Por Clênio Sierra de Alcântara
[...]
Duro e árido garimpo
do
homem passado a limpo,
um
livro publicado
é um
homem revelado.
Tudo
que sobrevive
no
que no homem é livre
corpo
do tempo, grifo
do
que na carne é espírito.
Interpretação
de Edson Nery da Fonseca. Jaci Bezerra, Recife, 1993
Eu e Ernani Neves em almoço com Edson Nery da Fonseca, num restaurante em Olinda, um dia antes de o nosso mestre completar 89 anos de idade |
O pregão soava alto na Rua
de São Bento à noite: “Canjica! Pamonha! Milho cozido!". E Edson Nery da
Fonseca me dizia: “Sierra, eu queria tanto comer milho cozido”. E lá ia eu
chamar o vendedor a fim de pegar a iguaria para esse senhor que imprimiu à
minha vida uma força e uma vibração que até então ela desconhecia.
Devo ao meu amigo Ernani
Neves a oportunidade de ter sido apresentado a Edson. Foi Ernani, então
estudante de Biblioteconomia, matéria sobre a qual Edson era uma das maiores
referências em todo o país, quem me levou até a casa do seu mestre, para que eu
o conhecesse pessoalmente, uma vez que eu apenas o conhecia a distância, lendo
o que ele escrevia sobre Gilberto Freyre, uma das paixões que tínhamos em comum
– as outras eram os gatos e os livros. Posso dizer, sem soar exagerado, que
naquele dia eu experimentei uma das sensações mais maravilhosas de minha
existência. E a partir daquele nosso encontro meu exercício intelectual tomou
grande impulso, porque Edson Nery da Fonseca incutiu em mim uma dose absurda de
comprometimento para com o ofício da intelectualidade, dando a sua trajetória
pessoal como exemplo. Vendo o apego que passei a ter para com aquele homem,
Ernani Neves certa feita me disse assim: “Pôxa, se eu soubesse que tu irias me
deixar de lado para ficar com Edson, não teria de apresentado a ele”. Ciúme
bobo.
Estar na companhia de Edson
Nery da Fonseca era um grande privilégio. Homem de muitas vivências ele sempre
tinha uma boa história para contar. Como era gostoso acompanhá-lo numa
gargalhada. Como era prazeroso ouvi-lo dizer poemas como “Arte de amar”, do Manuel
Bandeira, “Essa Negra Fulô”, do Jorge de Lima, e “Trem de Alagoas”, do imenso Ascenso
Ferreira, poetas que ele conheceu pessoalmente. Costumava dizer que seu apreço
por poesia se devia ao fato de não saber escrever versos.
Muitas vezes criticado por
defender com unhas e dentes a vida e o legado intelectual de Gilberto Freyre,
de quem foi amigo íntimo, Edson Nery da Fonseca rebatia as farpas ora com fina
ironia, ora soltando o verbo. Talvez a maior das lições que ele me ensinou foi
justamente esta: o intelectual deve ter coragem de dizer, mesmo que isso
contrarie “panelinhas” – e no panorama cultural brasileiro existem muitas -,
mesmo que o que se diga vá de encontro ao establishment,
ao discurso corrente. Edson não era homem de meios termos: ou era isto ou era
aquilo. Escrevia verdades inconvenientes que, claro, desagradavam todos aqueles
habituados com afagos desmedidos. Num caso bastante emblemático, chegou a
receber uma carta anônima, toda ela suja com fezes humanas, enviada por alguém
que não gostou de um artigo que ele escreveu para um jornal a respeito da
ocupação de determinado cargo. Ou foi sobre o resultado de uma premiação
literária? Não lembro bem.
Houve um tempo em que sua
condição de homossexual lhe perturbava tremendamente. E tanto que ele arquivava
tudo que abordava a questão da homossexualidade: matérias de jornais e
revistas, livros. Não era nada fácil para os de sua geração enfrentar de peito
aberto o assunto, como se observa hoje. Assim foi que, só depois dos oitenta
anos de idade, na ocasião em que escrevia seu livro de memórias Vão-se os dias e eu fico (São Paulo:
Ateliê Editorial, 2009, p. 147-157), ele revelou publicamente sua
homossexualidade, dedicando ao tema todo o capítulo “Por que não me casei”,
contrariando o conselho do seu saudoso amigo Almir de Castro que com veemência
lhe dizia: “Negue até morrer! Se o virem na cama com outro homem diga que foi
prescrição médica”.
