13 de março de 2015

As feiras livres e a memória social das cidades

Por Clênio Sierra de Alcântara




Foto: do autor         Uma feira livre, com sua profusão de cheiros, cores e sabores, com seus bancos de madeira cobertos de lona e plástico, com seu vuco-vuco, com seus personagens por vezes curiosos e com o tanto que tudo dela diz dos lugares onde é armada, é um dos acontecimentos mais vibrantes do cenário urbano brasileiro, em geral, e nordestino, em particular



À medida que as quitandas e mercearias de bairros foram diminuindo e/ou desaparecendo da paisagem urbana em virtude do surgimento e multiplicação de supermercados e hipermercados com suas seções de hortifrutigranjeiros, as feiras livres que, desde sempre, figuraram como um dos grandes acontecimentos sociais das cidades onde ocorriam - e ainda ocorrem -, também se viram esvaziadas do contingente que para elas afluíam semanalmente. Muito embora não tenham provocado o desaparecimento das feiras, é fato que aqueles novos estabelecimentos comerciais, que oferecem num mesmo lugar uma variedade imensa de outros produtos e não só alimentos – além, claro, da possibilidade de receber o pagamento por meio de cartões e tíquetes de alimentação -, tiraram delas um percentual elevado de pessoas, algo que um frequentador habitual de feiras, como é o meu caso, vem observando há vários anos.

Nasci numa cidade – Abreu e Lima, localizada na Região Metropolitana do Recife – onde a feira livre era o seu principal acontecimento social, a exemplo do que se via em inúmeros outros municípios nordestinos. A feira abreulimense ocupava inteiramente a Praça Antônio Vitalino e ainda se derramava por várias ruas. E o seu potencial econômico era tão forte que atraía consumidores de cidades vizinhas. Tenho quarenta e um anos de idade e posso dizer que vivenciei uma das fases áureas dessa feira que comecei a frequentar muito menino; e, talvez, derive daí o fascínio que eu sinto até hoje por essa modalidade comercial.

No tempo de eu menino a feira livre de Abreu e Lima – ela acontecia aos domingos e, depois, passou para os sábados – era tomada por um verdadeiro formigueiro humano que entrecortava os bancos de madeira com cobertura de plástico e lona e driblava com cuidado o espaço para não pisar no tanto de produtos que também eram arrumados no chão mesmo. Naquele tempo o vendedor de garrafadas, que levava jiboias enormes para atrair a atenção de quem passava e que falava pelos cotovelos – daí a expressão “fala mais do que o homem da cobra” –, aparecia quase toda semana. Quartinhas, mealheiros, panelas, fogareiros e uma infinidade de outros objetos feitos de barro eram dispostos também no chão. O homem dos pastéis era uma das alegrias da criançada. A rádio comunitária, chamada Divulgadora Musical Ipiranga, fazia o seu serviço de utilidade pública - informava sobre documentos perdidos e achados, por exemplo - além de pôr no ar canções para embalar o bulício. Ciganas circulavam por lá querendo ler as mãos das pessoas mediante algum dinheiro. Violeiros também andavam por ali querendo ganhar uns trocados. A mulher dos beijus e das tapiocas incensava a atmosfera com o cheiro bom dos seus preparos. Meu avô Biu Belo vendia laranjas lançadas sobre uma lona bem defronte ao Clube Vera Cruz. O Mercado Público fervilhava de gente...

Hoje nada disso existe mais materialmente. A tradicional feira livre abreulimense que, havia mais de uma década, perdera muito dos seus encantos e que guardava, ainda assim, grande parte da memória social da cidade que a abrigava, só existe agora como lembrança. A Praça Antônio Vitalino foi inteiramente esvaziada em 2011 e até o Mercado Público foi varrido do mapa como se nenhuma importância tivesse na história do município.

Em minhas andanças eu já estive em diversas feiras livres aqui em Pernambuco e na Paraíba sempre carregando comigo o desejo de busca pelo pitoresco e pelas tradições dos lugares aos quais eu chego. Conhecendo as histórias das localidades e ouvindo depoimentos de seus moradores ficou nítido para mim o entendimento de que a feira livre que ainda resiste é tão somente um arremedo da que um dia existiu. E, acompanhando o apequenamento das feiras, os mercados públicos que sempre funcionaram como complementos delas, estão desaparecendo como tais e os prédios, em alguns casos, sendo transformados em centros culturais ou ganhando outros usos, quando não são simplesmente abandonados e/ou demolidos.


Locais de comercialização de produtos os mais variados e também de encontro de amigos onde se fixam relações por vezes de camaradagem entre os feirantes e seus fregueses, as feiras livres guardam no seu bojo um sem-número de tradições e manifestações culturais que se expressam desde a oferta de uma dada iguaria até a confecção e consumo de um determinado objeto feito de modo artesanal e que se liga a uma série de costumes. O enfraquecimento das feiras livres de algum modo também debilita o pequeno produtor rural, porque nem sempre ele tem outro canal para onde possa destinar sua produção. Ao sumirem da paisagem urbana as feiras livres estão apagando muito da memória social das cidades onde um dia elas existiram como principal evento comunitário.


(Artigo publicado também in O Monitor [Garanhuns], nº 177, agosto de 2015, Opinião, p. 2).

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