25 de junho de 2014

Evocações de Edson Nery da Fonseca ou Nós que nos amávamos tanto


Por Clênio Sierra de Alcântara



[...] Duro e árido garimpo
do homem passado a limpo,
um livro publicado
é um homem revelado.

Tudo que sobrevive
no que no homem é livre
corpo do tempo, grifo
do que na carne é espírito.

              Interpretação de Edson Nery da Fonseca. Jaci Bezerra, Recife, 1993


Eu e Ernani Neves em almoço com Edson Nery da Fonseca, num restaurante em Olinda, um dia antes de o nosso mestre completar 89 anos de idade


O pregão soava alto na Rua de São Bento à noite: “Canjica! Pamonha! Milho cozido!". E Edson Nery da Fonseca me dizia: “Sierra, eu queria tanto comer milho cozido”. E lá ia eu chamar o vendedor a fim de pegar a iguaria para esse senhor que imprimiu à minha vida uma força e uma vibração que até então ela desconhecia.


Devo ao meu amigo Ernani Neves a oportunidade de ter sido apresentado a Edson. Foi Ernani, então estudante de Biblioteconomia, matéria sobre a qual Edson era uma das maiores referências em todo o país, quem me levou até a casa do seu mestre, para que eu o conhecesse pessoalmente, uma vez que eu apenas o conhecia a distância, lendo o que ele escrevia sobre Gilberto Freyre, uma das paixões que tínhamos em comum – as outras eram os gatos e os livros. Posso dizer, sem soar exagerado, que naquele dia eu experimentei uma das sensações mais maravilhosas de minha existência. E a partir daquele nosso encontro meu exercício intelectual tomou grande impulso, porque Edson Nery da Fonseca incutiu em mim uma dose absurda de comprometimento para com o ofício da intelectualidade, dando a sua trajetória pessoal como exemplo. Vendo o apego que passei a ter para com aquele homem, Ernani Neves certa feita me disse assim: “Pôxa, se eu soubesse que tu irias me deixar de lado para ficar com Edson, não teria de apresentado a ele”. Ciúme bobo.


Estar na companhia de Edson Nery da Fonseca era um grande privilégio. Homem de muitas vivências ele sempre tinha uma boa história para contar. Como era gostoso acompanhá-lo numa gargalhada. Como era prazeroso ouvi-lo dizer poemas como “Arte de amar”, do Manuel Bandeira, “Essa Negra Fulô”, do Jorge de Lima, e “Trem de Alagoas”, do imenso Ascenso Ferreira, poetas que ele conheceu pessoalmente. Costumava dizer que seu apreço por poesia se devia ao fato de não saber escrever versos.


Muitas vezes criticado por defender com unhas e dentes a vida e o legado intelectual de Gilberto Freyre, de quem foi amigo íntimo, Edson Nery da Fonseca rebatia as farpas ora com fina ironia, ora soltando o verbo. Talvez a maior das lições que ele me ensinou foi justamente esta: o intelectual deve ter coragem de dizer, mesmo que isso contrarie “panelinhas” – e no panorama cultural brasileiro existem muitas -, mesmo que o que se diga vá de encontro ao establishment, ao discurso corrente. Edson não era homem de meios termos: ou era isto ou era aquilo. Escrevia verdades inconvenientes que, claro, desagradavam todos aqueles habituados com afagos desmedidos. Num caso bastante emblemático, chegou a receber uma carta anônima, toda ela suja com fezes humanas, enviada por alguém que não gostou de um artigo que ele escreveu para um jornal a respeito da ocupação de determinado cargo. Ou foi sobre o resultado de uma premiação literária? Não lembro bem.


