22 de julho de 2023

Paulista: deformação do espaço público e desprezo pela memória urbana

 Por Sierra

 


Fotos: Arquivo do Autor
Entrada da Rua Siqueira Campos: depois de ter passado por um muito louvável processo de ordenamento que eliminou dela o tráfego de veículos, transformando-a num passeio público, ela foi tomada por um comércio que eliminou dela o aspecto de boulevard que a revitalização lhe conferira



Algumas das piores demonstrações de desprezo que os prefeitos dão para as cidades que eles administraram são: não fazer valer a Lei de Uso e de Ocupação do Solo; deixar que os espaços públicos sejam ocupados desordenadamente, à revelia da Municipalidade; e permitir e/ou contribuir para que paulatinamente a memória urbana seja reduzida a escombros e por fim desapareça.

A cidade de Paulista, que dista a cerca de 18 km do Recife, é um caso emblemático de uma urbe que não soube e nem sabe cuidar dos cenários e do patrimônio histórico edificado que possui. Como muitos sabem, o núcleo central desse município pernambucano que já foi nacionalmente conhecido como “cidade das chaminés”, deve quase tudo o que ainda possui como atrativo para o visitante, como a imponente Igreja de Santa Isabel, à presença empreendedora da família Lundgren, suecos que ergueram indústrias têxteis na cidade e promoveram considerável desenvolvimento do lugar. Do histórico passado fabril a cidade só deixou de pé chaminés e umas três outras construções de tijolos aparentes. Não se tratou de preservar sequer uma das unidades de tecelagem lhe dando novo uso, como ocorreu em Rio Tinto, na Paraíba, que também teve no empreendedorismo dos Lundgren o marco fundamental do seu desenvolvimento; lá, parte das instalações foi alugada pela Universidade Federal da Paraíba. E eu não sei dizer não se se cuidou de preservar ao menos parte de algumas das casas que a família sueca ergueu para abrigar seus operários. Como pesquisador eu sei que as relações empregador/empregado não eram as melhores ali, porque eu já li a obra A sedução da cidade: os operários camponeses e a fábrica dos Lundgren (Rio de Janeiro: Graphia, 1997), da Rosilene Alvim; mas não é sobre isso que eu quero tratar aqui hoje.

Dias atrás eu fiz duas visitas ao centro de Paulista para fazer compras; e nas duas ocasiões eu vi, estarrecido, como num raio de mais ou menos um quilômetro, a partir da sede da Prefeitura Municipal, o espaço urbano está ocupado desordenadamente e/ou de maneira inadequada.



Construção conhecida como "Casarão dos Lundgren": erguida num amplo espaço que comporta outras construções e que bem poderia ser um transformado em um parque, é um dos pontos mais pitorescos da área central da cidade de Paulista



A Municipalidade fez um trabalho digno de aplauso e de louvor ao acabar com o trânsito de veículos da Rua Siqueira Campos a fim de transformá-la em uma via destinada tão somente ao pedestre. Considero que esse foi um acerto e tanto, porque essa proposta tem sido implantada em várias cidades, como o Recife e João Pessoa, com o objetivo de transformar alguns logradouros em espaços de convivência e de lazer, limitando e/ou restringindo completamente o acesso de carros, caminhões e outros veículos automotivos.



Símbolos do progresso com uma chaminé resquício da Companhia de Tecidos Paulista: shopping, faculdade, farmácia, supermercado, prédios residenciais... Quando das obras de duplicação da PE-15, Paulista perdeu vários testemunhos de sua memória urbana






Situada ao lado direito do mais vistoso cartão-postal da área central de Paulista, que é a Igreja de Santa Isabel, a Rua Siqueira Campos é o principal corredor comercial daquele perímetro há várias décadas, comportando, entre outros, farmácias, lojas de eletrodomésticos, roupas e acessórios, lanchonetes, etc. Ocorreu que o excelente projeto da Prefeitura Municipal de requalificar aquela rua transformando-a numa área de compras e de lazer, uma espécie de shopping a céu aberto, foi, até o presente momento, deturpado por uma ocupação inadequada e indevida feita por dezenas de comerciantes ambulantes que se espalharam por ali em toda a extensão da via que, com canteiros ajardinados e bancos como se fosse uma praça, poderia e deveria figurar como um verdadeiro calçadão para as pessoas caminharem sem atropelos por lá. Quem for andar por ali fica com a impressão de que a Rua Siqueira Campos não é nada mais nada menos do que um prolongamento da feira livre que há muitos anos ocupa uma grande área situada a bem dizer quando termina a dita rua.



