31 de dezembro de 2014

Varadouro: encantos, escombros e desolação


Por Clênio Sierra de Alcântara


Especialmente para o poeta Augusto dos Anjos,  uma das glórias da Paraíba, no ano do centenário de sua morte; e também para o extraordinário pintor paraibano pernambucanizado João Câmara, na ocasião dos seus setenta anos de vida





Parece que reina atualmente na capital paraibana um grande e nefasto conluio visando à eliminação do seu rico patrimônio histórico edificado. É a essa conclusão que qualquer um pode chegar se se dispuser a percorrer alguns dos principais logradouros de sua parte mais antiga, (1) como a Rua Duque de Caxias, Rua da Areia, Rua João Suassuna e a Av. Guedes Pereira. Não sei, não tenho conhecimento do que vai nas outras capitais brasileiras no que diz respeito à conservação e/ou abandono do patrimônio dessa natureza. Contudo, acredito que em nenhuma outra – no Recife, talvez, ou em Salvador, que são realidades que conheço - o processo de abandono e ruína venha se dando de maneira tão eficaz e operosa como na cidade de João Pessoa.




Fotos: Arquivo do autor
          A degradação de prédios como este, localizado na Rua Desembargador Trindade, dá a dimensão de como na capital paraibana o patrimônio histórico está sendo abandonado




                                            



A formação da cidade


Surgida no último quartel do século XVI, com o status de cidade, (2) a capital paraibana é uma das mais antigas do país; e, obedecendo à lógica de ocupação portuguesa, seus principais prédios – como as construções religiosas – foram implantados no alto de uma colina, num terreno às margens do Rio Sanhauá. Esclarece-nos Nestor Goulart Reis no seu, sob todos os aspectos, excelente Imagens de vilas e cidades do Brasil Colonial: “A cidade de Paraíba foi projetada e construída com traçado em xadrez e correspondente ao período de união das Coroas de Portugal e Espanha, levando à adoção, pelo menos parcial, de normas urbanísticas das Ordenações Filipinas”. (3)

Em meados dos anos trinta do século XVII, a cidade foi invadida pelos holandeses que, à época, vinham promovendo embates com forças portuguesas e espanholas – não esqueçamos que a chamada União Ibérica vigorou de 1580 a 1640 – com o fito de ocupar todo o Nordeste açucareiro. A ocupação durou onze anos (1634-1645); (4) e por esse tempo o espaço urbano pouco ou nada evoluiu, permanecendo acanhado em termos de edificações, ainda que Duarte Gomes da Silveira, um rico e diligente senhor de engenho, promovesse a edificação da urbe auxiliando financeiramente muitos moradores que desejavam construir casas, conforme registrou Elias Herckman, que dirigiu a Capitania de 1636 a 1639. (5)


No que diz respeito ao século XVIII a historiografia por mim consultada não registra muitas informações sobre o cenário urbano da capital. Sabe-se que em 1715 existiam casas caídas que, talvez, remontassem à época do domínio holandês; e que o ouvidor deu o prazo de um ano para que os proprietários das ditas casas as levantassem ou vendessem. Em 1774 a cidade contava com 10.050 habitantes, nove igrejas, cinco conventos e dois mil quatrocentos e trinta e sete fogos. Também ocorreram nessa centúria determinações para a construção de um baluarte e de uma fortaleza com o fito de proteger os seus habitantes; e no que concerne aos edifícios eclesiásticos, o período foi marcado, segundo o diligente José Luiz Mota Menezes, pela ampliação e término de grandes obras: “A começar pela Matriz [de Nossa Senhora das Neves], esta é reedificada no século XVIII e novamente construída com as dimensões atuais no século XIX. Foi das obras mais demoradas, dado a falta de recursos”. (6) E para completar o quadro geral da época do Setecentos, a Capitania da Paraíba perdeu autonomia: durante quarenta e quatro anos – de 1755 a 1799 – ficou subordinada a de Pernambuco.



No prédio antigo, à esquerda, um flagrante do pouco caso para com o seu reparo; já à direita, a borracharia evidencia que uma construção antiga foi completamente modificada e/ou destruída para dar lugar a ela









Quando os prédios históricos de uma cidade vão desaparecendo da paisagem, o espaço urbano perde também sua memória e identidade






Nesta e na foto seguinte, eis o que restou do famoso Hotel Luso-brasileiro, onde  Mario de Andrade, um dos intelectuais responsáveis pela criação do futuro Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, se hospedou em 1929






A capital paraibana adentra no século XIX contando com um número expressivo de habitantes: no início do século a população passa de 1.000 para 3.000; e em meados dessa centúria chegou a contar 9.000 almas. De alguma forma o crescimento populacional é um indicativo de que a cidade em si também estava se expandindo, tanto no que diz respeito ao espaço territorial propriamente dito, quanto com relação ao número de prédios que ocupariam os terrenos vazios ainda existentes na área mais urbanizada: em 1811 a capital possuía 1.150 casas que pagavam impostos – outra fonte diz que em 1850 existiam 1.084 casas, inclusive 39 sobrados, sem indicar quantos desses imóveis pagavam algum tipo de tributo.

Se a riqueza proporcionada pela cana-de-açúcar já não era tão volumosa como em outros tempos, o algodão ganhou importância na economia paraibana do século XIX, sobretudo por conta do boom no mercado internacional devido à Guerra de Secessão nos Estados Unidos, que era o maior produtor mundial. Os grandes exportadores de algodão investiram fortunas na construção de mansões na parte alta da cidade dividindo espaço com os agora não tão expressivos senhores de engenho. O comércio ganhou volume, algumas indústrias surgiram e arrecadação da Província cresceu.

O burgo-capital foi sendo aformoseado. Obras na parte baixa da cidade eram o indicativo de que a urbanização se expandia para aquele sítio, cujo comércio adquirira maior importância. Construiu-se o Teatro Público na Praça Pedro Américo em 1853, ocasião em que se lançou a primeira pedra da Cadeia Nova; no ano seguinte ficou pronta a obra no “cais” do Varadouro; em 1855 foi construído o Cemitério Público; ruas começaram a ser abertas e calçadas com pedras de granito.

O dinamismo das transformações por que passava o espaço urbano ganhou um administrador que enxergava a cidade como um campo a ser trabalhado. Em dezembro de 1857 assumiu a presidência da Província o Tenente-Coronel Henrique Beaurepaire Rohan. Num documento legado para a posteridade registrou o novo governante:


Os arruamentos nesta cidade nunca foram nem ainda estão sujeitos a plano algum quer em relação aos alinhamentos quer ao nivelamento, cada um edifica à sua vontade e daí resulta esse labirinto em que se vai sensivelmente convertendo a cidade [...]

A verdade é que a construção de qualquer prédio é sempre precedida de uma cerimônia a que chamam cordeação, à qual comparecem os fiscais da câmara municipal; mas essa intervenção oficial, longe de produzir um bem, nenhum outro resultado apresenta, senão o de sancionar a vontade do edificador e legalizar os defeitos ou alinhamentos [...]. (7)


A administração proficiente de Henrique Beaurepaire promoveu a abertura, alargamento e alinhamento de novas artérias; e fundou uma biblioteca e um jardim botânico. É digno de nota o fato de que uma planta da cidade foi levantada pelo 1º Tenente engenheiro Alfredo de Barros Vasconcelos. (8) “Mandei proceder ao nivelamento geral para um sistema de esgotos, questão que interessa à salubridade pública”, registrou Beaurepaire no relatório já mencionado.



