21 de novembro de 2014

Desintegração nacional



Por Clênio Sierra de Alcântara







Foto: internet     A escassez de água em várias partes do mundo é um drama social
que só tende a se agravar




Por mais que se diga que água é vital; que não podemos desperdiçá-la lavando calçadas, por exemplo, e nem tomando banhos prolongados como se carregássemos toda a sujeira do mundo em nossos corpos; que em vários lugares do planeta milhões de pessoas travam um embate diário para obter um pouco que seja de água potável; que muitos cidadãos neste Brasil imenso não têm acesso ao serviço de água encanada – não são apenas residências, caro leitor, mas até mesmo algumas escolas deste país são desprovidas dessa benfeitoria que para tantos parece ser algo tão banal -; que o desmatamento da mata ciliar e a poluição provocam a morte de rios e mananciais; por mais que se propagandeie que, até que chegue às torneiras, a água precisa ser captada e bem tratada e que isso exige tempo e um custo elevado, muita gente, infelizmente, continua agindo como se esse líquido, que é insubstituível e indispensável para a nossa existência, não possa escassear ao extremo a ponto de comprometer seriamente as atividades cotidianas de toda a sociedade.

Tenho quarenta anos. E desde que eu me entendo por gente convivo com algum grau de racionamento de água – mesmo residindo na Região Metropolitana de uma grande cidade como o Recife. Há períodos em que a água é disponibilizada dia sim, dia não; noutras ocasiões o fornecimento é suspenso às segundas, quartas e sextas-feiras; e sem falar  das vezes em que, sem aviso prévio por parte da Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa), passamos dias a fio com as torneiras secas e recorremos aos poços de alguns vizinhos, mediante pagamento, para minimizarmos os transtornos que a falta d’água provoca. E toda vez que o fornecimento é interrompido ouve-se alguém dizer: “É de lascar: aqui chove tanto e os caras ficam prendendo a água!”. São comentários eivados de revolta e também de desconhecimento de como se dá todo o processo de captação, tratamento e distribuição da água. Há pessoas, ainda hoje, que não compreendem que nem todo abastecimento das casas provém de represas e sim de poços; e que – e não deveria ser assim, mas em alguns casos é, porque não se investe como se deveria no sistema -, lamentavelmente, existe uma disparidade entre a demanda e a capacidade de tratamento da água que deve ser disponibilizada à população – eis aí uma das razões dos indesejados racionamentos.

Outra imagem recorrente, para todos nós que moramos aqui no Nordeste, é a paisagem das secas, o cenário de terra esturricada que marca vastas áreas nordestinas causando a morte de animais e o êxodo rural. A falta de água nesses lugares, provocada por períodos de longa estiagem, permanece sendo um drama para as famílias que neles habitam e um exemplo – mais um – de como a ausência de água desencadeia uma série de conflitos socioeconômicos e, por que não dizer, existenciais.

De uns tempos para cá cientistas ao redor do mundo vêm alertando para o que eles chamam de “aquecimento global”, que estaria sendo provocado pela emissão, em quantidades absurdas, de gases poluentes que são lançados na atmosfera. Segundo os estudiosos, tal aquecimento desencadeará enormes desequilíbrios ambientais, uma vez que regiões enfrentarão secas ainda mais severas enquanto que outras serão vitimadas por enchentes.

Em paralelo com essas investigações científicas, estamos acompanhando estarrecidos ao andamento de dois acontecimentos seriíssimos: a estiagem que está castigando o estado de São Paulo, a locomotiva econômica do país; e, em meio a uma realidade que demonstra que o Rio São Francisco vem ano após ano perdendo consideravelmente o seu volume – no ano de 2013 eu percorri um trecho desse rio entre cidades de Alagoas e Sergipe; e colhi depoimentos desoladores de alguns moradores da região -, foi anunciado que sua nascente, na Serra da Canastra, secou e o Governo federal, em vez de promover a revitalização do Velho Chico, insiste em levar adiante uma, para mim malfadada, obra de transposição de suas águas.


O caso da falta d’água em São Paulo desencadeou medidas mitigadoras e, tudo leva a crer, despertará, ao menos em parte da população paulista, a compreensão de que os recursos hídricos podem desaparecer e, por conta disso, deve-se a todo tempo utilizá-los de forma racional e sem desperdício. Já na vastidão dos grotões do Nordeste, continuaremos assistindo ao deslocamento de almas em busca de sobrevivência, encontrando pelo caminho quem lhes ofereça santinhos e promessas de um futuro úmido e próspero. Em meio a isso, o Velho Chico – “o rio da integração nacional” – vai seguindo seu curso, definhando a olhos vistos enquanto o Governo federal continua sua longa marcha promovendo, impávida e destemidamente, a desintegração nacional com seus “mensalões”, com seus “petrolões”, com seu sistema educacional de baixo nível, com sua postura autoritária e com o seu canhestro entendimento do que realmente seja promover desenvolvimento social.


(Artigo publicado também in O Monitor [Garanhuns], Nº 171, Opinião, p. 2, fevereiro de 2015).



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