Houve um tempo em que sua condição de homossexual lhe perturbava tremendamente. E tanto que ele arquivava tudo que abordava a questão da homossexualidade: matérias de jornais e revistas, livros. Não era nada fácil para os de sua geração enfrentar de peito aberto o assunto, como se observa hoje. Assim foi que, só depois dos oitenta anos de idade, na ocasião em que escrevia seu livro de memórias Vão-se os dias e eu fico (São Paulo: Ateliê Editorial, 2009, p. 147-157), ele revelou publicamente sua homossexualidade, dedicando ao tema todo o capítulo “Por que não me casei”, contrariando o conselho do seu saudoso amigo Almir de Castro que com veemência lhe dizia: “Negue até morrer! Se o virem na cama com outro homem diga que foi prescrição médica”.


Recebi muitos puxões de orelha, reprimendas e reprovações de Edson Nery da Fonseca, principalmente quando o meu ser arredio e impetuoso me levava a agir de modo inconsequente. Ele falava com severidade para que eu me pusesse no meu lugar. É evidente que eu me sentia intimidado pela estatura intelectual dele. Além do que, a diferença de idade entre nós era enorme: mais de cinquenta anos. Às vezes ele fazia com que eu me sentisse intelectualmente menor do que eu sou, quando ironizava algo que eu falava e/ou escrevia.


De temperamento por vezes irascível a ponto de em algumas ocasiões tratar com rispidez até seus parentes mais próximos, Edson Nery da Fonseca era, por outro lado, de uma doçura incomparável. Ah, como somos uns imperfeitos! E era de um tipo que fazia graça de si mesmo dizendo: “Edson Nery da Fonseca: perna fina e bunda seca”.


Ressabiado com os inúmeros casos que vivenciara com rapazes que dele se aproximaram em busca de dinheiro, Edson Nery da Fonseca em dado momento acreditou que eu fosse mais um. Ele não queria crer que minha presença ao seu lado era por sede de conhecimento, era por admiração e por um bem-querer verdadeiro. E, aproveitando um desentendimento gerado por algo que escrevemos juntos e que ele depois me acusou de ter feito às ocultas para, segundo suas palavras, “me aproveitar de sua fama”, e alegando que eu também estava apegado demais a ele porque enxergava em sua pessoa a figura de um pai que sempre me faltou, me expulsou de sua casa. Ficamos um mês afastados um do outro. Ernani Neves intercedeu; e ele continuou me rejeitando. Até que um dia eu lhe telefonei dizendo que estava sentindo muito a sua falta e ele disse que também estava sentindo a minha. E nos reconciliamos. E ele por fim reconheceu a natureza dos meus sentimentos para consigo; e a partir de então passou a dizer que me amava.


Naquela casa, convivendo com Edson Nery da Fonseca em meio a livros e gatos, que eram tantos, fui conhecendo bem de perto o intelectual brilhante despido da imagem de figura pública influente e da personalidade de opiniões fortes temida por muitos, humanizada em pessoa comum. Comprazendo-se com coisas tão comezinhas como afagar a gata Daminha, a mais querida, no colo, deixando que ela ali dormisse o sono profundo e tranquilo dos que são muito amados; ou então aguardando a hora do Ângelus com o espírito todo ele voltado para a sacralidade exigida pelo instante. Rezar pelos pais e pelos irmãos que se foram. Rezar pelos amigos. Rezar pela vida que se pôde viver. Rezar pedindo compaixão pelos seus pecados.


Poucas semanas depois de termos sido apresentados, saímos para jantar num restaurante de Olinda: eu, ele, Ernani e Davidzinho. Por conta do episódio escrevi em homenagem a Edson, em 3 de dezembro de 2010, três dias antes do seu aniversário, os versos simples que se seguem e que eu nunca mostrei a ele:



Poema só para Edson Nery da Fonseca


Dizem que o amor pode tudo.
Naquela noite em que viste ternura no encontro de mãos,
recitaste – não, disseste – Bandeira e Pessoa sob a velocidade de toda
                                                                                                   [ juventude;
e alegraste o jantar dos recentes convivas
deixando um pouco de ti em cada um deles.

Quanta sabedoria eu enxergo nos teus olhos!
E também quanto sentimento de paz eu vejo em teu corpo.
O outono da vida enrijeceu teu tronco,
mas não tirou de ti a fortaleza do teu conhecimento frondoso;
não fez secar a seiva de tua boca;
e nem tampouco esterilizou as sementes das paixões que dispersaste.