Estação ferroviária



Esta foto, que retrata um descarregamento de cimento para as obras de construção do porto do Varadouro, na década de 20, encontra-se na página 205 do livro Porto político, do José Joffily




É impressionante como a indiferença para com as coisas do passado da cidade tem se espalhado pelo sítio histórico de João Pessoa




A Lei nº 26, de 30 de setembro de 1859, sancionada por Ambrósio da Cunha, presidente da Província, pretendeu disciplinar a construção de imóveis, contendo disposições sobre a altura e a largura de fachadas e janelas, compreendendo as casas de um andar e sobrados; a lei também normatizava projetos de construção de calçadas e proibição de degraus de pedras ou tijolos no lado exterior das construções; determinou a retirada dos canos de esgoto mantidos para despejos nas ruas de dejetos ou líquidos, a não ser água da chuva; a lei determinou ainda que as novas ruas abertas na cidade e nos povoados contivessem oitenta palmos de largura.

No dia 24 de dezembro de 1859, a capital da Paraíba do Norte recebeu a visita de Sua Majestade, o Imperador Dom Pedro II. Cuidou-se de arrumar o espaço urbano para que o monarca tivesse uma boa impressão daquele lugar, ele que era um homem dado a observar tudo e fazer apontamentos em diários de viagens. Casas foram caiadas e espalharam-se ornamentações alegóricas pela cidade. Notícia publicada pelo jornal A Imprensa em 31 de dezembro daquele ano nos dá conta de que “As ruas da cidade estavam tapizadas de junco e folhas de pitanga e canela, as varandas dos sobrados e as janelas das casas térreas decoradas com colchas de seda e de damasco e bandeiras nacionais”. (9)

Impulsionando a economia da Província, a construção da linha férrea marcou o cenário no último quartel oitocentista. Em 1883 foi inaugurado o serviço da Ferro Carril puxada a burros. Na virada do século a cidade da Paraíba contava com 18.000 habitantes. (10)

São por demais conhecidas as monumentais reformas urbanas que marcaram algumas das grandes cidades brasileiras nas primeiras décadas do século XX, como as havidas no Rio de Janeiro, então Distrito Federal, e no Recife, que mantinha um dos principais portos do país. (11) Essas reformas, que eram um reflexo do que George-Eugène Haussmann fizera na Paris dos tempos do poeta Charles Baudelaire, foram anunciadas aqui como meios de promover a modernização e o progresso material dos centros urbanos, livrando-os, inclusive, do que neles havia de insalubre. A ordem do discurso era essa. E para pôr o espaço citadino em conformidade com o que havia de melhor na Europa não se poupou passadismos e nem mesmo pessoas, costumes e tradições: edificações dos períodos Colonial e Imperial foram varridas do mapa, por serem tidas como sinais de atraso; a população pobre – incluindo mendigos, vendedores ambulantes, etc. - foi alijada das áreas centrais das cidades. Esperava-se que aquela vaga modernizadora do Rio de Janeiro alcançasse, na verdade, os quatro cantos do país. Parafraseando o cronista Figueiredo Pimentel, podemos dizer: “o Brasil civilizava-se”. E o escritor Lima Barreto também estava atento a isso. (12)


Muito embora não tenha passado por intervenções de igual envergadura, como as verificadas no Rio de Janeiro e no Recife, os primeiros decênios do século XX foram muito marcantes na história urbana da capital da Paraíba. Pretendeu-se uma cidade limpa e ordenada. Em 1905 o prefeito Francisco Xavier Júnior baixou um decreto que recomendava que os proprietários dos prédios fizessem a capinação na frente e nos oitões dos mesmos. Ainda em 1905 foram instalados os primeiros telefones residenciais. O novo tempo chegou trazendo melhorias para a população, como o serviço de abastecimento d’água, inaugurado em 1912; e, no mesmo ano, o fornecimento de energia elétrica, que possibilitou a implantação da Ferro Carril movida à eletricidade.









O historiador Wellington Aguiar sustenta a opinião de que foi durante o governo do general Francisco Camilo de Holanda (1916-1920) – por esse tempo foram vários os ocupantes da chefia do executivo municipal: Demócrito de Almeida (15/05/1916 – 22/10/19160); Antônio Pessoa Filho (22/10/1916 – 21/05/1917). No intervalo decorrido entre a sua nomeação até a posse, assumiu o subprefeito Antônio Soares Pinho. Com a exoneração do titular, Soares Pinho assumiu novamente a Prefeitura em caráter interino até 25 de maio de 1918, ocasião do seu falecimento. Com a sua morte, assumiu o Presidente do Conselho Municipal Inácio Evaristo Monteiro até a posse do novo prefeito. E ainda teve Diógenes Gonçalves Pena (6/01/1918 – 22/10/1920) – que a capital começou realmente a ser modernizada:


Nesse período a cidade começou a perder o aspecto colonial. Abertura de ruas, construção de praças com jardins floridos, alargamento de vias públicas, além da edificação de importantes imóveis marcaram aqui o dinamismo da administração estadual.
Novo tempo em nossa urbe. O povo passou a frequentar as praças, a sair de casa não somente para ir às igrejas. A tristeza colonial, que já se vinha esfumando, cedeu lugar à alegria da sociedade, ávida por imitar a elegância, a cultura e a moda de Paris, então tida como capital do mundo. (13)


À medida que a cidade era transformada e saneada, avançando do seu espaço primitivo em direção ao mar, principalmente após a abertura da Av. Epitácio Pessoa, ocorrida no governo de João Pessoa Cavalcanti Albuquerque, o número de habitantes aumentou de maneira espantosa: no espaço de quarenta anos, de 1940 a 1980, cresceu de 71.000 para 326.000 habitantes.

Apesar de o crescimento da cidade ter se dado principalmente em direção à faixa litorânea, o sítio histórico sofreu perdas irreparáveis devido à “sanha progressista” dos seus administradores. Dotou-se a cidade de propalados “melhoramentos” arrancando dela nacos significativos do seu passado.

Nenhum outro burgomestre da capital paraibana encampou com tanta veemência o discurso do prefeito Francisco Pereira Passos – que promoveu um verdadeiro “bota-abaixo” durante o governo do Presidente da República Rodrigues Alves (1902-1906) que, a exemplo do que fizera Napoleão III com relação a Haussmann, dotou-o de plenos poderes para que coordenasse a ação das picaretas que poriam meio Rio de Janeiro no chão -, do que Walfredo Guedes Pereira, que assumiu pela primeira vez a chefia do executivo municipal em outubro de 1920, nomeado pelo presidente do Estado Solon de Lucena.

Já nessa primeira experiência como administrador da capital (1920-1924), Guedes Pereira, que recebeu inteira liberdade de ação do seu nomeador, transformou a cidade num canteiro de obras. Pereira Passos conheceu a Paris transformada por Haussmann e ficara impressionado com as obras de tão grande monta. Já Guedes Pereira estivera no Rio de Janeiro como estudante de medicina – ele seguiu para a então capital do país em março de 1902, onde matriculou-se na Escola de Medicina; e concluiu o curso em 1907; tendo retornado à Paraíba em abril de 1908 – e assistira à ação reformadora levada a cabo por Pereira Passos e regressou à Paraíba completamente imbuído dela. Eram ecos de uma Belle Époque que, em verdade, no Brasil, foi insensível e feia.

Escrevendo para a revista Era Nova, um periódico recém-lançado, o articulista Alcides Bezerra registrou com bastante agudeza, em 1921, o espírito do tempo que marcava a administração de Guedes Pereira:


A cidade está mudando sensivelmente de aspecto. Perde a sua feição colonial para vestir a mascara uniforme da civilização.


Ha quem se rejubile com isto e deseja que a mudança seja completa, radical. Não deve ficar pedra sobre pedra. Todos os predios antigos devem ser demolidos, ou pelo menos transformados, vestidos a moderna, hediondez para qual a esthetica já não tem qualificativo. (14)


Entre as várias obras realizadas por Guedes Pereira figuraram a organização da planta da cidade, a abertura de inúmeras ruas e avenidas – entre elas Diogo Velho, Alberto de Brito, Montepio, Maximiano Machado e Quintino Bocaiúva - e a construção praças – Praça da Independência e Vidal de Negreiros – e parques – Parque Arruda Câmara e Solon de Lucena.

