Por Clênio Sierra de Alcântara
É,
mas eu sou o amargo da língua
A
mãe, o pai e o avô
O
filho que ainda não veio
O
início, o fim e o meio.
Gita. Raul Seixas/Paulo Coelho
Autoridade
de existência. Mais de uma vez o mestre de mestres
Gilberto Freyre lamentou em seus estudos o fato de que, no Brasil, não fosse
comum pessoas de um modo geral deixarem para a posteridade escritos em forma de
memórias e menos ainda de diários. A instância mesma que cerca a individualidade
de cada um é eivada de singularidades que definem modos de enxergar o mundo e,
por conseguinte, de se perceber e de estar nele. Como são inúmeros os
posicionamentos de cada indivíduo frente à vida, também são diversas as
maneiras de encará-la e de senti-la.
Escrever sobre si próprio é
para muitas pessoas algo fora de cogitação porque, em primeiro lugar, creio eu,
pensa-se logo em como lidar com certos pudores e com certas verdades e/ou
revelações incômodas para si mesmo e para todos aqueles que gravitam na esfera
de sua intimidade, de forma a não ferir sensibilidades. Sendo assim, a escrita
de si mesmo mais do que um ato de coragem – para mim, na verdade, toda escrita
é um ato de coragem – é um exercício de como saber resgatar a memória e manejar
por um lado a simples descrição de um fato e de outro lado descrever um
entendimento a respeito desse fato, algo que na narrativa por vezes pode vir
entrelaçado.
Embora eu tenha principiado
o parágrafo anterior tratando especificamente de uma escrita de si mesmo, minha
intenção é abordar uma esfera mais abrangente, mais ampla, porque não restrita
ao ato de dizer de si apenas através do escrever, mas também da fala, do
diálogo, retomando uma expressão que primeiramente eu utilizei num artigo –
“Ele também se chamava Rogéria” – que postei justamente no Dia da Independência
do Brasil, o que não deixava de, claro, relacioná-la com a independência e a
coragem de ser o que era do travesti Rogéria. Trata-se da expressão “autoridade
de existência”. Como vai dito ali, denomino “autoridade de existência” como a
ação do indivíduo de se impor pelo que ele é – homossexual, deficiente físico,
negro, judeu, homem, mulher, transexual, bissexual, etc. – e fazendo disso o leitmotiv de seu existir.
Creio muitíssimo que em
todos e em cada um de nós exista uma urgente necessidade de aceitar-se pelo que
realmente se é, sem se ver amordaçado, podado, amarrado e preso a ideologias, a
teogonias, a regulamentos, a convenções sociais, a, enfim, todo e qualquer meio
que busca e/ou intenciona, como se diz, cortar nossas asas, impedindo-nos de
dar vazão a escolhas, a sentimentos, a desejos, ao querer e ao não querer, como
se, ao nos desgarrarmos da grande manada, estivéssemos, isso sim, praticando
necessariamente ações criminosas pelo simples fato de sermos e/ou estarmos fora
do padrão, por ultrapassarmos a forma estabelecida, por excedermos o limite
permitido, por fugirmos ao entendimento da maioria e por sermos considerados
inadequados.
Foi o reverenciado escritor
mineiro João Guimarães Rosa quem um dia disse que “viver é muito perigoso”. E é
mesmo. Diariamente travamos embate contra os acidentes, contra os assassinos,
contra as doenças e até – como acontece com tantos – contra os nossos próprios
pensamentos de autodestruição. E não raro esse tipo de pensamento é originado
por doses cavalares de um sentimento de inadequação que acomete o indivíduo a
ponto de ele, talvez se julgando incapaz de partir par o enfrentamento daquilo
que o oprime, escolher e/ou ser levado ao suicídio – às vezes tirando a vida de
outros antes disso.
Não precisamos recorrer a estatísticas
e afins para termos conhecimento de casos dessa natureza. Eu e você certamente
convivemos com alguém que sofre dia após dia com algo que o torna infeliz; e
sabemos também que, por vezes, essas pessoas sofrem por razões que avaliamos
como sendo coisas tolas e banais, porque elas não nos afetam mais e nem nos
metem medo, porque as vemos como algo que já foi superado, como se fossem casas
de um jogo de tabuleiro que conseguimos ultrapassar de alguma forma.
É muito certo, digo, é
certíssimo, corretíssimo afirmar que cada um é que sabe exatamente de si; e que
só calçando o sapato é que se fica sabendo onde o calo aperta. Mas o que
acontece com bastante frequência é de nos depararmos com pessoas que não têm um
mínimo que seja de “autoridade de existência”; que vivem o tempo todo
acreditando no que os outros vão pensar; que não têm coragem de dizer “sim” e
nem “não”; que se autossabotam; e que estão sempre e sempre adiando o seu
projeto de ser feliz ou, dito de outro modo, de viver em paz consigo mesmo, ainda
que esse tal projeto de felicidade consista em algo tão simples como pôr um
biquíni e ir à praia sozinha numa manhã de domingo.
Existem pessoas que parecem crer
que durarão para todo o sempre e, por isso, ficam aguardando o que consideram
ser “o melhor momento” para atravessar a ponte que liga a sua ilha interior ao
resto do mundo. Por experiência própria, pelos muitos maus bocados que
vivenciei ilhado enquanto eu via a vida propriamente vivida vibrar bem diante
de mim, nunca, nunca mais eu hei de pensar , pelo que eu sou e sinto e pelo que
eu desejo, quero e tenho vontade, que todos estão certos e que eu é que estou
errado.
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