial!”. 

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