Com seu ímpeto iconoclasta e com seu caráter de inimigo das coisas do passado e das tradições, Walfredo Guedes Pereira capitaneou, como um verdadeiro “papa-igrejas”, a demolição de dois templos católicos que eram parte de um magnífico conjunto arquitetônico que constituía o centro histórico da Cidade da Paraíba. No espaço de dois anos sumiram da paisagem urbana, histórica e sentimental da cidade a Igreja de Nossa Senhora Mãe dos Homens (1923) (15) e a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos (1924). E, como se isso já não fosse suficientemente absurdo e lamentável, nos poucos meses que passou como prefeito, em 1935, nomeado para tanto pelo interventor Argemiro de Figueiredo, Guedes Pereira, dando continuidade ao vergonhoso passado de demolições que marcara sua administração anterior – e não podemos esquecer que, ainda em 1929, quando era prefeito José D’Ávila Lins, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição também foi demolida -, promoveu o arrasamento da Igreja de Nossa Senhora das Mercês – e tudo isso com a anuência arquidiocesana.

A "modernização" e o "progresso" ditaram modismos na cidade, mas não puderam alterar de todo certos costumes que marcavam o seu cotidiano. Em artigo com o qual colaborou para a obra coletiva Livro do Nordeste, organizada por Gilberto Freyre e que fi lançada em 1925, no Recife, em comemoração aos cem anos do Diario de Pernambuco, Adhemar Vidal no revela um quadro muito vivo da capital paraibana de então:

Se as ruas da Parahyba, nos dias communs, perderam, como nos de festa ou procissão, muito do seu pittoresco, continuam entretanto a offerecer aspectos interessantes de vida provinciana. Pela manhã, vaccas de leite suavemente tangidas pelos seus donos ou empregados dos curraes, veem abastecer de leite muitas casas burguezas; e durante o dia passam pelas ruas vendedores ambulantes de bolo, de pé-de-moleque, de peixe, de fructas, de rolete de canna, de doces. (16)

A cidade crescia a olhos vistos: “Mas até 1930, a área urbana não se elastecera muito, mas a partir deste ano, registrou-se uma fase de renovação da arquitetura, começando a serem construídas as residências confortáveis, que evoluíram para os palacetes funcionais, que pontilham todos os bairros da cidade”. (17)

O ano de 1935 ficou marcado como o final de um dos ciclos mais destrutivos por que passou o núcleo primitivo da capital paraibana. O que todas essas demolições deixam ver é que, muito mais do que uma completa falta de respeito para com o patrimônio eclesiástico, para com as tradições de um povo e para com a memória de uma cidade, é o imperativo irracional de homens públicos que pautam suas administrações pela linha do arrasamento  total do ambiente construído com vistas a deixarem nele a marca de suas passagens, o que revela, claro, uma desmedida vaidade e a imposição de vontades que não são necessariamente a dos habitantes da cidade.

A capital paraibana atravessou o século XX e chegou ao XXI enfrentando problemas como o surgimento e multiplicação de favelas, a pressão da especulação imobiliária sobre recantos aprazíveis do seu território e o desafio de abrigar um contingente populacional cada vez maior que exige emprego, educação, saúde, moradia, transporte e segurança pública. Em meio a tantas demandas, como promover a salvaguarda do patrimônio histórico edificado?





Praça Álvaro Machado: ao fundo vê-se a Rua Rosario Di Lorenzo




Estes prédios da Rua João Suassuna, em estilo art déco, impressionam pelo porte do conjunto. Como informa a a placa na foto abaixo, eles passarão por pesquisas arqueológicas







No princípio era a água



Assim como a cidade de Olinda, a capital paraibana possui um bairro chamado Varadouro que remonta aos dias iniciais de sua fundação no século XVI. Varadouro, entre outros significados, quer dizer lugar raso onde se podem recolher as embarcações dos diversos tipos, para consertá-las ou guardá-las; mas também, um ancoradouro no qual embarcações podem atracar com o fito de manter atividades mercantis.

Foi no Varadouro que efetivamente o sítio urbano da capital paraibana teve início, a partir do ancoradouro fincado à margem direita do Rio Sanhauá. E, à medida que edificações foram sendo levantadas na parte mais elevada do terreno, em determinado momento passou-se a denominar essa área como Cidade Alta e o espaço ocupado pelo Varadouro como Cidade Baixa. Diz-nos Walfredo Rodríguez em seu Roteiro sentimental de uma cidade:

Nos primitivos dias, depois da fundação da cidade, quase tudo ainda era selva; apenas o Varadouro, demorando junto ao barranco do rio, com o minarete de seu forte e os seus oito canhões de grosso calibre refletindo a luz dourada do sol tropical, lhe impunha foros de cidade. (18)


Enquanto na chamada Cidade Alta estabeleceram-se os edifícios mais imponentes – tanto os da administração pública quanto os religiosos e residenciais -, na Cidade Baixa, em virtude do ancoradouro, imperou uma ocupação voltada basicamente para o comércio como armazéns e oficinas, alfândega e unidades habitacionais modestas, onde foram erguidos sobrados com uma configuração bem definida: no térreo funcionava o armazém; e no primeiro andar, a residência do proprietário do estabelecimento.

Em seu Caminhos, sombras e ladeiras Juarez Batista esclarece as tipologias dessas edificações:


O tipo de sobrado predominante nas zonas residenciais na Parahyba foi o de um andar, raramente com uma sobreloja. O sobrado de dois andares foi construção quase exclusivamente da área comercial, do Porto do Capim e das Convertidas, onde o comerciante podia juntar o armazém, a família e os caixeiros, respectivamente no andar térreo e no primeiro e segundo andares. Sobrado que não fosse no Varadouro, na rua Nova ou Direita, era coisa que não se compreendia, que se fazia logo notar pelo exótico de sua posição. (19)


Um inglês chamado Henry Koster, que ficou tão popular entre a gente de Pernambuco a ponto de ser chamado de Henrique da Costa, passou pela capital da Paraíba em outubro de 1810, vindo de Goiana. Em seus apontamentos fez o seguinte registro:


A cidade da Paraíba (lugares de menor população nesse país gozam deste predicamento) tem aproximadamente dois a três mil habitantes, compreendendo a parte baixa. Há vários indícios de que fora mais importante do que atualmente. Trabalham para embelezá-la mas o pouco que se realiza é à custa do Governo, ou melhor, por querer o Governador deixar uma lembrança de sua administração. A principal rua é pavimentada com grandes pedras mas devia ser reparada. As residências têm geralmente um andar, servindo o térreo para loja. Algumas delas possuem janelas com vidros, melhoramento há pouco tempo introduzido no Recife [...]

A parte baixa da cidade é composta de pequenas casas, e situada ao lado de uma espaçosa baía ou lago, formada pela junção de três rios, fazendo a descarga de suas águas no mar por um longo canal. (20)



Dezenove anos depois da passagem do viajante inglês, o Varadouro começou a receber os primeiros lampiões para iluminar seus logradouros.





