Por Clênio Sierra de Alcântara
Onde
queres o ato, eu sou espírito
E onde
queres ternura, eu sou tesão
Onde
queres o livre, decassílabo
E onde
buscas o anjo, sou mulher
Onde
queres prazer, sou o que dói
Onde
queres tortura, mansidão
Onde
queres um lar, revolução
E onde
queres bandido, sou herói.
O
quereres. Caetano Veloso
Eis a
exortação: “Resistirás como um impávido colosso a todo preconceito e a toda
tirania machista – e também feminista – que irão ser postos em teu caminho. Não
fraquejes. Ergas sempre a tua cabeça e segues!”. O que você acabou de ler não
tem registro na vida de Astolfo Barroso Pinto, o conhecidíssimo travesti
Rogéria, que faleceu na última segunda-feira, vitimado por complicações
decorrentes de uma infecção urinária. Tal exortação é uma elaboração do meu
pensamento, por eu acreditar que alguém, em algum dado momento, diz de si para
si ou dirige palavras de encorajamento como aquelas, a pessoas como Rogéria,
cuja existência por si só é uma transgressão, sobretudo se ela chega ao mundo numa
sociedade, como a brasileira, cujos esteios estão inexoravelmente fincados em
terreno onde viceja uma feroz brutalidade para com aqueles que nascem com o
sexo masculino e ao longo de sua vida vai percebendo que toda a sua força será
vã para lutar contra uma natureza íntima e personalíssima que afina a sua voz e
lhe deixa com trejeitos só aceitos quando pertencentes a indivíduos do sexo
oposto.
Nos últimos
anos segmentos da sociedade vêm hercúlea e tenazmente tentando fazer ecoar na
grande massa o entendimento de que masculino não é sinônimo de homem, assim
como feminino e mulher não têm o mesmo significado; que os gêneros homem e
mulher são construções culturais; e que é uma entre tantas convenções sociais
dizer que quem nasceu com um pênis ou uma vagina entre as pernas deve exercer
somente este e aquele papel na sociedade, vestir isto e aquilo, comportar-se
desta e daquela maneira e, principalmente, que só pode manter conjunção carnal
se for para unir um pênis a uma vagina. E pronto, estamos resolvidos. E que se
danem os desejos, as aflições e as inadequações aos receituários, normas e convenções
sociais de cada um, como se existisse uma lei determinando que tem de ser assim
e ai de quem ousar contestá-la.
Existem
pessoas que passam pela vida sem se dar conta do papel extremamente importante
que elas tiveram no seio da sociedade em que viveram. Mas este não era o caso
da Rogéria, creio eu, porque ela era um indivíduo que, muito embora entoasse com
plena vivacidade la chanson française
“La vie em rose”, sabia perfeitamente que a vida dos homossexuais neste país e
em outros tantos estava, como ainda está, mais para o roxo dos hematomas
resultantes das agressões físicas e do vermelho deixado pelos tiros e facadas do
que propriamente para o cor-de-rosa. Quem assistiu ao documentário Divinas
divas, dirigido pela atriz Leandra Leal, pôde ver quão pedregosa e por vezes
arriscada e hostil foi a trajetória de vários travestis como Eloina dos
Leopardos, Jane Di Castro e a própria Rogéria para se estabelecerem num tempo
em que o machismo estava recrudescido pela ditadura militar então em voga, o
que só fazia acentuar o entendimento de que ser homossexual era por si mesmo
ser considerado a escória, o lixo da sociedade, e ser travesti, significava
necessariamente ganhar a vida com a prostituição – mesmo a prostituição sexual,
sob a ótica patriarcal e machista, além de não ser digna, só pode ser exercida
por mulheres, digo, por pessoas que nasceram com o sexo feminino. Dito isso,
enquanto atuou em espetáculos aqui no Brasil e até na França, Rogéria, de
alguma forma exercia o que eu denomino de “autoridade de existência”, que é a
ação do indivíduo de se impor e de se afirmar perante a sociedade pelo que ele
é – homossexual, deficiente físico, negro, homem, mulher, transgênero,
bissexual, etc. – e fazendo disso o
leitmotiv de seu existir.
Quando
Rogéria aparecia na TV bem articulada não era para estabelecer, como dizem
tantos, um padrão de comportamento, uma sem-vergonhice e uma maneira errada de
viver. Não era nada disso. Ao aparecer sempre fulgurante e esvoaçante Rogéria
estava ali para afirmar que ela era tudo aquilo que nós víamos e que nenhum preconceito,
maledicência ou algo que o valha iriam arrancar de dentro dela a mulher que ela
era. De tal modo que a sua existência não marginal – eis um ponto-chave, porque
o coro dos preconceituosos, não esclarecidos e mal resolvidos anseia ver sempre
os “anormais” na sarjeta e não aceitam que os “pervertidos” sejam pessoas
financeira, profissional e afetivamente bem-sucedidas – era algo que pouco a
pouco se impôs corajosa e incansavelmente sobre todas as coisas ruins que a
mente humana é capaz de conceber e pôr em prática contra pessoas como ela, como
bem deixam ver as estatísticas estarrecedoras que põem o Brasil entre aqueles
países onde mais se matam homossexuais pelo fato de eles serem homossexuais.
Rogéria
não era um símbolo sexual como durante certo tempo o foi a transexual Roberta
Close, que chegou a estampar páginas da revista Playboy. Rogéria não se elegeu para mandatos políticos como
Clodovil Hernandez, que passou pelo Congresso Nacional sem ser notado. Rogéria
era uma atriz de amplos recursos que cantava muito bem e que fazia do palco uma
extensão de sua morada, talvez, porque fosse nele que ela, como diva que era,
se sentisse completamente realizada.
Num tempo
em que os fundamentalistas, em geral, e os religiosos, em particular, continuam
a pregar o obscurantismo e/ou o esclarecimento que lhes apraz e a hipocrisia
permanece na ordem do dia, indivíduos corajosos e seguros de si, como o foi a
Rogéria, me desculpem o mais que batido clichê, fazem muita, muita falta.
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