7 de setembro de 2017

Ele também se chamava Rogéria

Por Clênio Sierra de Alcântara


Onde queres o ato, eu sou espírito
E onde queres ternura, eu sou tesão
Onde queres o livre, decassílabo
E onde buscas o anjo, sou mulher
Onde queres prazer, sou o que dói
Onde queres tortura, mansidão
Onde queres um lar, revolução
E onde queres bandido, sou herói.
                                                           O quereres. Caetano Veloso 



Foto: Marcelo Theobald   Ele ou ela? Astolfo/Rogéria não se encaixava nas convenções sociais e nos discursos hipócritas que tentam padronizar de todas as formas a singularidade presente em cada pessoa. Independência ou morte!
          

Eis a exortação: “Resistirás como um impávido colosso a todo preconceito e a toda tirania machista – e também feminista – que irão ser postos em teu caminho. Não fraquejes. Ergas sempre a tua cabeça e segues!”. O que você acabou de ler não tem registro na vida de Astolfo Barroso Pinto, o conhecidíssimo travesti Rogéria, que faleceu na última segunda-feira, vitimado por complicações decorrentes de uma infecção urinária. Tal exortação é uma elaboração do meu pensamento, por eu acreditar que alguém, em algum dado momento, diz de si para si ou dirige palavras de encorajamento como aquelas, a pessoas como Rogéria, cuja existência por si só é uma transgressão, sobretudo se ela chega ao mundo numa sociedade, como a brasileira, cujos esteios estão inexoravelmente fincados em terreno onde viceja uma feroz brutalidade para com aqueles que nascem com o sexo masculino e ao longo de sua vida vai percebendo que toda a sua força será vã para lutar contra uma natureza íntima e personalíssima que afina a sua voz e lhe deixa com trejeitos só aceitos quando pertencentes a indivíduos do sexo oposto.

Nos últimos anos segmentos da sociedade vêm hercúlea e tenazmente tentando fazer ecoar na grande massa o entendimento de que masculino não é sinônimo de homem, assim como feminino e mulher não têm o mesmo significado; que os gêneros homem e mulher são construções culturais; e que é uma entre tantas convenções sociais dizer que quem nasceu com um pênis ou uma vagina entre as pernas deve exercer somente este e aquele papel na sociedade, vestir isto e aquilo, comportar-se desta e daquela maneira e, principalmente, que só pode manter conjunção carnal se for para unir um pênis a uma vagina. E pronto, estamos resolvidos. E que se danem os desejos, as aflições e as inadequações aos receituários, normas e convenções sociais de cada um, como se existisse uma lei determinando que tem de ser assim e ai de quem ousar contestá-la.

Existem pessoas que passam pela vida sem se dar conta do papel extremamente importante que elas tiveram no seio da sociedade em que viveram. Mas este não era o caso da Rogéria, creio eu, porque ela era um indivíduo que, muito embora entoasse com plena vivacidade la chanson française “La vie em rose”, sabia perfeitamente que a vida dos homossexuais neste país e em outros tantos estava, como ainda está, mais para o roxo dos hematomas resultantes das agressões físicas e do vermelho deixado pelos tiros e facadas do que propriamente para o cor-de-rosa. Quem assistiu ao documentário Divinas divas, dirigido pela atriz Leandra Leal, pôde ver quão pedregosa e por vezes arriscada e hostil foi a trajetória de vários travestis como Eloina dos Leopardos, Jane Di Castro e a própria Rogéria para se estabelecerem num tempo em que o machismo estava recrudescido pela ditadura militar então em voga, o que só fazia acentuar o entendimento de que ser homossexual era por si mesmo ser considerado a escória, o lixo da sociedade, e ser travesti, significava necessariamente ganhar a vida com a prostituição – mesmo a prostituição sexual, sob a ótica patriarcal e machista, além de não ser digna, só pode ser exercida por mulheres, digo, por pessoas que nasceram com o sexo feminino. Dito isso, enquanto atuou em espetáculos aqui no Brasil e até na França, Rogéria, de alguma forma exercia o que eu denomino de “autoridade de existência”, que é a ação do indivíduo de se impor e de se afirmar perante a sociedade pelo que ele é – homossexual, deficiente físico, negro, homem, mulher, transgênero, bissexual, etc. – e fazendo disso o leitmotiv de seu existir.

Quando Rogéria aparecia na TV bem articulada não era para estabelecer, como dizem tantos, um padrão de comportamento, uma sem-vergonhice e uma maneira errada de viver. Não era nada disso. Ao aparecer sempre fulgurante e esvoaçante Rogéria estava ali para afirmar que ela era tudo aquilo que nós víamos e que nenhum preconceito, maledicência ou algo que o valha iriam arrancar de dentro dela a mulher que ela era. De tal modo que a sua existência não marginal – eis um ponto-chave, porque o coro dos preconceituosos, não esclarecidos e mal resolvidos anseia ver sempre os “anormais” na sarjeta e não aceitam que os “pervertidos” sejam pessoas financeira, profissional e afetivamente bem-sucedidas – era algo que pouco a pouco se impôs corajosa e incansavelmente sobre todas as coisas ruins que a mente humana é capaz de conceber e pôr em prática contra pessoas como ela, como bem deixam ver as estatísticas estarrecedoras que põem o Brasil entre aqueles países onde mais se matam homossexuais pelo fato de eles serem homossexuais.

Rogéria não era um símbolo sexual como durante certo tempo o foi a transexual Roberta Close, que chegou a estampar páginas da revista Playboy. Rogéria não se elegeu para mandatos políticos como Clodovil Hernandez, que passou pelo Congresso Nacional sem ser notado. Rogéria era uma atriz de amplos recursos que cantava muito bem e que fazia do palco uma extensão de sua morada, talvez, porque fosse nele que ela, como diva que era, se sentisse completamente realizada.

Num tempo em que os fundamentalistas, em geral, e os religiosos, em particular, continuam a pregar o obscurantismo e/ou o esclarecimento que lhes apraz e a hipocrisia permanece na ordem do dia, indivíduos corajosos e seguros de si, como o foi a Rogéria, me desculpem o mais que batido clichê, fazem muita, muita falta.

                                                             

Nenhum comentário:

Postar um comentário