Recebi muitos puxões de
orelha, reprimendas e reprovações de Edson Nery da Fonseca, principalmente
quando o meu ser arredio e impetuoso me levava a agir de modo inconsequente.
Ele falava com severidade para que eu me pusesse no meu lugar. É evidente que
eu me sentia intimidado pela estatura intelectual dele. Além do que, a
diferença de idade entre nós era enorme: mais de cinquenta anos. Às vezes ele
fazia com que eu me sentisse intelectualmente menor do que eu sou, quando
ironizava algo que eu falava e/ou escrevia.
De temperamento por vezes
irascível a ponto de em algumas ocasiões tratar com rispidez até seus parentes
mais próximos, Edson Nery da Fonseca era, por outro lado, de uma doçura
incomparável. Ah, como somos uns imperfeitos! E era de um tipo que fazia graça
de si mesmo dizendo: “Edson Nery da Fonseca: perna fina e bunda seca”.
Ressabiado com os inúmeros
casos que vivenciara com rapazes que dele se aproximaram em busca de dinheiro,
Edson Nery da Fonseca em dado momento acreditou que eu fosse mais um. Ele não
queria crer que minha presença ao seu lado era por sede de conhecimento, era
por admiração e por um bem-querer verdadeiro. E, aproveitando um
desentendimento gerado por algo que escrevemos juntos e que ele depois me
acusou de ter feito às ocultas para, segundo suas palavras, “me aproveitar de
sua fama”, e alegando que eu também estava apegado demais a ele porque enxergava
em sua pessoa a figura de um pai que sempre me faltou, me expulsou de sua casa.
Ficamos um mês afastados um do outro. Ernani Neves intercedeu; e ele continuou
me rejeitando. Até que um dia eu lhe telefonei dizendo que estava sentindo
muito a sua falta e ele disse que também estava sentindo a minha. E nos
reconciliamos. E ele por fim reconheceu a natureza dos meus sentimentos para
consigo; e a partir de então passou a dizer que me amava.
Naquela casa, convivendo com
Edson Nery da Fonseca em meio a livros e gatos, que eram tantos, fui conhecendo
bem de perto o intelectual brilhante despido da imagem de figura pública
influente e da personalidade de opiniões fortes temida por muitos, humanizada
em pessoa comum. Comprazendo-se com coisas tão comezinhas como afagar a gata
Daminha, a mais querida, no colo, deixando que ela ali dormisse o sono profundo
e tranquilo dos que são muito amados; ou então aguardando a hora do Ângelus com o espírito todo ele voltado
para a sacralidade exigida pelo instante. Rezar pelos pais e pelos irmãos que
se foram. Rezar pelos amigos. Rezar pela vida que se pôde viver. Rezar pedindo
compaixão pelos seus pecados.
Poucas semanas depois de
termos sido apresentados, saímos para jantar num restaurante de Olinda: eu,
ele, Ernani e Davidzinho. Por conta do episódio escrevi em homenagem a Edson,
em 3 de dezembro de 2010, três dias antes do seu aniversário, os versos simples
que se seguem e que eu nunca mostrei a ele:
Poema
só para Edson Nery da Fonseca
Dizem
que o amor pode tudo.
Naquela
noite em que viste ternura no encontro de mãos,
recitaste
– não, disseste – Bandeira e Pessoa sob a velocidade de toda
[ juventude;
e
alegraste o jantar dos recentes convivas
deixando
um pouco de ti em cada um deles.
Quanta
sabedoria eu enxergo nos teus olhos!
E
também quanto sentimento de paz eu vejo em teu corpo.
O
outono da vida enrijeceu teu tronco,
mas
não tirou de ti a fortaleza do teu conhecimento frondoso;
não
fez secar a seiva de tua boca;
e
nem tampouco esterilizou as sementes das paixões que dispersaste.
