30 de outubro de 2014

Fome de chão

Por Clênio Sierra de Alcântara





Foto: internet         A especulação imobiliária avança por todos os espaços, muitas vezes sem respeitar a preservação do meio ambiente e nem prédios e/ou áreas de reconhecido valor histórico





Em setembro de 1708, o senhor Antônio Gonsalves de Souza pediu ao governo uma braça e meia de chão “para sua filha aumentar uma casa de pedra e cal, que possuía na Rua da Boa Vista, atualmente, Rua Dr. Sá Andrade”. Em outubro daquele mesmo ano, o Capitão Antônio Velho Gondim, alegando estar “sem casa própria para morar”, solicitou também à governança de João da Maia Gama, um “chão sem senhorio desde os tempos dos Flamengos” na então Rua Direita. Eis aqui dois exemplos dos vários colhidos e registrados por Walfredo Rodríguez no seu Roteiro sentimental de uma cidade (São Paulo: Editora Brasiliense, 1962, p. 17 e 18) retratando aspectos da capital paraibana – que então se chamava Paraíba – no século XVIII. Sem risco de cometer um engano, pode-se dizer que esses pedidos de terrenos aos governantes para erguer residências em áreas de incipiente urbanização eram comuns no restante do país que, naquela centúria, segundo o estudo Vilas e cidades do Brasil Colonial, de Aroldo de Azevedo (Boletim nº 208 – Geografia nº 11. Universidade de São Paulo/Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, 1956), contava com apenas dez cidades e pouco mais de uma centena e meia de vilas espalhadas ao longo de todo o território.

Historicamente a formação de cidades no Brasil, ou, melhor dizendo, de áreas que começavam a ser urbanizadas, foi acometida por essa necessidade de espaços para erigir as edificações. Alguém pode perguntar: mas se se estava no começo da ocupação, não havia muitos espaços vazios? Decerto que sim.  Por outro lado, o tempo era de perigo constante no que diz respeito a invasores estrangeiros e conflitos com os nativos; de modo que, o mais sensato era erguer morada no entorno dos prédios públicos – civis e religiosos – a fim de desfrutar da defesa que a eles era destinada, ainda que isso não fosse uma garantia absoluta. Além disso, queria-se estar próximo aos estabelecimentos comerciais e aos prestadores de serviços.

Recuei tanto na história para falar de uma séria questão destes nossos dias, que é a pressão imobiliária sobre cidades já densamente ocupadas; e para mostrar que a fome de chão não é coisa apenas do tempo atual.

É sabido que em cidades como o Recife, Rio de Janeiro e até aqui em Garanhuns, algumas áreas possuem metros quadrados disputadíssimos, inflacionando sobremaneira os imóveis nelas construídos, acarretando, consequentemente, a elevação dos preços deles tanto para venda como para aluguel. E nesse quadro, construtoras se lançam numa busca desenfreada por terrenos onde possam implantar empreendimentos vistosos que custam uma fortuna. Evidentemente esse avanço da especulação imobiliária se dá principalmente nas denominadas áreas nobres dos municípios, que podem render aos investidores lucros mais vistosos; mas não é incomum que também se busque implantar empreendimentos de alto padrão em locais que eram deixados de lado e que, em razão dessas construções, passam também eles a ser tidos como lugares privilegiados e muito disputados.

Não se pense, contudo – e está aqui o motivo que me levou a escrever este artigo --, que a especulação imobiliária se move tão somente sobre terrenos desocupados. As investidas do mercado imobiliário, sob o impulso das grandes construtoras, movem-se igualmente para áreas de ocupação antiga, comprando casas para no lugar delas erguer edifícios residenciais e/ou comerciais.


Nos últimos anos o núcleo primitivo do Recife, em especial o pitoresco bairro de São José, vem sofrendo com a implantação de megaprojetos imobiliários que têm feito e farão com que ele perca a cada dia as feições características que detém como um espaço histórico da capital pernambucana. Ao se lançarem sobre áreas que abrigam paisagens e edifícios históricos empunhando o que eles dizem ser a bandeira do progresso, os empresários das grandes construtoras não têm o cuidado de tratar o patrimônio histórico, não pensam se irão prejudicá-lo, porque esse é um tipo de preocupação que, fica bastante evidente, não lhes diz respeito, uma vez que nos seus discursos só cabe a sentença: “Nós estamos investindo no progresso da cidade”. E ponto.

O processo de urbanização de maneira alguma deve se dar de modo inconsequente. Cabe às autoridades municipais inserir no plano diretor determinações muito claras sob como o crescimento urbano deve ser seguido, fiscalizar o tempo todo se as diretrizes estão sendo obedecidas e não ceder às pressões das construtoras para que esta ou aquela lei seja alterada a fim de acomodar os interesses delas. Por outro lado, a sociedade civil também deve se manter vigilante para se posicionar contra e protestar ante qualquer manobra de governantes corruptos que negociam os espaços urbanos como se a cidade fosse propriedade deles.

Para manterem as cidades vivas os burgomestres devem  buscar solucionar seus problemas estruturais, proteger o patrimônio histórico edificado que elas porventura possuam e estabelecer as linhas gerais do seu crescimento.




(Artigo publicado também in O Monitor [Garanhuns], Nº 167, outubro de 2014, Opinião, p. 2).

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