Nesta e nas três fotos seguintes, outros flagrantes da Rua João Suassuna










Um decreto provincial datado de 30 de junho de 1852 delimitou desta maneira o perímetro urbano da Cidade da Paraíba:



O terreno compreendido no circulo desta Cidade principia do Caes do porto do Varadouro, seguindo para o sudoeste até a ponte do Sanhoá; Ahi subindo pela rua da mesma ponte, e quinze braças ao sul da nova rua Imperial, compreendendo  as cazas, e seus quintaes da rua das trincheiras até a Igreja do Senhor Bom Jezus dos Martirios, seguindo pelas ruas da Palmeira, alagoa, e Thezoura, pela nova estrada que segue d’esta até a Igreja de Nossa Senhora Mãe dos Homens, e dai em direção ao poente compreendendo as duas ruas do Tambiá até o mesmo Caes do porto do Varadouro, compreendendo São Frei Pedro Gonçalves, Zumbi ladeira do tanque, e rua por detras da Matriz desta mesma Cidade. (21)



Em 1859, ano da visita do Imperador Dom Pedro II, o Varadouro era constituído por dezesseis artérias, entre ruas, travessas e becos. À medida que aumentava o número de edificações no bairro – tanto para o comércio quanto para o setor de serviços e mais moradias -, mais crescia em importância para a cidade aquela área como um todo.

O movimento no ancoradouro foi marcante durante todo o século XIX porque as embarcações que ali atracavam abasteciam a cidade dos mais variados gêneros vindos da Europa, dos Estados Unidos e até do Oriente, além, claro, de embarcações provenientes de outras províncias brasileiras.

No velho cais localizava-se o chamado Trapiche dos Franceses. Na Praça 15 de Novembro – que já se chamou Largo do Porto e Largo Dom Pedro II – existiu a balança do peso dos produtos da terra, que pesava basicamente o açúcar oriundo da várzea do Rio Paraíba. Na Praça Álvaro Machado, que até agosto de 1895 se chamava Largo da Gameleira, localizava-se a Escola de Aprendizes Marinheiros; e o Hotel Globo, que passou para o Pátio de São Pedro em 1929, funcionou antes na Álvaro Machado.

Intencionando manter a vocação mercantil de um bairro que abrigava, além disso, um imponente Teatro Santa Roza, hotéis como o Globo e o Luso-brasileiro e uma gama enorme de armazéns e lojas, cogitou-se, já no século XX, em construir um grande porto no Varadouro. Em 1920 foram contratados os trabalhos com a firma inglesa C. H. Walker C.º Ltd. O autor do projeto foi o engenheiro Lucas Bicalho. As obras até que foram iniciadas, mas jamais chegariam a ser concluídas, ainda que, em 1922, o ancoradouro tenha sido testado com a atracação do navio Campinas, um cargueiro de treze pés e noventa e quatro metros de comprimento que pertencia ao Lloyd Brasileiro. Dois anos depois a construção do porto foi suspensa. Falou-se em desvio de dinheiro; e destacou-se que, na verdade, o principal motivo do abandono da obra foi a inadequação do local para abrigar um porto, avaliação essa feita, aliás, ainda em 1921 pelo engenheiro inglês Arthur Harley. Contudo, as obras deixaram um rastro de destruição no bairro: vários prédios foram demolidos para dar lugar a uma grande via de acesso à pretendida zona portuária. (22)




Descida da Rua João Suassuna: todas as praças do Varadouro estão precisando ser revitalizadas










O tapume que aparece nesta foto foi posto para marcar a área onde estava sendo erguido um muro de arrimo por trás do Hotel Globo


Ao longo do século XX o velho e pitoresco Varadouro, em que pese a persistente e dominante presença do comércio em muitas de suas artérias, viu-se sendo a cada dia mais degradado; e observando seus prédios antigos caminharem para a ruína. Nem mesmo a instalação de uma estação ferroviária – ela foi inaugurada em 1943 com o nome de Great Western; e depois foi denominada Rede Ferroviária do Nordeste; e, por fim, Rede Ferroviária Federal – e de um terminal rodoviário fizeram com que o Varadouro fosse revitalizado. Empreendimentos como o Hotel Luso-brasileiro fecharam suas portas. E a localidade ganhou triste fama com a disseminação de prostíbulos, as famigeradas “pensões” que eram frequentadas até por “homens de expressão” na vida social e política. Como recordou um magistrado:

A cidade dormia cedo, com exceção do bairro do Varadouro, onde se movimentava a vida boêmia, com seus cabarés de Antoninha e Royal, os mais frequentados do chamado baixo meretrício. (23)


À medida que a capital se expandia para além do seu núcleo primitivo, este foi sofrendo – muito mais a Cidade Baixa do que a Cidade Alta, porque nesta, dada a ligação com a área expandida, o fundamento comercial fez par com o caráter utilitário que os seus prédios antigos adquiriram como produto para o turismo – com a triste sina que, no Brasil, marcou certos espaços de cidades detentoras de conjuntos de edificações históricas: abandono e deterioração do patrimônio edificado.

Descrevendo uma paisagem que ficou guardada na memória, Jomar Morais de Souto, em seu Itinerário lírico da cidade de João Pessoa, revela outro momento da Cidade Baixa sentindo as perdas irreparáveis:


Lá na Barão do Triunfo,
não triunfa mais ninguém.
Ou triunfa, quando muito,
a sede que a gente tem;
uma sede insaciável
que, às vezes, sabe a jejum:
aquela do paraíso
perdido de cada um.

Varadouro (velhos bondes),
traços mortos – tempos maus...
No Hotel Globo te somes,
sobem almas nos degraus.
Depois, voltam para a ponte,
vão-se embora em suas naus. (24)















Nos arredores do sítio histórico a cidade pobre mostra a sua cara







Por que preservar?



Deveras fascinado pelas origens das cidades eu venho há vários anos fazendo desse interesse uma mola propulsora para as minhas atividades de pesquisa e elaboração de artigos nos quais busco, acima de tudo, mostrar a relação que a população e os órgãos públicos mantêm com os patrimônios históricos, artísticos e culturais existentes no território urbano; e o grau de preservação em que eles se encontram.

Quando comecei a frequentar a Paraíba, em geral, e João Pessoa, em particular, com mais assiduidade – e a ponto de me integrar de tal maneira a essa terra e me considerar tão paraibano quanto pernambucano que declaro, aonde quer que eu vá, parafraseando Alexander Soljenitsin, que Pernambuco e a Paraíba estão juntos na minha pena, no meu coração e nos meus pensamentos -, me vi acompanhando com persistente olhar curioso e fustigador como, aqui e ali, o patrimônio edificado da capital paraibana vem ao longo dos anos sendo vítima do descaso por parte do poder público e de particulares, que, talvez por insensibilidade e/ou interesses escusos, ficam a esperar que tal patrimônio vá aos poucos desaparecendo do cenário urbano para que em seu lugar se erga um portentoso lançamento imobiliário ou algo que o valha.

Numa das passagens mais instigantes do seu As cidades invisíveis, Italo Calvino nos diz, tomando o exemplo de Zaíra, que “a cidade não conta seu passado, ela o contém como as linhas das mãos, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras. (25)

Desnudando o território urbano, vamos conhecendo suas origens, percorrendo seus começos, atravessando sua trajetória tomando como testemunhos sua configuração, o traçado de seus logradouros, o desenho das fachadas de seus prédios, a disposição de seus monumentos, porque a história de uma cidade está em cada pedacinho de tudo que a compõe. E isso é muitíssimo fascinante, uma vez não precisamos ficar presos a um único ponto de partida para darmos início a uma narrativa que intente contar essa história ou uma dessas histórias.

Mesmo sendo uma das cidades mais antigas do Brasil e detentora de um dos conjuntos arquitetônicos mais expressivos dentre os que abrigam exemplares que remontam aos períodos Colonial e Imperial, o sítio histórico da capital da Paraíba só foi reconhecido por lei como tal apenas em 1982, através do Decreto nº 9.484 do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba (Iphaep), no mesmo ano em que Olinda foi consagrada pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade; só muito recentemente – em 6 de dezembro de 2007 -, e sabe-se lá por que isso demorou tanto para acontecer, foi que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) concedeu o título de Patrimônio Nacional ao rico centro histórico paraibano, que é encravado numa colina que dá vista para uma paisagem natural igualmente deslumbrante.


