Por Clênio Sierra de Alcântara
Foto: do autor Marco-Aurélio de Alcântara aproveitando a "sardinhada": um dia inesquecível |
Conheci Marco-Aurélio de Alcântara pessoalmente na manhã de um domingo, quando me encontrava percorrendo os sebos das calçadas da Av. Guararapes, no bairro de Santo Antônio, área central do Recife. E desde esse dia nos tornamos amigos muito próximos.
Escrevi que o conheci pessoalmente, porque até então eu só o conhecia através de fotografias, dos artigos que ele escrevia para o Diario de Pernambuco, da publicação da revista Nordeste Econômico, de seu livro Notas de andar e ver e de um outro sobre a obra de Francisco Brennand, um dos seus grandes amigos, que ele escreveu sob o pseudônimo Mark Bridge – bridge, ponte em inglês, porque Alcântara, de origem árabe, significa “a ponte” -, dos lançamentos da Pool Editorial, que ele manteve durante anos – ganhei dele uma interessante Iconografia da Paraíba, cujo prefácio é assinado por Edson Nery da Fonseca – e sobretudo por meio das inúmeras histórias que Edson Nery da Fonseca me contou da época em que eles eram parceiros inseparáveis e companheiros de viagens a Europa.
Marco-Aurélio de Alcântara era daquela estirpe de pernambucanos que têm plena consciência de sua capacidade e grandeza intelectual e que, mais do que se gabarem disso, se autocomtemplam, como o fazia Gilberto Freyre. Aliás, assim como Edson Nery, Marco-Aurélio foi muito ligado ao autor de Região e tradição - é de Marco-Aurélio o artigo “Gilberto Freyre e a cultura hispânica”, que integra a obra coletiva Gilberto Freyre: sua ciência, sua filosofia, sua arte, que a José Olympio Editora lançou em 1962 em comemoração aos vinte e cinco anos de publicação de Casa-grande & senzala.
De temperamento irascível, Marco-Aurélio de Alcântara nem sequer tolerava os medíocres. Poliglota e amante incondicional do mundo ibérico, ele morou durante muitos anos no Velho Mundo e mantinha um imóvel em Portugal para onde ia de vez em quando. Sua irascibilidade fazia complemento a um sarcasmo que resultava em boutades impagáveis e em algumas situações de puro constrangimento, pelo menos para mim, quando me encontrava ao seu lado, como na ocasião em que estávamos na Livraria Cultura do Paço Alfândega, no Recife, e ele, por ter se aborrecido com uma das funcionárias do estabelecimento, xingou-a em alemão. Comentei: “Não é xingamento o que é dito sem que o suposto xingado o compreenda”.
Não adiantava fazer qualquer observação desse tipo, porque ele jamais perdia a pose e muito menos o habitual humor negro do qual, confesso, eu gostava deveras. O que fundamentalmente me aborrecia nele era o seu tom impositivo, sua postura autoritária e suas tentativas de querer pôr um cabresto em mim. “Você precisa aprender certas coisas comigo, rapaz!”, ele me disse mais de uma vez. E não raro me apresentava aos seus conhecidos como um parente, por conta do Alcântara que ostentamos em nossos registros de nascimento.
Durante o nosso curto convívio, tendo quase sempre como cenários a sua casa, a Cantina do Abel, o Restaurante Douro, a Graças Delicatessen e o Bar e Restaurante Mustang, que era um de seus points preferidos para ele exercitar seu estilo de bon vivant e sua postura carelliana, Marco-Aurélio de Alcântara muito me falou de sua vida e dos projetos de escrever pelo menos dois livros de memórias; ele que, por encomenda, aprontou, meses atrás, uma ainda não lançada biografia de um membro da família Carneiro Leão, para a qual queria que eu elaborasse um índice onomástico.
Numa de nossas flâneries pelo Recife – e se eu não me engano foi na que nos conduziu à deliciosa “sardinhada” (sardinhas assadas na brasa) promovida pela comunidade portuguesa no último dia 22 de fevereiro no Clube Desportivo Almirante Barrozo -, eu lhe disse que me sentia mais do que privilegiado por estar convivendo com um homem e um intelectual de seu quilate.
Fracassei na tentativa de reatar a grande amizade que durante muitos anos ele manteve com Edson Nery da Fonseca. Nenhum dos dois quis ceder. Os rancores que guardaram um do outro não enfraqueceram com o passar do tempo. E quis as circunstâncias que eu perdesse esses dois grandes intelectuais no intervalo de poucas semanas: Edson, em 22 de junho; e Marco, em 24 de setembro. Diga-se de passagem, que foi durante o sepultamento de nosso amigo em comum, que nos encontramos pela última vez.
Aprendi um sem-número de coisas com Marco-Aurélio de Alcântara, um dos homens mais brilhantes que eu conheci; e destaco aqui duas delas: cultivar sempre o enriquecimento intelectual; e compreender que, mesmo na velhice, a vida nos proporciona grandes prazeres.
Não é um exagero o que eu vou escrever agora: o fato é que com a ausência do señor Marco-Aurélio de Alcântara, o enfant terrible, o jornalismo e a cultura pernambucana perderam um dos seus representantes mais brilhantes.
não lhe conheço, mas lhe agradeço muito suas palavras sobre o meu irmão MARCO AURELIO DE ALCANTARA. ADMIRVA e continuo admirando o que ele era um intelectual impar. Muito obrigada. Vilma de Alcantara.
ResponderExcluirCara Vilma, eu realmente lamentei muito o encantamento do Marco-Aurelio porque, como ele mesmo dizia, tinha muito a me ensinar.
ExcluirUm grande abraço e tudo de bom.
Prezado Clênio Sierra, a saudade do meu tio Marco Aurélio ainda dói no meu coração. Agradeço a você pela capacidade de reconhecer o grande homem que ele foi. Uma das inteligências e memórias mais privilegiadas que conheci. Parabéns por descrevê-lo com tanto sentimento. Minha mãe e eu o admiramos pelo homem que era. Obrigada, mais uma vez, meu tio permanece nos nossos corações. Maria das Graças Alcantara Pedrosa
ResponderExcluirMinha querida, a memória do seu tio vai permanecer sempre entre os grandes nomes da cultura de Pernambuco. Marco-Aurélio revelava toda a singularidade de uma pessoa que tinha fome e sede de tudo saber e conhecer. Que bom que eu pude encontrá-lo.
ExcluirEra um babaca, lambe botas dos europeus, isso sim. De que adianta ter tanta cultura e riqueza intelectual se não sabe tratar as pessoas mais humildes, com educação, como você citou no caso da atendente da livraria. Se ele não sabia a mais simples das coisas que é agir com humildade sendo um privilegiado que era, ele não sabia de nada, na verdade.
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