Por Clênio Sierra de
Alcântara
Todos os dias, em algum lugar deste país, mulheres – ricas, pobres ou muito pobres – se submetem de modo
clandestino a procedimentos com o fito de cessarem gestações indesejadas. As
ricas e remediadas senhoras, no amparo de suas pecúnias, conseguem realizar
tais intervenções sem correr praticamente nenhum risco; já as pobres e as muito
pobres, coitadas.
Não existe uma estatística
confiável, nem poderia haver, uma vez que, excetuando os casos de gravidez
resultante de estupro, gravidez que ponha em risco a vida da gestante e a
gestação de fetos anencéfalos, a prática do aborto é crime no Brasil. E o fato
triste e vergonhoso é que, anualmente, centenas de mulheres morrem neste país
em decorrência de complicações nas ações de abortos clandestinos, quer sejam
eles praticados em "clínicas", quer sejam eles resultantes de alguma substância
abortiva ingerida pelas gestantes.
Este quadro assustador é
todo ele marcado pela mesma moral torta e hipócrita que continua fazendo da
mulher um mero objeto das vontades dos homens. A essência da discussão em torno
da prática do aborto é fundamentalmente esteiada por uma feroz misoginia. É a
mesma misoginia que trata as mulheres como seres inferiores aos homens; que as
submete a salários mais baixos dos que são pagos a eles; que incute nelas o
falso glamour da pornografia; e, principalmente, que instrumentaliza a
obrigação da maternidade.
O Estado brasileiro é laico
e, no entanto, o mundo político pauta as discussões em torno da questão do
aborto se deixando levar por fundamentos religiosos que, neste ponto, como em
tantos outros, tratam somente de apequenar as mulheres. O Estado brasileiro é
laico e, no entanto, nas cédulas de sua moeda aparece estampada a expressão “Deus
seja louvado”. O Estado brasileiro é laico e, no entanto, tem o seu calendário
marcado por uma infinidade de feriados dedicados a celebrações da Igreja
Católica.
A prática legal do aborto
deve ser tomada não só como uma questão de saúde e proteção da mulher, mas
também de saúde pública. É fato que, neste quesito, o Brasil continua na
contramão do que está em vigência em países como Alemanha, Estados Unidos,
França, Itália, Japão e outros, que legalizaram o aborto e construíram uma estrutura de amparo para as mulheres, oferecendo assistência médica adequada a todas
aquelas que decidem interromper uma gravidez. Porque é assim que tem que ser;
porque, além de serem donas de seus próprios corpos, cabe a cada uma delas
avaliar o que é bom ou ruim para as suas vidas.
O conservador Estado que criminaliza a prática do aborto e que tira das mulheres uma decisão que só
deveria caber a elas e a mais ninguém, é o mesmo que não consegue proteger
essas mulheres da absurda elevação dos casos de estupro que as têm vitimado –
de acordo com o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, apenas nos primeiros
oito meses deste ano, ocorreram quarenta e oito crimes dessa natureza somente
naquela unidade da federação – por esse país afora; é o mesmo covarde e omisso
Estado que, em que pese a existência de um instrumento legal, como a Lei Maria
da Penha, não logra a manutenção de uma rede de proteção que dê realmente
guarida às mulheres vítimas de violência doméstica; é o mesmo precário e
ineficiente Estado que não aparelha como deveria as maternidades públicas nas
quais, vez por outra, mulheres morrem ou perdem seus bebês porque não receberam
atendimento ou não foram atendidas de forma adequada.
Enquanto persistir na
sociedade brasileira o entendimento de que o aborto é uma prática hedionda, infame
e moralmente desprezível, continuaremos fazendo o cômputo das tantas Jandiras,
Elizângelas, Rafaelas e Marias que, no desespero de encontrar a solução de seus
problemas, morrem desamparadas em alguns lugares por aí.
Desculpe-me leitor, mas eu
vou elevar o tom neste momento: Bolsa Família nenhum vai livrar nossas pobres
mulheres de suas tantas misérias particulares!
(Artigo publicado também in O Monitor [Garanhuns], nº 173, abril de 2015, Opinião, p. 2)
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