2 de abril de 2015

Vivenda de Santo Antônio de Apipucos: um patrimônio ameaçado



Por Clênio Sierra de Alcântara



Foto: Gabriela Lisboa     A defesa do patrimônio histórico, artístico e cultural de um país deve ser tratado também como prioridade, porque esses valores estão no fundamento da nacionalidade         



Era uma vez uma casa muito grande fincada num outeiro do bairro de Apipucos, no Recife, cercada por uma vegetação luxuriante e com vista para a várzea do Rio Capibaribe. Era uma vez uma casa cujo ar senhorial evocava um passado marcado quase todo ele pela chamada “civilização do açúcar”. Era uma vez uma casa onde morou, durante quase cinquenta anos, um intelectual refinadíssimo cujo apego ao ethos brasileiro, ao povo e às coisas aparentemente sem importância que, ao fim e ao cabo, estão na essência da formação deste país, o levou a escrever livros e desenvolver estudos que sempre buscavam fazer com que as gentes daqui e de alhures compreendessem os fundamentos desta nação, como se ele estivesse sempre tentando redescobri-la. Era uma vez uma casa que recebia a visita de muitos artistas, jornalistas, políticos e estudiosos que vinham de várias partes do mundo para ver e ouvir o seu ilustre morador e, eventualmente, provar do seu mítico conhaque de pitanga.

Em que pese o tom fabular que se quis imprimir ao início desta narrativa, a casa em questão existe: é a Vivenda de Santo Antônio de Apipucos, que foi transformada na Casa-museu Magdalena e Gilberto Freyre; e que constitui um dos espaços mais carregados de memórias dentre as instituições culturais recifenses. Muito embora dispense apresentações, porque Gilberto Freyre foi um intelectual de relevância internacional, creio que cabe dizer aqui, para os não iniciados, que esse recifense escreveu estudos que se tornaram clássicos, como Ordem e progresso, Sobrados e mucambos e Casa-grande & senzala que puseram – particularmente este último – o Brasil em lugar de destaque no cenário mundial, porque propuseram um olhar diferente para o debate do tema mestiçagem nas sociedades, em geral, e brasileira, em particular, fazendo ver que, longe de ser um aspecto negativo, a mistura de raças era algo a ser celebrado. Para se ter ideia do quão revolucionário isso foi – e eu não vou me alongar aqui citando as teorias do Conde de Gobineau e de como elas se estabeleceram no pensamento de gente do porte de um Oliveira Vianna e de um Euclides da Cunha nas primeiras décadas do século passado no universo intelectual brasileiro -, basta que se diga que, no ano em que Casa-grande & senzala foi publicado, 1933, Adolf Hitler assumiu o poder na Alemanha com suas ideias de superioridade da raça ariana cujas consequências todos nós sabemos quais foram.

A Casa-museu Magdalena e Gilberto Freyre, com todo o seu mobiliário, com todos os seus livros e quadros e objetos tantos que Gilberto guardou ao longo dos anos, é um espaço que vale muitíssimo a pena conhecer; e não apenas por ter sido a residência de intelectual tão ilustre, mas também como experiência pessoal de ampliação de nosso entendimento de mundo, porque aquela casa é, de certa maneira, uma casa brasileira no sentido de que sua existência é uma confirmação de parte do nosso passado, de nossa história. Recordo que num artigo que escreveu para o Diario de Pernambuco, publicado em 13 de maio de 1988 – o texto se chama “Os galos de Apipucos” e foi reproduzido no livro Gilberto Freyre ou O ideário brasileiro, organizado por Ângela Bezerra de Castro e que foi lançado pela Topbooks Editora, do Rio de Janeiro, em 2005 -, Odilon Ribeiro Coutinho, um dos mais próximos amigos de Gilberto que foi apresentado a ele por Edson Nery da Fonseca, registrou assim: “Apipucos foi para Gilberto Freyre o retiro, o refúgio, o remanso, a referência quase da vida inteira. Era o mosteiro particular em que encontrava o silêncio e a solidão reclamados pela ânsia de flagrar a intimidade da vida de sua gente e de divisar, no futuro, o destino de seu povo”.

Mestre de muitos mestres e admirado por todos aqueles que reconhecem e compreendem a dimensão de sua obra, Gilberto Freyre teve parte de sua memória subtraída por bandidos que invadiram a Vivenda de Santo Antônio em duas ocasiões no mês passado: dias 16 -  Gilberto nasceu num dia 15 de março – e 27. E reviraram gavetas e destruíram mostruários e levaram inúmeros objetos que compunham o acervo, deixando um rastro de sangue – um dos delinquentes deve ter se cortado quando quebrou os vidros dos mostruários – e desolação. Essa profanação de um lugar difusor de conhecimento foi algo lamentável. E lamentável não só porque se tratou da casa onde morou o Mestre de Apipucos porque, sabemos, nós que lidamos com esses meios, que a falta de segurança nas instituições culturais no Brasil é de uma extensão espantosa. Daí por que costumamos dizer que o nosso patrimônio histórico, artístico e cultural vive à mercê da ação de grupos organizados ou não que facilmente conseguem subtrair das instituições o que lhes interessa. O que é triste neste caso é saber que as ocorrências de invasão havidas no mês de março naquela casa não foram as primeiras investidas que se deram ali; a residência foi alvo da ação de ladrões em anos passados e, no entanto, como se viu, não montou nenhum aparato eficaz de segurança para coibir a repetição de tais acontecimentos.

Eu bem sei que aqui em Pernambuco existe uma leva considerável de intelectualoides que gostaria de ver a Vivenda de Santo Antônio de Apipucos ser varrida por completo do mapa – é uma gente que se comporta como se o autor de Região e tradição tivesse sido um genocida e que não se conforma com o fato de Gilberto Freyre ter alcançado a projeção que alcançou com seus estudos originais e inovadores e por conta de posicionamentos frente ao establishment que ele teve coragem de assumir. Contudo, penso que interesses paroquiais não devem se sobrepor ao interesse geral que a vida e a obra do sociólogo-antropólogo-historiador-escritor despertam porque fundamentaram um pensamento voltado para o entendimento da identidade nacional brasileira.


Caso não se estabeleça uma estrutura mínima de segurança no local, a Vivenda de Santo Antônio de Apipucos, que é um patrimônio nacional, continuará à mercê de bandidos que, orientados ou não, estão investindo contra a permanência de uma instituição que guarda não só a memória do seu antigo morador como também parte da memória do nosso país.

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