25 de fevereiro de 2015

Patrimônio para quem?

Por Clênio Sierra de Alcântara




Fotos: do autor    Orçadas em R$ 3.954.719,14, as obras de restauração da Igreja Matriz do Santíssimo Sacramento de Santo Antônio, localizada na Av. Dantas Barreto, no bairro de Santo Antônio, no Recife, devem ficar prontas até o ano que vem. Tão importante quanto a preservação de um patrimônio histórico, artístico e cultural é difundir em todas as camadas da sociedade um entendimento da necessidade de conservá-lo




Ao longo da maior parte de sua história, desde a sua fundação, em 1937, passando pelos anos em que se consolidou e mudou seu nome de Serviço para Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – de Sphan passou para Iphan – até pouco tempo atrás, o principal órgão responsável pela salvaguarda do patrimônio brasileiro pautou suas diretrizes preservacionistas alijando por completo o povo de suas decisões. Talvez tenha sido em virtude dessa estratégia e/ou reconhecendo esse grande erro, que o Iphan, de uns tempos para cá, através do que a sua direção denominou de “Casa do Patrimônio”, passou essa instituição a implementar em várias cidades onde existem tais “casas”, uma política de trazer as comunidades para as suas dependências com o fito de integrá-las e fazê-las interagir com o que diz respeito a tais questões.


É, indiscutivelmente, uma mudança de rumo. Uns podem até dizer que isso ocorreu tarde demais. Não penso assim, porque acredito que o envolvimento da sociedade como um todo na defesa do patrimônio deve acontecer antes tarde do que nunca, porque sempre compreendi que, sem uma comunhão de forças do Estado com a sociedade, o patrimônio, que é de todos, estará fadado a arruinar-se e desaparecer. Por outro lado, avalio que levará, talvez, bastante tempo para que se consiga disseminar no seio da população discussões e problemáticas dessa natureza. A realidade vem demonstrando que, sem a promoção da chamada “educação patrimonial”, não se difunde entendimentos tanto de pertencimento quanto de valorização do patrimônio seja ele material ou imaterial. Mais do que educar as pessoas para a causa do patrimônio, se faz necessário despertar nas comunidades um vínculo para com ele; é preciso que elas se identifiquem e vejam sentido na ação preservacionista, ampliando o entendimento de que não é só o bem ou a manifestação cultural em si, mas também o brincante, o meio ambiente, os usos, etc., que requerem cuidados de conservação porque são elementos intrinsecamente ligados.








Durante décadas as políticas públicas voltadas para a proteção do patrimônio, no Brasil, vincularam-se – e isso, reconheça-se, era prática vigente na maioria dos países – com muita veemência à salvaguarda do denominado patrimônio edificado: era preciso proteger e conservar “construções importantes” da história nacional. O caráter da nacionalidade implicando, quase sempre, numa ordem de discurso que privilegiava a conservação de vestígios deixados pelas classes dominantes. E poderia ser diferente, uma vez que eram as próprias elites que avaliavam o que tinha de ser preservado ou não? Curioso é notar que, historicamente, as elites - intelectual e financeira - não compartilharam necessariamente do mesmo entendimento do que deveria ser preservado. Tanto isso é verdade que, por exemplo, ainda hoje grandes incorporadoras e construtoras lançam seus tentáculos sobre prédios e áreas de reconhecido valor histórico e cultural. Alguns empresários, para posarem de bons moços, chegam mesmo a promover a permanência de parte da edificação antiga como forma de mostrar que têm certo “comprometimento com as coisas do passado”, tal qual foi feito com um antigo convento, no Recife, que deu lugar a um shopping. Agora mesmo a cidade de Garanhuns se depara com o fato de que um grupo empresarial adquiriu o prédio onde durante muito anos esteve instalada a Rádio Jornal; já na capital pernambucana um gigantesco projeto imobiliário será implantado numa das áreas de ocupação mais antiga da cidade, o tradicional bairro de São José. Nesses, como em tantos outros casos, uma questão se impõe: por que não se luta pela preservação da memória de nossas cidades?






Muito embora as iniciativas de salvaguarda do patrimônio verificadas na década de 30, no Brasil, não tenham sido pensadas, até onde se sabe, com o propósito de torná-lo objeto de incremento para o turismo, é bastante revelador como o transcurso do tempo acabou por fazer dele um dos principais sustentáculos da indústria turística. Em seu por demais esclarecedor O que é patrimônio histórico, lançado pela Editora Brasiliense, em 1981, Carlos A. C. Lemos observou que “O turismo nasceu em volta de bens culturais paisagísticos e arquitetônicos preservados, e hoje, cada vez mais, vai exigindo a criação de mais cenários, de mais exotismos, provocando quadros artificiais, inclusive” (p. 30). Passados mais de trinta anos dessa análise feita por Carlos Lemos, constatamos quão poderosa se tornou tal indústria quando verificamos como muitas cidades se tornaram reféns de operadoras de turismo que chegam quase a determinar o que os seus clientes devem ou não visitar dentro daquilo que conhecemos como city tour. E querendo entrar nesse circuito há casos de Prefeituras que resolveram de uma hora para outra “redescobrir” a história dos seus municípios a fim de torná-los viáveis para o setor turístico. Ou seja: não se pensa a preservação do patrimônio somente por seu valor de face; a ele também se ligam simbolismos e múltiplos significados que as vivências cotidianas nele inseriram. O que, infelizmente, algumas vezes ocorre, é uma falta de cuidado em se promover restauros e revitalizações com as técnicas e conhecimentos precisos; pensa-se que basta uma demão de tinta de cor berrante para tudo ficar bonitinho e atrativo; é o que os iniciados chamam de fachadismo.






Noutra frente, algumas cidades vêm se desfazendo do seu patrimônio à medida que cresce de modo preocupante, a indiferença de seus habitantes para com a história delas. Vive-se um tempo em que, lamentavelmente, os olhos parecem só vislumbrar o futuro, ignorando o passado. Em que pesem as iniciativas dos órgãos de preservação – o federal e os estaduais -, é preciso manter de forma permanente um diálogo honesto com a sociedade; e tão importante quanto responder à questão “para quem deve ser preservado o patrimônio?”, é necessário, também – e principalmente -, esclarecer por que devemos a todo tempo envidar esforços para preservá-lo.


(Artigo publicado também in O Monitor [Garanhuns], Nº 172, março de 2015, Opnião p. 2)

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