Por Clênio Sierra de Alcântara
Em julho de 1789 a França foi palco de um acontecimento que de tão significativo para a história da humanidade passou, como um divisor de águas, a demarcar o fim de uma era e o começo de outra: da época Moderna ingressamos na Idade Contemporânea. A Revolução Francesa – e o evento da Queda da Bastilha, a prisão que era o símbolo do malfadado Ancien Régime - e os valores por ela sustentados no lema “Liberdade, igualdade e fraternidade”, correram o mundo como um rastilho de pólvora que ninguém podia frear. Inspirados pelos ideais franceses foram inúmeros os episódios de reivindicação de autonomia que se verificaram para muito além do Velho Mundo, a exemplo da Conjuração Mineira havida no Brasil.
Transcorridos mais de duzentos anos marcados, muitos deles, por guerras que ceifaram milhões de vidas humanas, a divisa “Liberdade, igualdade e fraternidade” permanece na ordem do dia como demanda e como meta para inúmeros países, principalmente para aqueles nos quais o progresso material não foi acompanhado pelo desenvolvimento real daquilo que se convencionou chamar de “processo civilizatório”.
Ontem, pela manhã, no mesmíssimo bairro da Bastilha do marcante episódio de pouco mais de duzentos anos atrás, homens armados, invocando o profeta Maomé, invadiram a sede do periódico Charlie Hebdo e mataram doze pessoas, num flagrante atentado não apenas, como se tem dito, à liberdade de expressão, mas também à liberdade no seu sentido mais amplo e aos ideais igualmente primordiais da igualdade e da fraternidade.
Numa Europa – e num mundo como um todo, mas principalmente lá – que vem há muitos anos fazendo o possível para domar os ímpetos de minorias xenófobas que não querem de maneira nenhuma ver seus países dando abrigo “aos outros” – especialmente se esses tais “outros” forem oriundos de nações cujas populações sejam de maioria muçulmana -, a matança ocorrida ontem em Paris além de reacender o discurso dos extremistas contrários ao multiculturalismo, reforça a falsa ideia por muitos defendida de que o Islã é uma religião do mal, porque uma quantidade enorme de seus seguidores não cessa de pregar o obscurantismo e espalhar o terror pelos quatro cantos do planeta. Para esses fanáticos, que agem dizendo que estão vingando as desonras feitas ao Grande Profeta, os valores sociais e culturais cultivados pelo mundo ocidental – que inclui a liberdade de expressão e o respeito e a igualdade de direitos entre homens e mulheres – são incompatíveis com a leitura que eles fazem do Alcorão, o livro sagrado da religião que eles professam. É um pensamento e uma lógica que os fazem querer impor uma visão única de mundo, destruindo o que eles chamam de “inimigos do Islã”.
Não há como não enxergar nos atos praticados por autodenominados “seguidores de Alá”, uma sanha injustificável que tenta a todo custo disseminar o medo e ideias obscurantistas no seio de todas as sociedades. Eles agem como se não tivessem noção do tanto que maculam a sacralidade da religião que dizem cultuar e honrar; e eles parecem não se dar conta de que a marcha da irracionalidade que capitaneiam não poderá destruir os fundamentos do elevado nível de civilização que até mesmo muitas nações pobres alcançaram. Ao tomarem o terrorismo e a matança de pessoas como elementos basilares de propagação e/ou defesa de um credo, os fundamentalistas, na verdade, expõem quão distantes eles estão dos princípios de tolerância que norteiam a religião deles e as demais que existem.
Estudiosos do comportamento humano costumam dizer que é vã toda tentativa de dissuadir alguém de praticar certo ato, quando ele está ferreamente determinado a praticá-lo. Neste sentido, provavelmente, soarão vãs, para os jihadistas, todas as demonstrações de repúdio às ações terroristas que eles praticam espalhando a morte em eventos-espetáculos. O que não podemos de modo algum fazer é tomar esses ataques como fatos da vida, como algo com o qual não devemos nos ocupar. Não, isso não. Devemos, isso sim, pontuar nossa prática da tolerância para com a diversidade de povos, crenças e tudo o mais, sem descuidar da repreensão e do combate a toda e qualquer postura obscurantista que ponha a humanidade em risco de vida.
Paris, meus caros, não deixará de ser uma festa por conta de um ataque terrorista.
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