Fotos: do autor Os registros fotográficos mostram a Igreja e o Convento do Carmo, no Recife |
Há
algo de muito preocupante e daninho numa sociedade que mantém desprezo para com
os vestígios materiais do seu passado. Não há dúvida de que idealizar o passado
é mais do que um grande equívoco. Contudo, deixar que o tempo destrua as marcas
concretas do passado é ser conivente com as forças da alienação e do atraso,
que enxergam o patrimônio histórico como algo que não deve ser preservado.
Com
uma ou outra ação pontual, que não passam de casos isolados e que não envolvem para
valer um número considerável de pessoas, de maneira geral não se vê, no Brasil,
movimentos da sociedade com pretensões à salvaguarda do patrimônio histórico
edificado. A fisionomia urbana das mais antigas cidades brasileiras que abrigam
tal patrimônio vai se deteriorando a olhos vistos e a comunidade que vive e/ou
circula com regularidade em seu entorno se mantém silenciosa e impassível, como
se não fosse com ela, como se a história que se arruína não dissesse respeito à
história do seu país e a dela própria.
À
medida que o patrimônio histórico edificado vai sumindo da paisagem urbana, o
cenário citadino vai perdendo pouco a pouco não apenas testemunhos sólidos de
sua história; mais do que isso, a cidade perde identidade, perde referenciais e
perde, sobretudo, memória.
A
memória de uma cidade não está evidentemente apenas em seus edifícios antigos,
em suas construções imponentes, em seu casario pitoresco; mas devemos ter em
conta que os prédios antigos de um dado lugar contêm, somente eles, uma parcela
bastante significativa dessa memória urbana. E por que é assim? Porque essas
construções são testemunhos da própria gênese da cidade; e figuram, por assim
dizer, como depositárias do espírito de um tempo.
Mesmo
que percorramos as cidades deste país na condição de – para fazer uso de uma
denominação que Mario de Andrade atribuiu a si próprio – turistas aprendizes,
haveremos de notar – e com profundo pesar – que o patrimônio histórico está
clamando por socorro urgentíssimo. Não são poucas as edificações históricas –
civis e religiosas – que apresentam variados níveis de degradação, chegando
algumas a estarem seriamente comprometidas. E muito do que nos é apresentado
como “preservado” foi alvo de alterações absurdas em decorrência tanto de pura
e simples vontade de mudar que tiveram os seus ditos cuidadores – o caso da
Igreja da Sé, em Olinda, é um exemplo disso -, como por restauros malfeitos.
Reportagem
publicada pelo jornal Folha de S. Paulo,
no último dia 27 de abril (Paulo Peixoto. “Só 2% das obras históricas são
recuperadas”. São Paulo, Folha de S.
Paulo, Cotidiano, 27 de abril de 2014, p. C4), deu uma medida da via-crúcis
que o patrimônio histórico no Brasil enfrenta desde sempre.
Lançado
em 2009, durante o governo de Luís Inácio Lula da Silva, e mantido no da sua
sucessora Dilma Rousseff, o Programa de Aceleração do Crescimento Cidades
Históricas, tido como “marco na conservação do patrimônio cultural no Brasil”,
ainda não foi efetivamente consolidado. Relançado no ano passado – e vale dizer
que o relançamento se deu sem que, desde 2009, nenhuma obra tivesse sido
executada -, o PAC Cidades Históricas é um retrato mais do que fiel de como o
descaso e a burocracia acarretam a deterioração do patrimônio histórico
edificado por este país a fora.
Em
2013 foram selecionadas quatrocentas e vinte e cinco ações de restauro em
quarenta e quatro cidades de vinte estados; e apenas nove – isso mesmo, somente
nove – saíram do papel e começaram a ser tocadas. E por que um número tão
ínfimo? De acordo com a reportagem de Paulo Peixoto, especialistas dizem que
isso se dá porque persistem velhos problemas da conservação do patrimônio
nestas paragens: burocracia e falta de mão de obra e de diálogo entre cidades,
estados e a União.
Diretor
do PAC Cidades Históricas no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (Iphan), Robson de Almeida afirmou que nem todas as ações do programa
tinham projetos prontos ou eram para início imediato; e que há propostas que
carecem de atualização o que, claro, requererá novos estudos. Ainda de acordo
com Robson de Almeida, “Nessa área, projetos se desatualizam rapidamente, por
degradação do bem ou alteração no uso”. Isso é o óbvio ululante, meu caro. O
tempo é implacável para com toda e qualquer edificação e, sobretudo, para com
aquelas que não têm manutenção constante. Basta, por exemplo, um pé-d’água para
transformar o que era uma simples goteira em algo maior, que pode comprometer
toda a cobertura de um prédio. Dia após dia os problemas só tendem a se
agravar; eles não vão ficar parados esperando solução; e quanto maior o estrago
a ser reparado, maior será, logicamente, a despesa do serviço de restauro.
Entre
os critérios exigidos para que se ingresse no PAC Cidades Históricas está o que
determina que a cidade deve possuir bens tombados em nível federal ou que sejam
patrimônio mundial, abrigar conjuntos com patrimônio em risco ou terem marcos
da ocupação do país.
No
Recife, por exemplo, a Igreja do Carmo, situada no bairro de Santo Antônio,
área central da cidade, está no aguardo de uma ação restauradora para os
elementos artísticos, o forro e a nave; e o Mercado de São José, localizado no
bairro homônimo e não muito distante daquela igreja, está à espera de uma
requalificação.
Quem
acompanha a trajetória das ações de salvaguarda do patrimônio histórico, no
Brasil, sabe que elas se deram de modo quase heroico. Décadas de empenho de
homens notáveis como Mario de Andrade, Rodrigo Mello Franco de Andrade, Aloisio
Magalhães e Airton Carvalho, embora tenham conseguido pôr o assunto “bens culturais”
na ordem do dia, não conseguiram – e não foi culpa deles; eles fizeram o que
estava ao seu alcance -, por outro lado, fazer com que as políticas de
preservação do patrimônio neste país rompessem efetivamente os trâmites
burocráticos que emperram sobremaneira os serviços de restauração,
comprometendo ainda mais as estruturas dos bens que se pretende salvar.
Francamente,
um programa de aceleração de restauração de bens culturais que praticamente não
sai do lugar é, na verdade, um programa de arruinamento.
(Artigo publicado também in O Monitor [Garanhuns], Nº166, setembro de 2014, Opinião, p. 2)
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