É inegável que os títulos de reconhecimento por meio de instrumentos legais dão certas garantias de proteção aos sítios históricos; contudo, esses instrumentos, sozinhos, não garantem a vigência de uma conservação permanente do patrimônio que se pretendeu proteger, tendo em vista que, por mais que se conceba a criação e a defesa de um patrimônio histórico como um bem para toda a sociedade, existem muitos interesses particulares envolvidos nas tramas de consolidação desse processo que não podem de maneira alguma ser ignorados, sobretudo quando o objeto a ser protegido não é apenas um ou dois prédios, mas toda uma vasta área ocupada por edificações que abrigam estabelecimentos comerciais, residenciais e repartições públicas, além das religiosas. Embora facilitem a captação de recursos que viabilizam ações de revitalização e/ou restauro, órgãos como o Iphan continuam tendo dificuldade não só para disponibilizar financiamentos – considerando a enormidade de tudo que precisa ser conservado em todo o país -, como também para receber projetos que sigam corretamente todos os trâmites exigidos pelas leis e pelas normas técnicas. (26)
















Nem mesmo este prédio que está sendo ocupado por um órgão do governo estadual está bem conservado


Uma das portas de entrada da cidade de João Pessoa, principalmente para quem chega de ônibus vindo de outros estados e municípios, o bairro do Varadouro se constitui na parte de mais antiga ocupação da urbe. É nele que se encontram as primeiras edificações de caráter histórico com as quais o visitante irá se deparar assim que for tomando o rumo da porção mais elevada da cidade. E, caso olhe atentamente, o visitante – não quero dizer turista porque nem todas as pessoas que chegam, mesmo que pela primeira vez, a uma cidade estão ali a passeio – irá se defrontar com praças – Praça Álvaro Machado e Praça 15 de Novembro – e edifícios abandonados – alguns em ruínas, como o imponente prédio que abrigou o Hotel Luso-brasileiro -, com a desordem que se verifica na saída do terminal rodoviário, onde taxistas clandestinos e vendedores ambulantes dificultam a passagem dos pedestres, com o cenário de pobreza das moradias que se estabeleceram para além da linha férrea e com a sujeira que impera no ambiente. Seguramente, não é um atrativo cartão-postal, o cenário com a qual a capital se lhe apresenta.

Como, mais de que um mero visitante, eu sou um pesquisador, fiz algumas visitas ao Varadouro, meses atrás, efetuando apontamentos e fazendo registros fotográficos com o fito de escrever este artigo. Não nego, eu não sou e não consigo ser imparcial. Eu me envolvo com tudo o que investigo. De modo que foi extremamente desolado que eu percorri logradouros desse velho bairro, percebendo que, em meio a vários encantos, vão-se acumulando ali muitos escombros.

De acordo com Doralice Sátiro Maia, data de 1987 o início dos processos de intervenção e de revitalização do patrimônio arquitetônico do centro histórico de João Pessoa por meio de um convênio firmado com a Espanha através da Agência Espanhola de Cooperação Internacional (AECI). Na ocasião deu-se início a um estudo com vistas à elaboração de um plano de revitalização. (27) Dentro do que se pode chamar de “ciclos de preservação”, um segundo período de movimentação na área foi iniciado em 1997, agora contando, ainda segundo Doralice Sátyro Maia, com maior participação das associações e outras organizações sociais, além de comerciantes, artistas locais, grupos interessados na revitalização do lugar e membros do poder público municipal e estadual. Foram captados recursos com agências internacionais como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), através do Programa de Ação para o Desenvolvimento do Turismo no Nordeste (Prodetur). A pesquisadora avaliou que essa segunda fase foi marcada principalmente por uma ênfase dada ao aspecto turístico sem integração com a população local; um viés que, ela lembra bem, marcou na mesma época as intervenções empreendidas no Pelourinho, em Salvador, e no Recife Antigo, na capital pernambucana.








Placa indicando a interdição do Hotel Globo






Este prédio, localizado no Pátio de São Pedro,  está há vários anos abandonado




Igreja de São Frei Pedro Gonçalves


Vista do Pátio de São Pedro

                                                                                                                                                                                                                                                                                      
É muito pertinente, neste instante em que se encontra esta narrativa, fazer você, leitor, recordar que, em linhas atrás, eu fiz menção a projetos de intervenção urbana havidos no início do século XX no Rio de Janeiro e no Recife que também carregaram no seu bojo a proposta de fazer uma cidade para turista ver. Infelizmente esse cunho excludente das parcelas mais pobres da população ainda hoje marca as ações de revitalização de centros históricos no Brasil. Esse processo de recuperação e embelezamento de áreas antigas detentoras de edificações históricas chama-se gentrificação; e o lado daninho desse tipo de intervenção é justamente a supervalorização imobiliária que impossibilita a permanência no local não só de moradores de baixo poder aquisitivo, mas também de pequenos comerciantes, que não têm como arcar com as despesas de aluguel, por exemplo. Para mim, mais do que como uma possibilidade, isso deveria ser tomado como uma determinação inequívoca: as ações de recuperação e conservação de sítios históricos no Brasil só serão efetivamente bem sucedidas quando for promovida a integração da população – seja, principalmente, com os moradores, seja com os comerciantes, seja com os frequentadores – com o local revitalizado, mesmo porque, caso o desejado turista não apareça, quem há de permanecer e vivenciar a cidade serão seus moradores. Fernando Carrión é bastante categórico quanto a essa realidade; segundo ele “Hay que reconocer que la valorización del patrimonio es un medio de defensa de la nacionalidad, de auspicio de la ciudadanía y de fortalecimento de las identidades”. (28)

Compreendo o turismo apenas como uma das vocações dos centros históricos, até porque o turista fuçador, como é o meu caso, não se prende aos denominados “cartões-postais” e muito menos aos  enfadonhos “city tours”. Ele busca a cidade como um todo: quer estar na cidade que normalmente não aparece nos guias de viagem; quer descobrir a cidade que por vezes as próprias municipalidades “desconhecem”; quer ele fazer na cidade o seu próprio roteiro.

Algo que também muito me inquieta em todos os sítios históricos que visito é o que denomino de fachadismo: a conservação pura e simples apenas das fachadas dos prédios, estando os seus interiores completamente modificados. Ora, eu posso dizer que este ou aquele prédio é histórico se o seu interior não tem nada mais da época de sua construção? A mim me parece que é mesmo que vestir uma modelo com peças do guarda-roupa que pertenceu a Grace Kelly e, a partir de então, tratá-la como se ela fosse a própria. Neste aspecto eu sou muito radical: para mim, descaracterizar é também destruir. Mesmo considerando que para conservar centros históricos vivos e pulsantes deve ser mantida neles a maior variedade possível de ocupantes – moradias, estabelecimentos comerciais, centros culturais, repartições públicas, etc. -, venho há anos defendendo a seguinte postura: uma porcentagem dos imóveis dos centros históricos deveria ser preservada com a mesma configuração com a qual foi construída. Desta forma, sim, é que se teriam prédios históricos verdadeiramente preservados.


Sabe-se que a Caixa Econômica Federal ambiciona promover a recuperação de prédios antigos - não necessariamente históricos - de centros urbanos degradados para transformá-los em unidades residenciais. Foi dentro dessa perspectiva que a Prefeitura de João Pessoa lançou, em março de 2007, em convênio com aquele banco federal, o Programa Moradouro, que tinha como objetivo principal transformar os prédios abandonados em edifícios residenciais, possibilitando a “revitalização” do centro histórico. Vista de longe até parece uma medida bem intencionada; ocorre que, decorridos sete anos, tal programa, pelo que se observa por lá, morreu no nascedouro.






