Dizem
que tudo pode o amor;
até
fazer crer que o transcurso do tempo rejuvenesce o coração.
Edson, pensas agora somente na tua mais profunda reza;
e
rogas por todos nós que te adoramos.
Dizia Sidney Smith que
certos homens tinham dentro de si apenas um livro; e que outros tinham uma
biblioteca. Era este o caso de Edson Nery da Fonseca, cuja vida, pode-se dizer,
foi alicerçada por livros. Assim como o amigo Gilberto Freyre que, lá nos idos
de 1922, escreveu que os amava voluptuosamente, Edson fez dos livros – e, por
extensão, da difusão do conhecimento – a razão de ser de sua existência. Seu
empenho em espalhar pelo país os fundamentos da Biblioteconomia e, por
conseguinte, o estabelecimento de bibliotecas, constitui um dos capítulos mais
admiráveis de sua trajetória de intelectual comprometido com o engrandecimento
da sociedade, reconhecendo que isso não se dá por outra via que não seja pela formação
educacional, pela leitura e pelo entendimento que cada indivíduo deve ter de
seu papel como habitante de uma cidade, de um estado, de um país e de um mundo
vasto e diverso.
Tendo aceitado os meus
préstimos para levar adiante o projeto de um livro que estava parado havia dez
anos, organizei para Edson Nery da Fonseca O
grande sedutor – escritos sobre Gilberto Freyre de 1945 até hoje, que foi
lançado pela Editora Cassará, do Rio de Janeiro, em 2011, na ocasião em que
Edson completou noventa anos de idade. Dele eu organizei ainda Tentativas de interpretação, que deverá
sair no mês que vem.
Em mais de uma ocasião eu
agradeci a Edson Nery da Fonseca os ensinamentos que me repassou e a
oportunidade, para mim grandiosa, de ver meu nome ligado ao dele em livros.
Nesses instantes de gratidão eu também lhe dizia que lamentava muito o fato de
só tê-lo conhecido na velhice e assim não ter podido desfrutar de mais momentos
juntos com ele. Havíamos planejado, por exemplo, irmos a São Severino do Ramos,
na cidade de Paudalho, um dos lugares da infância de Gilberto Freyre que ele
não conhecia. Mas uma sucessividade de internamentos em hospital e sua
consequente debilitação frustraram essa que seria uma viagem, creio eu, de
muitas evocações.
Nos últimos dois anos acompanhei
o meu velho Edson Nery da Fonseca entrar e sair do Real Hospital Português do
Recife vencendo bravamente as doenças que afligiam seu corpo. Eu, que cheguei
tão tarde à sua vida, fazia uma pequena festa dentro de mim a cada vez que o
via se recuperar e se reerguer com olhos muito brilhantes à maneira de uma
fênix ressurgindo das cinzas.
Na manhã do domingo passado,
dia 22 de junho, a chama da vida se apagou e a destemida fênix não teve forças
para se refazer. No instante eu que eu recebi a notícia do falecimento de Edson
Nery da Fonseca mergulhei num vazio me perguntando como seria doravante meu
caminhar sem ter a luz generosamente acesa dele como guia.
Colocar seu corpo no ataúde
e velá-lo em sua casa, chorar as lágrimas da despedida com a mesma intensidade
com que as estou derramando neste exato momento em que escrevo, e sepultá-lo na
manhã da segunda-feira depois de acompanhá-lo numa missa no Mosteiro de São
Bento, foi uma das experiências mais dolorosas de minha vida até aqui. Beijei-o
pela última vez ao término da missa.
Edson Nery da Fonseca certa
vez me disse que o que eu buscava nele era a presença de um pai que eu nunca
tive. Pode ser. Vá lá que tenha sido por isso mesmo. Mas prefiro acreditar que
continuei a buscá-lo como quem está à procura daquele inefável da vida que
preenche o coração de uma possante felicidade.
Ah, meu velho Edson, eu
acredito que o amor suporta todas as distâncias.
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