8 de novembro de 2014

Vamos abortar o fundamentalismo e a misoginia!

Por Clênio Sierra de Alcântara



Foto: do autor   Cartaz afixado num dos pilotis do Edifício Sisal, na Av. Presidente Vargas, na cidade do Rio de Janeiro - 16 de outubro de 2014. Por essa época a cidade ainda estava estarrecida com as mortes de Jandira Magalena e Elizângela Barbosa, que morreram depois de recorrem a abortos em clínicas clandestinas



Todos os dias, em algum lugar deste país, mulheres – ricas, pobres ou muito pobres – se submetem de modo clandestino a procedimentos com o fito de cessarem gestações indesejadas. As ricas e remediadas senhoras, no amparo de suas pecúnias, conseguem realizar tais intervenções sem correr praticamente nenhum risco; já as pobres e as muito pobres, coitadas.

Não existe uma estatística confiável, nem poderia haver, uma vez que, excetuando os casos de gravidez resultante de estupro, gravidez que ponha em risco a vida da gestante e a gestação de fetos anencéfalos, a prática do aborto é crime no Brasil. E o fato triste e vergonhoso é que, anualmente, centenas de mulheres morrem neste país em decorrência de complicações nas ações de abortos clandestinos, quer sejam eles praticados em "clínicas", quer sejam eles resultantes de alguma substância abortiva ingerida pelas gestantes.

Este quadro assustador é todo ele marcado pela mesma moral torta e hipócrita que continua fazendo da mulher um mero objeto das vontades dos homens. A essência da discussão em torno da prática do aborto é fundamentalmente esteiada por uma feroz misoginia. É a mesma misoginia que trata as mulheres como seres inferiores aos homens; que as submete a salários mais baixos dos que são pagos a eles; que incute nelas o falso glamour da pornografia; e, principalmente, que instrumentaliza a obrigação da maternidade.
O Estado brasileiro é laico e, no entanto, o mundo político pauta as discussões em torno da questão do aborto se deixando levar por fundamentos religiosos que, neste ponto, como em tantos outros, tratam somente de apequenar as mulheres. O Estado brasileiro é laico e, no entanto, nas cédulas de sua moeda aparece estampada a expressão “Deus seja louvado”. O Estado brasileiro é laico e, no entanto, tem o seu calendário marcado por uma infinidade de feriados dedicados a celebrações da Igreja Católica.

A prática legal do aborto deve ser tomada não só como uma questão de saúde e proteção da mulher, mas também de saúde pública. É fato que, neste quesito, o Brasil continua na contramão do que está em vigência em países como Alemanha, Estados Unidos, França, Itália, Japão e outros, que legalizaram o aborto e construíram uma estrutura de amparo para as mulheres, oferecendo assistência médica adequada a todas aquelas que decidem interromper uma gravidez. Porque é assim que tem que ser; porque, além de serem donas de seus próprios corpos, cabe a cada uma delas avaliar o que é bom ou ruim para as suas vidas.

O conservador Estado que criminaliza a prática do aborto e que tira das mulheres uma decisão que só deveria caber a elas e a mais ninguém, é o mesmo que não consegue proteger essas mulheres da absurda elevação dos casos de estupro que as têm vitimado – de acordo com o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, apenas nos primeiros oito meses deste ano, ocorreram quarenta e oito crimes dessa natureza somente naquela unidade da federação – por esse país afora; é o mesmo covarde e omisso Estado que, em que pese a existência de um instrumento legal, como a Lei Maria da Penha, não logra a manutenção de uma rede de proteção que dê realmente guarida às mulheres vítimas de violência doméstica; é o mesmo precário e ineficiente Estado que não aparelha como deveria as maternidades públicas nas quais, vez por outra, mulheres morrem ou perdem seus bebês porque não receberam atendimento ou não foram atendidas de forma adequada.

Enquanto persistir na sociedade brasileira o entendimento de que o aborto é uma prática hedionda, infame e moralmente desprezível, continuaremos fazendo o cômputo das tantas Jandiras, Elizângelas, Rafaelas e Marias que, no desespero de encontrar a solução de seus problemas, morrem desamparadas em alguns lugares por aí.

Desculpe-me leitor, mas eu vou elevar o tom neste momento: Bolsa Família nenhum vai livrar nossas pobres mulheres de suas tantas misérias particulares!


(Artigo publicado também in O Monitor [Garanhuns], nº 173, abril de 2015, Opinião, p. 2)

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