Como eu ia dizendo, percorri inúmeros logradouros do Varadouro com olhos de investigador. Na ocasião encontrei em construção um muro de arrimo por trás do Hotel Globo que, em virtude da obra, estava interditado; ao lado desse hotel, que fica no Pátio de São Pedro, um dos pontos mais encantadores de todo o sítio histórico, existe um prédio desde há muito abandonado. Na singular Rua da Areia um sobrado bastante deteriorado dava um tom melancólico a um logradouro que é dos mais importantes dentro da história de formação da cidade. Em meio ao fachadismo que marca prédios de ruas como Rosario Di Lorenzo, Marquês do Herval e Maciel Pinheiro, me deparei, na Barão do Triunfo, junto ao estabelecimento Dantas & Cia. Ltda, com mais um prédio sem conservação; e, na Av. João Suassuna, com um impressionante conjunto de sete edifícios em estilo art déco em ruínas – esses prédios foram apontados como aqueles que seriam os primeiros a integrar o mencionado Programa Moradouro -; diante deles a Municipalidade fixou uma placa na qual informava que no local seriam realizadas pesquisas arqueológicas ao custo de meros R$ 112.511,74.

O infame passado de demolições que marca a trajetória do sítio histórico da capital paraibana, ao que parece, não serviu de lição para os administradores públicos dos dias atuais. Para além do Varadouro, o acervo arquitetônico se deteriora muito rapidamente a olhos vistos na Av. Guedes Pereira, na Rua Duque de Caxias – onde foi preciso se recorrer a escoras de madeira para sustentar as fachadas de sobrados -, na Av. João Machado e na Rua das Trincheiras; e a impressão que eu tenho é de que as autoridades estão em conluio, tramando o arrasamento do patrimônio edificado da cidade.


Ainda há pouco foi anunciado com toda a pompa e circunstância o resultado do Projeto João Pessoa Sustentável, que contou com a participação da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), do BID, da Caixa Econômica Federal, da Fundação Apolônio Salles de Desenvolvimento (Fadurpe) e da Prefeitura Municipal. A iniciativa resultou na elaboração do Plano de Ação João Pessoa Sustentável, com vistas a pensar como os desafios urbanos – saúde, educação, saneamento, qualidade do ar, ruído, energia, água entre outros – serão enfrentados a curto, médio e longo prazo. De todo louvável ao menos no discurso o tal projeto; resta saber se as iniciativas elencadas no papel serão postas em prática e como a área de ocupação mais antiga da cidade, que é sui generis, será enquadrada nesse processo.



Edifício em ruína na Rua Barão do Triunfo








Av. Guedes Pereira: as fachadas dos prédios que aparecem nesta foto precisam ser revitalizadas. Note-se como a desordem das placas dos estabelecimentos comerciais empobrece e enfeia os edifícios









Este prédio imponente, localizado na Rua da Areia, é um dos vários desse logradouro que estão necessitando ser revitalizados. Ao lado dele o mato toma conta de um terreno onde outrora deve ter existido outra construção







Nos becos descuidados do Varadouro. Nas calçadas deterioradas do Varadouro. Nos prédios antigos ocupados por madeireiras e retíficas do Varadouro. Nas fachadas carcomidas dos edifícios do Varadouro. Nas praças tristonhas do Varadouro. Nas ladeiras e ruas sem asseio do Varadouro... Em tudo ali, gente, está grande parte da história toda da capital paraibana. Urge que tentemos banir dos gabinetes dos órgãos públicos – não só deles, mas principalmente deles, porque é onde são fundamentados os instrumentos legais -, dos escritórios refrigerados das empresas privadas e mesmo das salas das casas de todo e qualquer cidadão, a indiferença e a falta de zelo que fazem com se ignore a ruína de um dado patrimônio como se ele, por completo, não nos dissesse respeito, como se a história dos nossos antepassados não fosse importante para nós e, por isso, pudesse ser botada a perder.

Sim, cada um vive a natureza mesma do seu tempo; é contemporâneo da realidade de seus dias. Mas a mim muito instiga e embriaga me ver imerso em cenários que me remetem a outros tempos; conhecer e saber como a cidade era e como foi transformada não com um sentimento de passadismo – embora naturalmente isso se dê -, mas sobretudo  me sentindo envolvido e perplexo ante a capacidade engenhosa do homem de transformar completamente as paisagens. Tudo isso é muito verdadeiro e intenso, porque à medida que vamos adquirindo afeição por um lugar tendemos a, gilberteanamente falando, compor o nosso guia prático, histórico e sentimental dele.

Qualquer cidadão que seja consciente do valor que têm os elementos históricos, humanos, materiais, paisagísticos e evocativos de outras temporalidades e que percorra algumas ruas que constituem o admirável – sim é isso mesmo – complexo urbano que é o Varadouro, constatará que aquele lugar está passando por um acelerado processo de degradação. Lamentavelmente a organicidade daquele território está perdendo espaço para o desmonte de seu patrimônio edificado; e os órgãos que deveriam zelar por ele parecem desconhecer essa realidade. A situação não é somente preocupante, é, também, muito triste, porque esse desapego, de alguma maneira, reflete a falta de compreensão da real importância que têm esses testemunhos de outras épocas. É preciso que a sociedade civil também se perceba responsável pela conservação da história da cidade. Como enfatizou Haroldo Leitão Camargo no seu breve e ao mesmo tempo muito abrangente Patrimônio histórico e cultural, é necessário “sensibilizar a opinião pública e alcançar políticas efetivas de preservação”. (29)

Tenho sempre repetido que quando se perde um testemunho histórico perde-se, na verdade, não uma, mas várias possibilidades de explicações e esclarecimentos sobre o nosso passado.

Argumentar como pretexto para fazer desaparecer da paisagem urbana edifícios, monumentos e cenários de valor histórico, que as cidades estão em permanente “evolução” e “transformação”, não me parece ser uma explicação que deva legitimar as ações especulatórias que só enxergam o espaço citadino pelo seu valor venal. Caso não nos responsabilizemos e nem nos comprometamos com a salvaguarda dos testemunhos do nosso passado, estaremos condenados a sermos um povo sem memória. Quem não defende a história e nem a memória do lugar onde vive, não tem consciência de si, porque a história e a memória das coisas são, também, a história e a memória de nós mesmos.

Lá longe, o Rio Sanhauá desliza calmamente; corre em mansidão perene para o seu destino. Do lado de cá, com as mãos apoiadas sobre o peitoril da sacada de um sobrado abandonado, e trajando vestes puídas, a senhora Ruína lança seu olhar de sofreguidão por sobre os telhados seculares do Varadouro. Tudo ela deseja e quer. Os indivíduos que passam diariamente por ali – talvez por insensibilidade, talvez por ignorância mesmo – nem notam a presença dela. Mal sabem eles que é com a mais pura indiferença que aquela incansável senhora se alimenta.