Dizem que tudo pode o amor;
até fazer crer que o transcurso do tempo rejuvenesce o coração.
Edson, pensas agora somente na tua mais profunda reza;
e rogas por todos nós que te adoramos.


Dizia Sidney Smith que certos homens tinham dentro de si apenas um livro; e que outros tinham uma biblioteca. Era este o caso de Edson Nery da Fonseca, cuja vida, pode-se dizer, foi alicerçada por livros. Assim como o amigo Gilberto Freyre que, lá nos idos de 1922, escreveu que os amava voluptuosamente, Edson fez dos livros – e, por extensão, da difusão do conhecimento – a razão de ser de sua existência. Seu empenho em espalhar pelo país os fundamentos da Biblioteconomia e, por conseguinte, o estabelecimento de bibliotecas, constitui um dos capítulos mais admiráveis de sua trajetória de intelectual comprometido com o engrandecimento da sociedade, reconhecendo que isso não se dá por outra via que não seja pela formação educacional, pela leitura e pelo entendimento que cada indivíduo deve ter de seu papel como habitante de uma cidade, de um estado, de um país e de um mundo vasto e diverso.


Tendo aceitado os meus préstimos para levar adiante o projeto de um livro que estava parado havia dez anos, organizei para Edson Nery da Fonseca O grande sedutor – escritos sobre Gilberto Freyre de 1945 até hoje, que foi lançado pela Editora Cassará, do Rio de Janeiro, em 2011, na ocasião em que Edson completou noventa anos de idade. Dele eu organizei ainda Tentativas de interpretação, que deverá sair no mês que vem.


Em mais de uma ocasião eu agradeci a Edson Nery da Fonseca os ensinamentos que me repassou e a oportunidade, para mim grandiosa, de ver meu nome ligado ao dele em livros. Nesses instantes de gratidão eu também lhe dizia que lamentava muito o fato de só tê-lo conhecido na velhice e assim não ter podido desfrutar de mais momentos juntos com ele. Havíamos planejado, por exemplo, irmos a São Severino do Ramos, na cidade de Paudalho, um dos lugares da infância de Gilberto Freyre que ele não conhecia. Mas uma sucessividade de internamentos em hospital e sua consequente debilitação frustraram essa que seria uma viagem, creio eu, de muitas evocações.


Nos últimos dois anos acompanhei o meu velho Edson Nery da Fonseca entrar e sair do Real Hospital Português do Recife vencendo bravamente as doenças que afligiam seu corpo. Eu, que cheguei tão tarde à sua vida, fazia uma pequena festa dentro de mim a cada vez que o via se recuperar e se reerguer com olhos muito brilhantes à maneira de uma fênix ressurgindo das cinzas.


Na manhã do domingo passado, dia 22 de junho, a chama da vida se apagou e a destemida fênix não teve forças para se refazer. No instante eu que eu recebi a notícia do falecimento de Edson Nery da Fonseca mergulhei num vazio me perguntando como seria doravante meu caminhar sem ter a luz generosamente acesa dele como guia.


Colocar seu corpo no ataúde e velá-lo em sua casa, chorar as lágrimas da despedida com a mesma intensidade com que as estou derramando neste exato momento em que escrevo, e sepultá-lo na manhã da segunda-feira depois de acompanhá-lo numa missa no Mosteiro de São Bento, foi uma das experiências mais dolorosas de minha vida até aqui. Beijei-o pela última vez ao término da missa.


Edson Nery da Fonseca certa vez me disse que o que eu buscava nele era a presença de um pai que eu nunca tive. Pode ser. Vá lá que tenha sido por isso mesmo. Mas prefiro acreditar que continuei a buscá-lo como quem está à procura daquele inefável da vida que preenche o coração de uma possante felicidade.


Ah, meu velho Edson, eu acredito que o amor suporta todas as distâncias.


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