Por Sierra
Foto: Divulgação
O testemunho mais forte e eloquente de uma obra de arte essencial é a sua permanência no transcurso do tempo. Erasmo Carlos é essencial. Erasmo é permanência
Eu quero começar este artigo
dizendo que “Fera ferida” é a música da minha vida; e não porque é a música que
eu considero a mais bonita que eu já ouvi, porque ela não é, e, sim, porque ela
me define e me retrata; “Fera ferida” é como que a descrição de tudo o que eu
intimamente sou.
Ao longo dos meus 48 anos de
idade Roberto Carlos e Erasmo Carlos, como compositores, demarcaram um vasto
terreno no universo de canções que embalaram e embalam o meu convívio com a
música. De certo modo a figura de Roberto esteve muito mais presente do que a
de Erasmo em decorrência da exposição televisiva que eu alcancei. Não sou do
tempo da Jovem Guarda; tempo do trio Roberto, Erasmo e Wanderléa; de maneira
que, na TV, dos três quem eu mais vi, desde criança, foi o Roberto. E também
era mais comum me deparar com os discos do Roberto, que eram lançados
anualmente como presente de Natal; e várias das pessoas por mim conhecidas
todos os anos compravam o disco, porque era como se fizesse parte da tradição
natalina entrar dezembro ouvindo as novas canções do Rei Roberto.
Dessa forma, quem, como eu,
não via a figura e a pessoa do Erasmo, sabia que ele estava ali também, junto
com Roberto, marcando presença nos discos do parceiro que anualmente entravam
na casa de milhares de brasileiros. E eu disse que sabia que Erasmo estava ali
porque eu era do tipo que pegava o encarte dos discos para aprender as músicas
enquanto o lp rodava no toca-discos. Eu ainda era uma criança e aquelas canções
me diziam coisas que eu inteiramente não compreendia e mesmo assim gostava
delas. Eu não tinha maturidade para entender tudo o que era cantado por
Roberto, mas aquilo me encantava. E eu não demorava a decorar todas as letras. E
eu aceitava a grandeza de Erasmo cantada pela voz de Roberto à medida que o
tempo depositava em mim os sedimentos do entendimento do mundo.
Nunca esqueci que me
disseram, na época do estouro de “Devaneios”, cantada por Julio Iglesias, cujo
disco eu vi na casa de um vizinho, porque na minha não tinha nem TV nem
radiola, que Erasmo Carlos era um dos compositores daquela música, daquela bela
música cuja introdução é alguma coisa de acalanto.
Erasmo Carlos propriamente
dito, se apresentando como cantor, eu comecei a ver e a conhecer entoando “Mulher”,
“Minha superstar” e “Mesmo que seja eu”, que tocavam bastante nos subúrbios de Abreu
e Lima, cidade onde eu nasci e me criei. Até então eu não tinha ideia de beleza
masculina, de maneira que eu olhava Erasmo como um grandalhão que cantava
músicas das quais eu gostava. E só. Depois, eu comecei a vê-lo como um homem que
tinha traços bonitos.
À medida que o meu gosto
musical foi se diversificando e eu fui começando a compreender certos fraseados
de algumas das canções que eu ouvia, eu notei que algumas delas simplesmente
passavam por mim enquanto outras permaneciam, ficavam estacionadas e guardadas
nas minhas lembranças misturadas a bons sentimentos e a indagações que eu me
fazia perante o mundo voraz que me envolvia e envolve. E nessas permanências e
nesses guardados há muito de Roberto e de Erasmo, que deixaram em mim alguma
semente musical lá na minha infância, semente essa que veio brotar quando eu já
beirava os 30 anos de vida. E eu sei que é uma verdade inescapável o fato de
que, por vezes, inconscientemente a criação artística, a minha criação
artística musical de algum modo carrega consigo resquícios e reflexos desses
alimentos seminais, como se fosse a continuidade, a pretensão da continuidade
de um acorde, de um verso, de uma ideia e de uma emoção que já ganhou corpo
nalguma composição de outrem. Quando eu crio, eu sempre imagino que, na
verdade, aquilo só nasceu e saiu de mim em decorrência de um alimento que a mim
um dia foi servido em forma de melodia e/ou de palavras; e que de outro modo
não seria; e deve ser justamente isso o que chamam de influência, quando
fazemos ecoar algo que em algum instante nos tocou quer tenha sido feliz ou
tristemente.
Não sei negar os meus
sentimentos. E também não consigo disfarçar a angústia e o desconforto que
certas ausências em mim causam. Caminhando num calçadão à beira do mar eu fui
ruminando, sozinho, a tristeza que me tomou assim que a mim chegou a notícia do
falecimento do Erasmo Carlos. Cantarolei “As canções que você fez pra mim”
sentindo um aperto no peito e olhando o adiante com perplexidade.
O testemunho mais forte e eloquente
de uma obra de arte essencial é a sua permanência no transcurso do tempo. Erasmo
Carlos é essencial. Erasmo é permanência.
Nenhum comentário:
Postar um comentário