26 de setembro de 2014

Abelardo da Hora: inteiro e franco



Por Clênio Sierra de Alcântara




Foto: internet


No dia em que for escrita uma história da arte em Pernambuco, Abelardo da Hora, o incansável e irrequieto pernambucano de São Lourenço da Mata, figurará certamente entre os nomes de maior expressão, tanto por ser autor de uma obra vigorosa e de grande relevo estético quanto pelo fato de ter sido um mestre que formou mestres.

O incauto que se deparar com as esculturas de mulheres voluptuosas que Abelardo produzia com o maior afeto e dedicação pode ser que chegue a pensar que se tratam de obras de um artista que só tinha sensibilidade para esculpir personagens femininas graciosas e sensualíssimas e se mantinha alheio aos dramas sociais que lhe eram contemporâneos. Nada mais equivocado. Aliando um enorme talento – não só para esculpir, mas também para desenhar e fazer gravuras – com um profundo sentimento de compromisso com as demandas do seu tempo, Abelardo, que militou no Partido Comunista e com a maior das franquezas dele se afastou por já não concordar com os rumos que a agremiação tomara, empenhou-se como cidadão e como artista em viver numa sociedade em que as pessoas não morressem de fome; meninos não perambulassem sem rumo pelas ruas; famílias inteiras não se aventurassem esquálidas em êxodos intermináveis em busca de fazer a vida na chamada cidade grande; e na qual fosse oferecida ao indivíduo a oportunidade de ser alfabetizado, para que cada um tivesse a chance de preencher o seu próprio destino. Daí por que obras de forte impacto exibindo seres com semblantes de esfomeados e com olhos que expressam uma carência de tudo.

Durante a vigência da Ditadura Militar, Abelardo – um dos fundadores do Movimento de Cultura Popular – sofreu as agruras de um regime que não tolerava quem quer que fosse que estivesse a apontar o dedo para os males que oprimiam a parcela mais pobre e desvalida da população. E por isso ele foi levado para o cárcere inúmeras vezes. E, talvez também por isso, não tenha em nenhum momento afastado de si a convicção de que o seu fazer artístico deveria se manter firmemente vinculado e comprometido com o embate sem trégua contra as injustiças sociais. Não uma arte pela arte; mas sim uma arte engajada, sendo ela mesma um símbolo de reivindicação e de resistência, um grito de dor e de protesto, uma bandeira de luta e uma profissão de fé.

Enxergo no legado artístico deixado por Abelardo da Hora o amálgama de uma vida que foi quase toda ela dedicada à concepção de um mundo no qual a verdadeira beleza seria encontrada na justeza das relações humanas, nas quais os homens não seriam os lobos dos homens, mas os seus elos de harmonia. Há no conjunto de sua obra uma clara inteireza de propósitos e uma evidente firmeza de pensamento.


Anteontem eu fui ao Cemitério de Santo Amaro, no Recife, não para sepultar um homem que, infelizmente, eu não tive oportunidade de conhecer pessoalmente. Eu estive ali, naquela manhã quente de primavera, para celebrar uma potência criadora das mais admiráveis desta nossa terra.

Nenhum comentário:

Postar um comentário