Este belo sobrado abandonado encontra-se na esquina da Rua da Areia com a Rua Henrique Siqueira
















Na Praça Antenor Navarro um indicativo de que, realmente, as coisas que envolvem o patrimônio não estão mesmo nada bem. O luto dos funcionários do Iphan é um luto, também, por todos os prédios que estão ameaçados de desaparecer do centro histórico da capital da Paraíba




Hotel Globo: localizado no Pátio de São Pedro, que é uma das coisas mais encantadoras de todo o sítio histórico




Praça 15 de Novembro: o espaço nem parece que está inserido num centro histórico reconhecido como Patrimônio Nacional


Construção do muro de arrimo por trás do Hotel Globo












A degradação do entorno da Praça 15 de Novembro, ao lado da via férrea - como de resto de todo o Varadouro - evidencia como o poder público tem descuidado tanto do patrimônio histórico quanto dos seus habitantes



















Este e os dois outros desenhos  seguintes aparecem no livro Caminhos, sombras e ladeiras, de Juarez Batista

















Nesta e nas oito fotos seguintes, flagrantes da Rua Maciel Pinheiro, uma das mais significativas do Varadouro, que detém ainda um rico acervo arquitetônico











 














Rua Desembargador Paulo Hipácio: a sujeira que está espalhada pelo bairro é apenas um dos indicativos de que a Municipalidade não tem cuidado bem dessa área da cidade



Este prédio fica ao lado da Praça Napoleão Laureano








Nesta e nas fotos seguintes aparecem flagrantes do estado em que se encontra a Praça Napoleão Laureano: ocupação desordenada do espaço por barracas e lixo para todo lado. Tudo isso defronte à Estação Ferroviária





















Notas



1-    Compartilho com Lúcia Leitão Santos o entendimento por ela expressado na página 150 do seu livro Os movimentos desejantes da cidade, de que o conceito de “centro histórico” é discutível, porque determinar que uma área específica da cidade é histórica, pressupõe que as demais que a compõe não têm história; daí por que, neste artigo, o leitor deve considerar as expressões “centro histórico” e “sítio histórico” como correspondentes ao território urbanizado mais antigo da cidade.

2-    Recorrendo ao historiador Horácio de Almeida, Wellington Aguiar nos informa que a cidade foi efetivamente fundada em 4 de novembro de 1585 e tomou o nome de Nossa de Senhora das Neves em memória do desembarque de João Tavares, então escrivão da Câmara e juiz de órfãos em Olinda, que desembarcara naquele sítio em 5 de agosto – dia dedicado àquela evocação de Nossa Senhora -, vindo de Pernambuco a mando do ouvidor-geral Martim Leitão, que assim atendia ao pedido de socorro do índio Piragibe, chefe dos tabajaras, cuja tribo estava em guerra contra os potiguaras, correndo o risco de grande derrota. Diz-nos ainda o autor no seu Cidade de João Pessoa: a memória do tempo: “É de ressaltar-se que a capital paraibana nasceu cidade, sem jamais ter sido vila, como Olinda, São Paulo e tantas outras. Tal privilégio lhe coube por haver sido fundada em Capitania da Coroa, sob expressa determinação do rei” (p. 19). O alvará que determinou sua criação data de 29 de dezembro de 1583. Cabe aqui um comentário feito por Aroldo de Azevedo no estudo Vilas e cidades do Brasil Colonial: “Na verdade – tudo parece indicar -, a concessão do título de cidade a um aglomerado urbano, no período colonial, não constituía um atestado de sua importância demográfica, social ou econômica. Traduzia, muitas vezes, um simples galardão, mera honraria, que circunstâncias de momento poderiam justificar; outras vezes, um simples capricho de caráter pessoal do monarca ou de seus auxiliares, quando não um injustificável acaso. Os exemplos de Filipeia, Cabo Frio e Oeiras falam por si. Diante disso, somos forçados a reconhecer que o papel hoje representado pelas cidades o era, na época, indiferentemente, pelas cidades e pelas vilas” (p. 87). A capital paraibana recebeu cinco nomes desde a sua fundação: inicialmente se chamou Cidade de Nossa Senhora das Neves; em 1588 teve o nome mudado para Filipeia de Nossa Senhora das Neves, em homenagem a Filipe II de Castela; quando a Paraíba foi conquistada pelos holandeses, em 1634, recebeu a denominação de Frederica, em louvor a Frederico, príncipe de Orange; após a expulsão dos invasores, passou a chamar-se Paraíba do Norte, nome que vigorou até setembro de 1930, quando o povo quis homenagear um político assassinado no Recife naquele ano, e a cidade foi batizada de João Pessoa.

3-    Nestor Goulart Reis. Imagens de vilas e cidades do Brasil Colonial, p. 345.

4-    Diz-nos Wellington Aguiar – op. cit. p. 43 -: “A cidade foi tomada a 27 de dezembro de 1634 e libertada a 2 de setembro de 1645. O período que vai de 1645 a 1654 não se conta, pois durante ele viveram os holandeses encurralados na fortaleza do Cabedelo”.

5-    Elias Herckman. Descrição geral da Capitania da Paraíba – 1639, p. 44.

6-    José Luiz Mota Menezes. Algumas notas a respeito da evolução urbana de João Pessoa, p. 17.

7-    Apud. Walfredo Rodríguez. Roteiro sentimental de uma cidade, p. 24. Caro leitor, nas fontes que consultei encontrei a menção de datas diferentes – para a criação do cemitério público, por exemplo – para os mesmos acontecimentos e resolvi escolher uma delas.

8-    José Luiz Mota Menezes comenta que a planta do engenheiro Vasconcellos nos é conhecida através da cópia reduzida de Arthur Januário Gomes de Oliveira, datada de 1905. E completou: “Não sabemos se o copista ampliou o espaço urbano atualizando-o. No entanto ela nos fornece bem uma visão da irregularidade da ocupação das fraldas da colina e das aberturas de ruas do Tenente Coronel Beaurepaire Rohan. É realmente lastimável o traçado das ruas da cidade baixa inclusive a tortuosidade de algumas e mesmo largura, se comparadas à da cidade alta”. Op. cit. p. 23.

9-    Apud. Wellington Aguiar. Op. cit., p. 102.

10-  Foi deste modo que um estudioso do passado dessa urbe, em artigo escrito em 1984, avaliou a paisagem da cidade no período: “[...] Em grande parte do século XIX a visão que vamos encontrar da Cidade da Paraíba, pouco difere da descrição feita pelos primeiros cronistas e viajantes do começo da centúria: cidade pequena, antiquada, carente de diversos equipamentos urbanos e que chama a atenção apenas por aspectos exóticos de sua paisagem natural e peculiaridades de umas poucas edificações [...] Somente nas últimas três décadas do século é que alguns melhoramentos substanciais passam a fazer parte dos equipamentos da cidade”. Aécio Villar de Aquino. “O século XIX e a cidade”. In Wellington Aguiar e José Octávio (orgs.). Uma cidade de quatro séculos: evolução e roteiro, p. 75.

11- Existe uma variada e muito significativa bibliografia que trata desse período e enfoque. A título de introdução recomendo duas obras, uma sobre o que se processou no Rio de Janeiro e outra sobre o que se passou no Recife: A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes, do Nicolau Sevcenko; e Bairro do Recife: entre o Corpo Santo e o Marco Zero, de Cátia Wanderley Lubambo.

12-  Mirando sua cidade Charles Baudelaire a retratou assim em versos do poema “O cisne”:

Paris mudou! porém minha melancolia
É sempre igual: torreões, andaimarias, blocos,
Arrabaldes, em tudo eu vejo alegoria
Minhas lembranças são mais pesadas que socos.
[...]
E na floresta, que meu pobre corpo trilha,
Soa como buzina uma velha lembrança.
Penso no marinheiro esquecido numa ilha...
Nos vencidos de sempre e nos sem esperança!

Charles Baudelaire. As flores do mal. p. 228-229.

Lima Barreto, com a argúcia que lhe era bastante acentuada, pôs em 1909, numa de suas obras ficcionais mais conhecidas, um flagrante daquele movimentado momento de transformação por que passava o Rio de Janeiro; a citação é longa e bastante reveladora:

Nascera a questão dos sapatos obrigatórios de um projeto do Conselho Municipal, que foi aprovado e sancionado, determinando que todos os transeuntes da cidade, todos que saíssem à rua seriam obrigados a vir calçados [...]

Nós invejávamos Buenos Aires imbecilmente. Era como se um literato tivesse inveja dos carros e dos cavalos de um banqueiro. Era o argumento apresentado logo contra os adversários das leis voluptuárias que aparecem pelo tempo: “A Argentina não nos devia vencer; o Rio de Janeiro não podia continuar a ser uma estação de carvão, enquanto Buenos Aires era uma verdadeira capital europeia. Como é que não tínhamos largas avenidas, passeios de carruagens, hotéis de casaca, clubes de jogo?” [...]

