10 de dezembro de 2022

Quando os interesses econômicos se sobrepõem a todos os outros

 Por Sierra


Foto:Internet
Não tenho poder para enfrentar quaisquer grupos econômicos, mas, mesmo que minha ausência e minha negativa não façam a menor diferença para os bolsos deles, eu boicoto todos aqueles que só pensam única e exclusivamente em si e não no bem comum.


Caso todos nós tivéssemos empatia de verdade e nos preocupássemos de fato com o que está do lado de fora de nossas casas, não agiríamos como, por assim dizer, cúmplices, como coniventes, como apoiadores, como certificadores e como legitimadores de práticas que são por si mesmas por demais reveladoras de como o poder e os interesses econômicos se sobrepõem a todos os outros, inclusive, ao senso de humanidade que todos e cada um de nós, talvez, carreguemos dentro de si.

A familiaridade que temos e/ou deveríamos ter com o que acontece para além da porta de nossas casas – lembrando que nem todo mundo tem onde morar – nos coloca frente a frente com realidades de vida e com situações que evidenciam flagrantes e por vezes cruéis solapamentos daquilo que compreendemos como bem comum. Tendemos a enxergar a existência sob uma ótica muito limitada e por um viés estritamente consumista e hedonista sem nos importarmos com o que está por trás dos cenários e das marcas de fantasia que enchem os nossos olhos sem nos perguntarmos de onde isso veio e como isso foi feito, o que revela que colocamos a satisfação de nossas necessidades e de todos os nossos desejos à frente de tudo, porque só isso parece realmente importar, porque o resto é resto.

A noção de responsabilidade social que todos e cada um de nós têm e/ou deveria ter certamente desmontaria os elos de um sistema de poder econômico que só nos enxerga como consumidores, quer estejamos no topo da cadeia consumista, quer estejamos lá embaixo sobrevivendo à custa de mixarias, enquanto seguem, às ocultas, fazendo o diabo com pessoas, com animais e com o meio ambiente com o único propósito de aumentar o seu faturamento e engordar a sua conta bancária.

Não pensa no bem comum o sujeito que manda adulterar leite vencido para colocá-lo de novo na prateleira do supermercado. Não pensa no bem comum o minerador que age na ilegalidade ignorando as determinações que visam à proteção e não à degradação dos ecossistemas. Não pensa no bem comum o importador que mistura óleo de soja ao azeite e engana o consumidor crente de que está pagando por um alimento que é caro e que ele pensa ser de primeira qualidade. Não pensa no bem comum o industrial farmacêutico que deixa de fabricar medicamentos cujo valor de venda não lhe proporciona lucros vultosos, mesmo sabendo que milhares, milhões de pessoas dependem de tais medicamentos para sobreviver. Não pensa no bem comum o grande agricultor que suspende o plantio de um determinado grão porque ele não está em alta cotação no mercado internacional e despreza o consumo em seu próprio país. Não pensa no bem comum o proprietário das ditas marcas de luxo, as quais tantos consomem pelo suposto glamour que elas encerram, que recorrem ao trabalho mal remunerado e/ou análogo à escravidão para baratear a produção e ele ganhar mais e mais.

Agora mesmo um acontecimento esportivo de alcance global e movimentador de bilhões de dólares, que é a Copa do Mundo de Futebol, que está acontecendo no Catar, vem dia a dia revelando as vísceras e os bastidores de várias violações trabalhistas e de direitos humanos que os interesses econômicos espezinharam para fazer o espetáculo acontecer e ser o mais rentável possível.

Aqui e ali tem aparecido na imprensa levantamentos que apontam que foram na casa dos milhares as mortes de operários ocorridas durante as obras de construção dos estádios e de outras instalações necessárias para sediar o evento – o governo local nega os números, claro; e diz que, na verdade, foram 500 ou 600 óbitos, como se isso fosse pouco. Mas não é só no campo da precariedade das condições de trabalho e de abrigo para os operários que o Catar, um país riquíssimo, é uma vergonha para o resto do mundo; lá, as mulheres são cidadãos de segunda e terceira classe; e a homossexualidade é considerada uma “prática criminosa”.

A subserviência da Federação Internacional de Futebol (FIFA) às violações dos direitos humanos, à condição da mulher e aos maus tratos sofridos pelos operários que construíram tudo para a Copa do Mundo, escancara quão poderosa é a força dos interesses econômicos sobre o bem comum e sobre aquilo que compreendemos como sentimento de humanidade. Em nome de interesses econômicos passa-se por cima de milhares de vidas. Em nome de interesses econômicos ignora-se o sofrimento alheio. Em nome de interesses econômicos e de uma pretensa avaliação de que a felicidade que o evento Copa do Mundo proporciona com seus preços proibitivos é muito, muito maior do que os males com os quais os dirigentes da FIFA se cumpliciam e/ou causam, tudo é permitido.

A Copa do Mundo de Futebol em si não é um mal. O mal e/ou os males estão no que acontece nos bastidores onde tudo é feito para que o público vá aos estádios, se puder, ou se detenha diante da TV para ver os jogos acontecerem;  porque, a bem da verdade, quem não pensa no bem comum não está nem aí para esse papo chato de direitos trabalhistas, de direitos humanos e que tais.

A última Copa do Mundo que eu acompanhei parando para assistir aos jogos do selecionado nacional foi a de 2002. Lá se vão vinte anos que eu saí do transe coletivo e despertei a consciência de que eu agia tomado pelo espírito de manada. Como o que realmente me interessa do evento é alguma coisa do noticiário que ele enseja - repito, alguma coisa, não tudo -, eu tomei conhecimento do lado negro do espetáculo que por ora se desenrola no Catar. E digo mais a você que me lê: enquanto a seleção brasileira for um reduto de meninos alienados e estúpidos, enquanto o escrete canarinho for uma sucursal da Terra do Nunca repleta de Peters Pan que fazem questão de demonstrar que são boçais e que não estão nem aí para o bem comum porque só pensam em si mesmos e nas cifras que vão auferir, sempre e sempre eu irei torcer contra eles.

Os jornalistas, comentaristas e quejandos que atacam de impatriotas quem não torce pela seleção e quem despreza e/ou não tem os jogadores como ídolos, são uns idiotões que são remunerados para dizerem e escreverem bobagens desse tipo. Não é de lascar?! Ninguém é obrigado a gostar de futebol. E ninguém manda em nossos gostos e nem em nossas escolhas e muito menos em nossos desejos e sentimentos.

Não tenho poder para enfrentar quaisquer grupos econômicos, mas, mesmo que minha ausência e minha negativa não façam a menor diferença para os bolsos deles, eu boicoto todos aqueles que só pensam única e exclusivamente em si e não no bem comum.

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