Por Sierra
Caso todos nós tivéssemos empatia de verdade e
nos preocupássemos de fato com o que está do lado de fora de nossas casas, não
agiríamos como, por assim dizer, cúmplices, como coniventes, como apoiadores,
como certificadores e como legitimadores de práticas que são por si mesmas por
demais reveladoras de como o poder e os interesses econômicos se sobrepõem a
todos os outros, inclusive, ao senso de humanidade que todos e cada um de nós,
talvez, carreguemos dentro de si.
A familiaridade que temos
e/ou deveríamos ter com o que acontece para além da porta de nossas casas –
lembrando que nem todo mundo tem onde morar – nos coloca frente a frente com
realidades de vida e com situações que evidenciam flagrantes e por vezes cruéis
solapamentos daquilo que compreendemos como bem comum. Tendemos a enxergar a
existência sob uma ótica muito limitada e por um viés estritamente consumista e
hedonista sem nos importarmos com o que está por trás dos cenários e das marcas
de fantasia que enchem os nossos olhos sem nos perguntarmos de onde isso veio e
como isso foi feito, o que revela que colocamos a satisfação de nossas
necessidades e de todos os nossos desejos à frente de tudo, porque só isso
parece realmente importar, porque o resto é resto.
A noção de responsabilidade
social que todos e cada um de nós têm e/ou deveria ter certamente desmontaria
os elos de um sistema de poder econômico que só nos enxerga como consumidores,
quer estejamos no topo da cadeia consumista, quer estejamos lá embaixo
sobrevivendo à custa de mixarias, enquanto seguem, às ocultas, fazendo o diabo
com pessoas, com animais e com o meio ambiente com o único propósito de
aumentar o seu faturamento e engordar a sua conta bancária.
Não pensa no bem comum o
sujeito que manda adulterar leite vencido para colocá-lo de novo na prateleira
do supermercado. Não pensa no bem comum o minerador que age na ilegalidade
ignorando as determinações que visam à proteção e não à degradação dos
ecossistemas. Não pensa no bem comum o importador que mistura óleo de soja ao
azeite e engana o consumidor crente de que está pagando por um alimento que é
caro e que ele pensa ser de primeira qualidade. Não pensa no bem comum o
industrial farmacêutico que deixa de fabricar medicamentos cujo valor de venda
não lhe proporciona lucros vultosos, mesmo sabendo que milhares, milhões de
pessoas dependem de tais medicamentos para sobreviver. Não pensa no bem comum o
grande agricultor que suspende o plantio de um determinado grão porque ele não
está em alta cotação no mercado internacional e despreza o consumo em seu
próprio país. Não pensa no bem comum o proprietário das ditas marcas de luxo,
as quais tantos consomem pelo suposto glamour que elas encerram, que recorrem
ao trabalho mal remunerado e/ou análogo à escravidão para baratear a produção e
ele ganhar mais e mais.
Agora mesmo um acontecimento
esportivo de alcance global e movimentador de bilhões de dólares, que é a Copa
do Mundo de Futebol, que está acontecendo no Catar, vem dia a dia revelando as
vísceras e os bastidores de várias violações trabalhistas e de direitos humanos
que os interesses econômicos espezinharam para fazer o espetáculo acontecer e
ser o mais rentável possível.
Aqui e ali tem aparecido na
imprensa levantamentos que apontam que foram na casa dos milhares as mortes de
operários ocorridas durante as obras de construção dos estádios e de outras
instalações necessárias para sediar o evento – o governo local nega os números,
claro; e diz que, na verdade, foram 500 ou 600 óbitos, como se isso fosse
pouco. Mas não é só no campo da precariedade das condições de trabalho e de
abrigo para os operários que o Catar, um país riquíssimo, é uma vergonha para o
resto do mundo; lá, as mulheres são cidadãos de segunda e terceira classe; e a
homossexualidade é considerada uma “prática criminosa”.
A subserviência da Federação
Internacional de Futebol (FIFA) às violações dos direitos humanos, à condição
da mulher e aos maus tratos sofridos pelos operários que construíram tudo para
a Copa do Mundo, escancara quão poderosa é a força dos interesses econômicos
sobre o bem comum e sobre aquilo que compreendemos como sentimento de
humanidade. Em nome de interesses econômicos passa-se por cima de milhares de
vidas. Em nome de interesses econômicos ignora-se o sofrimento alheio. Em nome
de interesses econômicos e de uma pretensa avaliação de que a felicidade que o
evento Copa do Mundo proporciona com seus preços proibitivos é muito, muito
maior do que os males com os quais os dirigentes da FIFA se cumpliciam e/ou
causam, tudo é permitido.
A Copa do Mundo de Futebol
em si não é um mal. O mal e/ou os males estão no que acontece nos bastidores
onde tudo é feito para que o público vá aos estádios, se puder, ou se detenha
diante da TV para ver os jogos acontecerem; porque, a bem da verdade, quem não pensa no
bem comum não está nem aí para esse papo chato de direitos trabalhistas, de direitos
humanos e que tais.
A última Copa do Mundo que
eu acompanhei parando para assistir aos jogos do selecionado nacional foi a de
2002. Lá se vão vinte anos que eu saí do transe coletivo e despertei a
consciência de que eu agia tomado pelo espírito de manada. Como o que realmente
me interessa do evento é alguma coisa do noticiário que ele enseja - repito,
alguma coisa, não tudo -, eu tomei conhecimento do lado negro do espetáculo que
por ora se desenrola no Catar. E digo mais a você que me lê: enquanto a seleção
brasileira for um reduto de meninos alienados e estúpidos, enquanto o escrete
canarinho for uma sucursal da Terra do Nunca repleta de Peters Pan que fazem
questão de demonstrar que são boçais e que não estão nem aí para o bem comum
porque só pensam em si mesmos e nas cifras que vão auferir, sempre e sempre eu
irei torcer contra eles.
Os jornalistas,
comentaristas e quejandos que atacam de impatriotas quem não torce pela seleção
e quem despreza e/ou não tem os jogadores como ídolos, são uns idiotões que são
remunerados para dizerem e escreverem bobagens desse tipo. Não é de lascar?! Ninguém
é obrigado a gostar de futebol. E ninguém manda em nossos gostos e nem em
nossas escolhas e muito menos em nossos desejos e sentimentos.
Não tenho poder para enfrentar quaisquer grupos econômicos, mas, mesmo que minha ausência e minha negativa não façam a menor diferença para os bolsos deles, eu boicoto todos aqueles que só pensam única e exclusivamente em si e não no bem comum.
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