Os Haussmanns pululavam. Projetavam-se avenidas; abriam-se squares, delineavam-se palácios, e, como complemento, queriam também uma população catita, limpinha, elegante e branca: cocheiros irrepreensíveis, engraxates de libré, criadas louras, de olhos azuis, com o uniforme como se viam nos jornais de moda da Inglaterra. Foi esse estado de espírito que ditou o famoso projeto dos sapatos.
   
 Lima Barreto. Recordações do escrivão Isaías Caminha, p. 125-126.

Acompanhando com pesar a marcha inexorável do bota-abaixo que tomou o núcleo primitivo do Recife nas primeiras décadas do século XX, o engenheiro-poeta Joaquim Cardozo escreveu em 1924 aqueles que são seguramente os versos mais contundentes que eu conheço – a começar pelo título do poema: “Recife morto” – que buscaram registrar os ciclos de destruição que marcaram velhas cidades brasileiras:


[...]
Recife,
Ao clamor desta hora noturna e mágica,
Vejo-te morto, mutilado, grande,
Pregado à cruz das grandes avenidas.
E as mãos largas e verdes
De madrugada
Te acariciam.

Joaquim Cardozo. Poesia completa e prosa, p. 163.


13-  Wellington Aguiar. Op. cit., p. 315.

14-  Alcides Bezerra. “A urbs e o modernismo”. Apud. José Flávio. Progresso e destruição na cidade da Parahyba, p. 62-63.

15-  Foi ainda na década de 20 que, por muito pouco, a cidade não perdeu também outro monumento histórico, a Casa da Pólvora da Ladeira de São Francisco, recentemente restaurada e que é uma construção do século XVIII. Conta-nos o Cônego Florentino Barbosa na página 199 de sua obra Monumentos históricos e artísticos da Paraíba que, em “1923”, um agiota, que comprara o mencionado prédio, iniciou sua demolição: “Mas em virtude do protesto enérgico do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, o prefeito da capital, dr. J. de Avila Lins, por despacho daquela data mandou impedir a demolição, tencionando adquiri-lo para o município”. Note-se que o Cônego cometeu um equívoco quanto à data, visto que José D’Ávila Lins foi nomeado prefeito em 22 de outubro de 1928; e deixou o cargo em 7 de outubro de 1930. Mas, como vimos, esse D’Ávila Lins promoveu a demolição da Igreja de Nossa Senhora da Conceição em 1929.

16- Adhemar Vidal. "Um seculo de vida parahybana (1825-1925)". In Gilberto Freyre (org.) Livro do Nordeste, p. 141.

17-  José Leal. Guia informativo da cidade de João Pessoa, p. 4.

18-  Walfredo Rodríguez. Op. cit., p. 5.

19-  Juarez Batista. Caminhos, sombras e ladeiras, p. 20. A título de esclarecimento, Porto do Capim é um trecho do Rio Sanhauá, mas não é o Cais do Varadouro, de acordo com Walfredo Rodríguez. A Rua das Convertidas é a atual Maciel Pinheiro; Rua Nova é a Av. General Osório dos nossos dias; e a Rua Direita é a atualmente denominada Rua Duque de Caxias.

20-  Henry Koster. Viagens ao Nordeste do Brasil, p. 69-70.

21-  Apud. Juarez Batista. Op. cit., p. 116. A Igreja do Senhor Bom Jesus dos Martírios teve o seu orago mudado para Nossa Senhora de Lourdes. Mudanças ocorreram também com os nomes das ruas: Rua da Palmeira é a atual Rua Rodrigues de Aquino. Em vez de Rua da Alagoa talvez o correto seja Rua da Lagoa, que passou a se chamar Rua 13 de Maio. E a Rua São Frei Pedro Gonçalves é a que conhecemos como Rua Padre Antônio Pereira.

22-  No livro Porto político, José Joffily fez uma acurada avaliação do caso revelando aqui e ali os jogos de interesses e os inúmeros desacertos que culminaram no “desastrado projeto”, que consumiu muito dinheiro. Não há como não enxergar no fracassado empreendimento uma ligação com as iniciativas grandiloquentes verificadas no Rio de Janeiro e no Recife nas primeiras décadas do século XX; nessas duas cidades uma – a principal, na verdade – das justificativas para as ações de demolição de centenas de prédios dos períodos Colonial e Imperial era aproveitar as obras de melhoramento de seus portos para “modernizar” também o espaço urbano. No caso da capital paraibana a ambição foi maior: pretendeu-se construir um porto. E o projeto, evidentemente, previa a abertura de pelo menos uma grande avenida de acesso da cidade à zona portuária. Leia-se este trecho de uma carta escrita pelo deputado federal Ascendino Carneiro da Cunha e enviada ao paraibano Epitácio Pessoa que, havia pouco, deixara a Presidência da República, e que José Joffily publicou na página 90 de seu estudo:


Rio, 25.4.1923
Dr. Epitácio

As obras do porto que visitei demoradamente não correspondem à expectativa mesmo de quem conhece as dificuldades do serviço. Estou certo de que os engenheiros calcularam com exagerado otimismo os trabalhos necessários e não creio que os realizem como prometeram. A projetada avenida do porto demoliu justamente os melhores prédios da Rua Barão do Triunfo, antiga Estrada do Carro, de modo que a cidade está mais feia.

José Joffily não deixou de registrar também alguns versos que periódicos da época publicavam enfocando o episódio da “dispendiosa aventura portuária”, como estes assinados por um certo Aladino que O Jornal veiculou em 22 de janeiro de 1924:

Tão quieto e deserto está
O porto do Sanhauá,
Que as obras respectivas
(No começo tão ativas!),
Se agora têm existência,
Só se vê da permanência
Da troupe gorda e luzida
Dos engenheiros de fora,
Que flana e faz avenida
A qualquer hora (Op. cit., p. 117).


23-  Carlos Romero. “A missa, a festa e a procissão”. In Wellington Aguiar e José Octávio. Op. cit., p. 232.

24-  Jomar Morais de Souto. Itinerário lírico da cidade de João Pessoa, p. 23.

25-  Italo Calvino. As cidades invisíveis, p. 14-15.

26-  Veja-se, a título de exemplo: Paulo Peixoto. “Só 2% das obras históricas são recuperadas”. São Paulo, Folha de S. Paulo, Cotidiano, 27 de abril de 2014, p. C4.

27-  Doralice Sátyro Maia. Ruas, casas e sobrados da cidade histórica: entre ruínas e embelezamentos, os antigos e os novos usos, fl. 19. Num estudo publicado em 1981, intitulado João Pessoa: crescimento de uma capital, Janete Lins Rodriguez e Martine Droulers fizeram a seguinte observação a respeito do Varadouro: "A construção da estação ferroviária, de outros equipamentos, e, mais recentemente, da nova estação rodoviária marcaram várias fases de remodelação dos prédios ali existentes, mas, em geral, eles se apresentam em péssimo estado de conservação, chegando mesmo a ruínas em alguns casos, resultando num tecido urbano bastante degradado", p. 25.

28-  Fernando Carrión. “Teoria y práctica de los centros históricos”. In César Barros e Evelyne Labanca Corrêa de Araújo. Reabilitação urbana de centralidades metropolitanas, p. 37.

29-  Haroldo Leitão Camargo. Patrimônio histórico e cultural, p. 82.



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Um comentário:

  1. infelizmente, isso não anda por mais por briga de herdeiros, eu fico imaginando queria ter uma casa, e vejo isso todos os dias desde pequeno, sera que existe uma possibilidade de ficar com uma casa dessas, tomando a responsabilizabilidade de restauração e preservação das casas sem mudá-las exteriormente.

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