3 de dezembro de 2022

Ficaram as canções e você também ficou Erasmo Carlos

 Por Sierra


Foto: Divulgação
O testemunho mais forte e eloquente de uma obra de arte essencial é a sua permanência no transcurso do tempo. Erasmo Carlos é essencial. Erasmo é permanência
 

Eu quero começar este artigo dizendo que “Fera ferida” é a música da minha vida; e não porque é a música que eu considero a mais bonita que eu já ouvi, porque ela não é, e, sim, porque ela me define e me retrata; “Fera ferida” é como que a descrição de tudo o que eu intimamente sou.

Ao longo dos meus 48 anos de idade Roberto Carlos e Erasmo Carlos, como compositores, demarcaram um vasto terreno no universo de canções que embalaram e embalam o meu convívio com a música. De certo modo a figura de Roberto esteve muito mais presente do que a de Erasmo em decorrência da exposição televisiva que eu alcancei. Não sou do tempo da Jovem Guarda; tempo do trio Roberto, Erasmo e Wanderléa; de maneira que, na TV, dos três quem eu mais vi, desde criança, foi o Roberto. E também era mais comum me deparar com os discos do Roberto, que eram lançados anualmente como presente de Natal; e várias das pessoas por mim conhecidas todos os anos compravam o disco, porque era como se fizesse parte da tradição natalina entrar dezembro ouvindo as novas canções do Rei Roberto.

Dessa forma, quem, como eu, não via a figura e a pessoa do Erasmo, sabia que ele estava ali também, junto com Roberto, marcando presença nos discos do parceiro que anualmente entravam na casa de milhares de brasileiros. E eu disse que sabia que Erasmo estava ali porque eu era do tipo que pegava o encarte dos discos para aprender as músicas enquanto o lp rodava no toca-discos. Eu ainda era uma criança e aquelas canções me diziam coisas que eu inteiramente não compreendia e mesmo assim gostava delas. Eu não tinha maturidade para entender tudo o que era cantado por Roberto, mas aquilo me encantava. E eu não demorava a decorar todas as letras. E eu aceitava a grandeza de Erasmo cantada pela voz de Roberto à medida que o tempo depositava em mim os sedimentos do entendimento do mundo.

Nunca esqueci que me disseram, na época do estouro de “Devaneios”, cantada por Julio Iglesias, cujo disco eu vi na casa de um vizinho, porque na minha não tinha nem TV nem radiola, que Erasmo Carlos era um dos compositores daquela música, daquela bela música cuja introdução é alguma coisa de acalanto.

Erasmo Carlos propriamente dito, se apresentando como cantor, eu comecei a ver e a conhecer entoando “Mulher”, “Minha superstar” e “Mesmo que seja eu”, que tocavam bastante nos subúrbios de Abreu e Lima, cidade onde eu nasci e me criei. Até então eu não tinha ideia de beleza masculina, de maneira que eu olhava Erasmo como um grandalhão que cantava músicas das quais eu gostava. E só. Depois, eu comecei a vê-lo como um homem que tinha traços bonitos.

À medida que o meu gosto musical foi se diversificando e eu fui começando a compreender certos fraseados de algumas das canções que eu ouvia, eu notei que algumas delas simplesmente passavam por mim enquanto outras permaneciam, ficavam estacionadas e guardadas nas minhas lembranças misturadas a bons sentimentos e a indagações que eu me fazia perante o mundo voraz que me envolvia e envolve. E nessas permanências e nesses guardados há muito de Roberto e de Erasmo, que deixaram em mim alguma semente musical lá na minha infância, semente essa que veio brotar quando eu já beirava os 30 anos de vida. E eu sei que é uma verdade inescapável o fato de que, por vezes, inconscientemente a criação artística, a minha criação artística musical de algum modo carrega consigo resquícios e reflexos desses alimentos seminais, como se fosse a continuidade, a pretensão da continuidade de um acorde, de um verso, de uma ideia e de uma emoção que já ganhou corpo nalguma composição de outrem. Quando eu crio, eu sempre imagino que, na verdade, aquilo só nasceu e saiu de mim em decorrência de um alimento que a mim um dia foi servido em forma de melodia e/ou de palavras; e que de outro modo não seria; e deve ser justamente isso o que chamam de influência, quando fazemos ecoar algo que em algum instante nos tocou quer tenha sido feliz ou tristemente.

Não sei negar os meus sentimentos. E também não consigo disfarçar a angústia e o desconforto que certas ausências em mim causam. Caminhando num calçadão à beira do mar eu fui ruminando, sozinho, a tristeza que me tomou assim que a mim chegou a notícia do falecimento do Erasmo Carlos. Cantarolei “As canções que você fez pra mim” sentindo um aperto no peito e olhando o adiante com perplexidade.

O testemunho mais forte e eloquente de uma obra de arte essencial é a sua permanência no transcurso do tempo. Erasmo Carlos é essencial. Erasmo é permanência.

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