1 de agosto de 2014

Longe dos olhos e dentro do coração


Por Clênio Sierra de Alcântara



Foto: divulgação            Gabriel, Leonardo e Giovana: o amor e a amizade são os elos mais fortes                                                                




Tratar de temas considerados espinhosos no cinema não é tarefa das mais fáceis, porque um erro de condução pode fazer com que a narrativa figure como um incendiário retrato da realidade e/ou como um registro piegas. Na medida certa, sem pesar a mão e nem forçar a barra, o diretor e roteirista Daniel Ribeiro tocou em seu recente longa-metragem em três assuntos difíceis – o bullying, a deficiência visual e a descoberta da sexualidade, no caso, da homossexualidade na adolescência – com uma delicadeza e um vigor expressivo como pouquíssimas vezes eu vi na cinematografia brasileira.

Pode-se dizer que o amor e amizade são os fios condutores da trama que constitui o indispensável Hoje eu quero voltar sozinho, que leva o espectador a acompanhar o cotidiano escolar e familiar do jovem Leonardo (Guilherme Lobo) que é cego de nascença. Leo é superamigo de Giovana (Tess Amorim), que estuda na mesma classe que ele. A relação sofre um abalo com a chegada de um novo aluno, Gabriel (Fábio Audi) por quem Leo acabará se apaixonando.

Vista num primeiro plano, a vida de Leonardo na escola é tranquila porque ele se mostra um aluno comprometido com seus estudos. Mas tem o outro lado: Leo é, vez por outra, vítima de armações protagonizadas por outros colegas de turma, como na ocasião da brincadeira do beijo, que se desenrola numa festa de aniversário, em que, não fosse pela intervenção de Giovana, que chega de repente, ele beijaria a boca de um cachorro.

Já a rotina em sua casa nos é mostrada como algo um tanto quanto sufocante para ele. Seus pais – mais a mãe do que o pai – são amorosos e superprotetores; e Leo avalia os cuidados, para ele exagerados, como uma proteção descabida no sentido de que ela não existiria caso ele não fosse cego. Daí por que em dado momento ele alimenta a vontade de fazer um intercâmbio, o que leva seu pai a questioná-lo: qual o propósito real da viagem?

Apreciador de música clássica. Neto de uma avó terna e acolhedora... Em companhia de Gabriel, Leonardo vai experimentando novas sensações: o vento batendo na cara durante um passeio de bicicleta; a ida pela primeira vez a uma sessão de cinema, ouvindo atentamente a audiodescrição feita pelo amigo... O transcurso do tempo fará nascer e crescer entre ambos um afeto que irá uni-los ainda mais.


Assisti ao excelente Hoje eu quero voltar sozinho na sexta-feira retrasada, no Cinema São Luiz, do Recife. É, sem dúvida alguma, um filme de muitos méritos, sendo a escolha do elenco e o esmero da narrativa, a meu ver, seus pontos altos. Num panorama que ultimamente tem privilegiado a comédia, o trabalho de Daniel Ribeiro figura certamente como um corpo estranho, da mesma forma que O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho, Praia do Futuro, de Karin Aïnouz, Era uma vez eu, Verônica, de Marcelo Gomes e Tatuagem, de Hilton Lacerda. Toda uma verdade aparece nítida em Hoje eu quero voltar sozinho, porque Daniel Ribeiro faz do cinema um exercício não apenas de divertimento mas também - e principalmente - de compreensão da vida; e, embora seja uma arte da imagem por excelência, ele nos diz, com esse seu filme, que o essencial é realmente invisível aos olhos.

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