4 de julho de 2014

A via-crúcis do patrimônio histórico no Brasil

Por Clênio Sierra de Alcântara





Fotos: do autor             Os registros fotográficos mostram a Igreja e o Convento do Carmo, no Recife


Há algo de muito preocupante e daninho numa sociedade que mantém desprezo para com os vestígios materiais do seu passado. Não há dúvida de que idealizar o passado é mais do que um grande equívoco. Contudo, deixar que o tempo destrua as marcas concretas do passado é ser conivente com as forças da alienação e do atraso, que enxergam o patrimônio histórico como algo que não deve ser preservado.


Com uma ou outra ação pontual, que não passam de casos isolados  e que não envolvem para valer um número considerável de pessoas, de maneira geral não se vê, no Brasil, movimentos da sociedade com pretensões à salvaguarda do patrimônio histórico edificado. A fisionomia urbana das mais antigas cidades brasileiras que abrigam tal patrimônio vai se deteriorando a olhos vistos e a comunidade que vive e/ou circula com regularidade em seu entorno se mantém silenciosa e impassível, como se não fosse com ela, como se a história que se arruína não dissesse respeito à história do seu país e a dela própria.





À medida que o patrimônio histórico edificado vai sumindo da paisagem urbana, o cenário citadino vai perdendo pouco a pouco não apenas testemunhos sólidos de sua história; mais do que isso, a cidade perde identidade, perde referenciais e perde, sobretudo, memória.

A memória de uma cidade não está evidentemente apenas em seus edifícios antigos, em suas construções imponentes, em seu casario pitoresco; mas devemos ter em conta que os prédios antigos de um dado lugar contêm, somente eles, uma parcela bastante significativa dessa memória urbana. E por que é assim? Porque essas construções são testemunhos da própria gênese da cidade; e figuram, por assim dizer, como depositárias do espírito de um tempo.






Mesmo que percorramos as cidades deste país na condição de – para fazer uso de uma denominação que Mario de Andrade atribuiu a si próprio – turistas aprendizes, haveremos de notar – e com profundo pesar – que o patrimônio histórico está clamando por socorro urgentíssimo. Não são poucas as edificações históricas – civis e religiosas – que apresentam variados níveis de degradação, chegando algumas a estarem seriamente comprometidas. E muito do que nos é apresentado como “preservado” foi alvo de alterações absurdas em decorrência tanto de pura e simples vontade de mudar que tiveram os seus ditos cuidadores – o caso da Igreja da Sé, em Olinda, é um exemplo disso -, como por restauros malfeitos.

Reportagem publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, no último dia 27 de abril (Paulo Peixoto. “Só 2% das obras históricas são recuperadas”. São Paulo, Folha de S. Paulo, Cotidiano, 27 de abril de 2014, p. C4), deu uma medida da via-crúcis que o patrimônio histórico no Brasil enfrenta desde sempre.







Lançado em 2009, durante o governo de Luís Inácio Lula da Silva, e mantido no da sua sucessora Dilma Rousseff, o Programa de Aceleração do Crescimento Cidades Históricas, tido como “marco na conservação do patrimônio cultural no Brasil”, ainda não foi efetivamente consolidado. Relançado no ano passado – e vale dizer que o relançamento se deu sem que, desde 2009, nenhuma obra tivesse sido executada -, o PAC Cidades Históricas é um retrato mais do que fiel de como o descaso e a burocracia acarretam a deterioração do patrimônio histórico edificado por este país a fora.


Em 2013 foram selecionadas quatrocentas e vinte e cinco ações de restauro em quarenta e quatro cidades de vinte estados; e apenas nove – isso mesmo, somente nove – saíram do papel e começaram a ser tocadas. E por que um número tão ínfimo? De acordo com a reportagem de Paulo Peixoto, especialistas dizem que isso se dá porque persistem velhos problemas da conservação do patrimônio nestas paragens: burocracia e falta de mão de obra e de diálogo entre cidades, estados e a União.







Diretor do PAC Cidades Históricas no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Robson de Almeida afirmou que nem todas as ações do programa tinham projetos prontos ou eram para início imediato; e que há propostas que carecem de atualização o que, claro, requererá novos estudos. Ainda de acordo com Robson de Almeida, “Nessa área, projetos se desatualizam rapidamente, por degradação do bem ou alteração no uso”. Isso é o óbvio ululante, meu caro. O tempo é implacável para com toda e qualquer edificação e, sobretudo, para com aquelas que não têm manutenção constante. Basta, por exemplo, um pé-d’água para transformar o que era uma simples goteira em algo maior, que pode comprometer toda a cobertura de um prédio. Dia após dia os problemas só tendem a se agravar; eles não vão ficar parados esperando solução; e quanto maior o estrago a ser reparado, maior será, logicamente, a despesa do serviço de restauro.


Entre os critérios exigidos para que se ingresse no PAC Cidades Históricas está o que determina que a cidade deve possuir bens tombados em nível federal ou que sejam patrimônio mundial, abrigar conjuntos com patrimônio em risco ou terem marcos da ocupação do país.






No Recife, por exemplo, a Igreja do Carmo, situada no bairro de Santo Antônio, área central da cidade, está no aguardo de uma ação restauradora para os elementos artísticos, o forro e a nave; e o Mercado de São José, localizado no bairro homônimo e não muito distante daquela igreja, está à espera de uma requalificação.

Quem acompanha a trajetória das ações de salvaguarda do patrimônio histórico, no Brasil, sabe que elas se deram de modo quase heroico. Décadas de empenho de homens notáveis como Mario de Andrade, Rodrigo Mello Franco de Andrade, Aloisio Magalhães e Airton Carvalho, embora tenham conseguido pôr o assunto “bens culturais” na ordem do dia, não conseguiram – e não foi culpa deles; eles fizeram o que estava ao seu alcance -, por outro lado, fazer com que as políticas de preservação do patrimônio neste país rompessem efetivamente os trâmites burocráticos que emperram sobremaneira os serviços de restauração, comprometendo ainda mais as estruturas dos bens que se pretende salvar.










Francamente, um programa de aceleração de restauração de bens culturais que praticamente não sai do lugar é, na verdade, um programa de arruinamento.

(Artigo publicado também in O Monitor [Garanhuns], Nº166, setembro de 2014, Opinião, p. 2)


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