Por Clênio Sierra de
Alcântara
Foto: Gabriela Lisboa A defesa do patrimônio histórico, artístico e cultural de um país deve ser tratado também como prioridade, porque esses valores estão no fundamento da nacionalidade |
Era uma vez uma casa muito
grande fincada num outeiro do bairro de Apipucos, no Recife, cercada por uma
vegetação luxuriante e com vista para a várzea do Rio Capibaribe. Era uma vez
uma casa cujo ar senhorial evocava um passado marcado quase todo ele pela chamada
“civilização do açúcar”. Era uma vez uma casa onde morou, durante quase cinquenta
anos, um intelectual refinadíssimo cujo apego ao ethos brasileiro, ao povo e às coisas aparentemente sem importância
que, ao fim e ao cabo, estão na essência da formação deste país, o levou a
escrever livros e desenvolver estudos que sempre buscavam fazer com que as
gentes daqui e de alhures compreendessem os fundamentos desta nação, como se
ele estivesse sempre tentando redescobri-la. Era uma vez uma casa que recebia a
visita de muitos artistas, jornalistas, políticos e estudiosos que vinham de
várias partes do mundo para ver e ouvir o seu ilustre morador e, eventualmente,
provar do seu mítico conhaque de pitanga.
Em que pese o tom fabular
que se quis imprimir ao início desta narrativa, a casa em questão existe: é a
Vivenda de Santo Antônio de Apipucos, que foi transformada na Casa-museu
Magdalena e Gilberto Freyre; e que constitui um dos espaços mais carregados de
memórias dentre as instituições culturais recifenses. Muito embora dispense
apresentações, porque Gilberto Freyre foi um intelectual de relevância
internacional, creio que cabe dizer aqui, para os não iniciados, que esse recifense
escreveu estudos que se tornaram clássicos, como Ordem e progresso, Sobrados e
mucambos e Casa-grande & senzala
que puseram – particularmente este último – o Brasil em lugar de destaque no
cenário mundial, porque propuseram um olhar diferente para o debate do tema
mestiçagem nas sociedades, em geral, e brasileira, em particular, fazendo ver
que, longe de ser um aspecto negativo, a mistura de raças era algo a ser
celebrado. Para se ter ideia do quão revolucionário isso foi – e eu não vou me
alongar aqui citando as teorias do Conde de Gobineau e de como elas se estabeleceram
no pensamento de gente do porte de um Oliveira Vianna e de um Euclides da Cunha
nas primeiras décadas do século passado no universo intelectual brasileiro -,
basta que se diga que, no ano em que Casa-grande
& senzala foi publicado, 1933, Adolf Hitler assumiu o poder na Alemanha
com suas ideias de superioridade da raça ariana cujas consequências todos nós
sabemos quais foram.
A Casa-museu Magdalena e
Gilberto Freyre, com todo o seu mobiliário, com todos os seus livros e quadros
e objetos tantos que Gilberto guardou ao longo dos anos, é um espaço que vale
muitíssimo a pena conhecer; e não apenas por ter sido a residência de
intelectual tão ilustre, mas também como experiência pessoal de ampliação de
nosso entendimento de mundo, porque aquela casa é, de certa maneira, uma casa
brasileira no sentido de que sua existência é uma confirmação de parte do nosso
passado, de nossa história. Recordo que num artigo que escreveu para o Diario de Pernambuco, publicado em 13 de
maio de 1988 – o texto se chama “Os galos de Apipucos” e foi reproduzido no
livro Gilberto Freyre ou O ideário
brasileiro, organizado por Ângela Bezerra de Castro e que foi lançado pela
Topbooks Editora, do Rio de Janeiro, em 2005 -, Odilon Ribeiro Coutinho, um dos
mais próximos amigos de Gilberto que foi apresentado a ele por Edson Nery da
Fonseca, registrou assim: “Apipucos foi para Gilberto Freyre o retiro, o
refúgio, o remanso, a referência quase da vida inteira. Era o mosteiro
particular em que encontrava o silêncio e a solidão reclamados pela ânsia de
flagrar a intimidade da vida de sua gente e de divisar, no futuro, o destino de
seu povo”.
Mestre de muitos mestres e
admirado por todos aqueles que reconhecem e compreendem a dimensão de sua obra,
Gilberto Freyre teve parte de sua memória subtraída por bandidos que invadiram
a Vivenda de Santo Antônio em duas ocasiões no mês passado: dias 16 - Gilberto nasceu num dia 15 de março – e 27. E
reviraram gavetas e destruíram mostruários e levaram inúmeros objetos que
compunham o acervo, deixando um rastro de sangue – um dos delinquentes deve ter
se cortado quando quebrou os vidros dos mostruários – e desolação. Essa
profanação de um lugar difusor de conhecimento foi algo lamentável. E
lamentável não só porque se tratou da casa onde morou o Mestre de Apipucos
porque, sabemos, nós que lidamos com esses meios, que a falta de segurança nas
instituições culturais no Brasil é de uma extensão espantosa. Daí por que
costumamos dizer que o nosso patrimônio histórico, artístico e cultural vive à
mercê da ação de grupos organizados ou não que facilmente conseguem subtrair
das instituições o que lhes interessa. O que é triste neste caso é saber que as
ocorrências de invasão havidas no mês de março naquela casa não foram as
primeiras investidas que se deram ali; a residência foi alvo da ação de ladrões
em anos passados e, no entanto, como se viu, não montou nenhum aparato eficaz
de segurança para coibir a repetição de tais acontecimentos.
Eu bem sei que aqui em
Pernambuco existe uma leva considerável de intelectualoides que gostaria de ver
a Vivenda de Santo Antônio de Apipucos ser varrida por completo do mapa – é uma
gente que se comporta como se o autor de Região
e tradição tivesse sido um genocida e que não se conforma com o fato de
Gilberto Freyre ter alcançado a projeção que alcançou com seus estudos
originais e inovadores e por conta de posicionamentos frente ao establishment que ele teve coragem de
assumir. Contudo, penso que interesses paroquiais não devem se sobrepor ao
interesse geral que a vida e a obra do
sociólogo-antropólogo-historiador-escritor despertam porque fundamentaram um
pensamento voltado para o entendimento da identidade nacional brasileira.
Caso não se estabeleça uma
estrutura mínima de segurança no local, a Vivenda de Santo Antônio de Apipucos,
que é um patrimônio nacional, continuará à mercê de bandidos que, orientados ou
não, estão investindo contra a permanência de uma instituição que guarda não só
a memória do seu antigo morador como também parte da memória do nosso país.
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