Outro flagrante da Rua Siqueira Campos, vendo-se ao fundo  a Igreja de Santa Isabel: a Municipalidade precisa pôr ordem nesse caos


Quando eu comecei a atravessar a Rua Siqueira Campos eu lamentei profundamente que a Municipalidade tivesse deixado que se instaurasse um verdadeiro pandemônio naquela via que, a bem da verdade, repito, foi transformada num prolongamento da feira livre que existe no amplo espaço para além daquele logradouro. São vários os feirantes que ocupam a Rua Siqueira Campos que, até onde eu sei, não foi requalificada para isso. E é com dificuldade que se caminha por ela, porque nem a mobilidade do pedestre os comerciantes respeitam, pondo seus bancos e mercadorias muito próximos uns dos outros. E vendo tudo aquilo, todo aquele horror estabelecido naquela área, a primeira pergunta que eu me fiz foi: “Por que os donos dos estabelecimentos comerciais desta rua não cobram da Prefeitura a devida solução para este espaço, que é deslocar os vendedores ambulantes e feirantes para outros logradouros?”.


Aqui jaz o Teatro Paulo Freire: uma Prefeitura Municipal que deixa um equipamento cultural chegar a este estado de abandono, verdadeiramente não tem o menor zelo pelas coisas da cultura






Do jeito em que se encontra, a Rua Siqueira Campos, que dista a menos de 100 m da sede da Prefeitura Municipal, revela a falta de tino da administração para bem cuidar e tratar dos espaços que contam a memória urbana da cidade. A Praça Agamenon Magalhães, que fica defronte àquela igreja e também ao Paulista North Way Shopping, erguido onde outrora existiu uma das tecelagens dos Lundgren, está há muitos anos em estado de abandono, degradada e servindo como espaço para vendedores ambulantes e como terminal de kombis que fazem o chamado transporte complementar de passageiros. É um cenário de horror. E um retrato que resume como estão as coisas no  seu entorno.



Praça  Agamenon Magalhães vista neste e nos três registros seguintes feitos a partir do adro da Igreja de Santa Isabel: abandonada e entregue à própria sorte, esta praça foi transformada em terminal de kombis e espaço para vendedores ambulantes à vista da Prefeitura Municipal que fica ali defronte










As obras de duplicação da PE-15 contribuíram substancialmente para que a cidade de Paulista perdesse um naco expressivo de um ordenamento urbano que integrava o espaço ocupado pela Companhia de Tecidos Paulista ao centro da cidade em si e ao bairro do Nobre, por exemplo. A pressão do progresso, de maneira compulsória, provocou um redesenho daquela área urbana a partir da demolição e destruição de edificações e de caminhos, soterrando vivências e memórias. O progresso é insaciável, como bem sabemos; e, como acertadamente destacou o historiador francês Jacques Le Goff num verbete originalmente escrito para a Enciclopédia Einaudi, “é necessário não esquecer que cada tipo de progresso apela para outras formas complementares de progresso” (Jacques Le Goff. “Progresso/Reação”. In História e memória. Trad. Bernardo Leitão et. al. 4ª ed. Campinas: Edição da UNICAMP, 1996, p. 273); ou seja, a fome do progresso nunca cessa, de modo que, caso não recorramos a políticas de preservação e de salvaguarda do patrimônio histórico edificado e das paisagens que por vezes lhes emolduram, fatalmente tudo isso será destruído e desaparecerá para sempre da memória urbana.



A cidade e os carros: como aconteceu com muitas cidades deste país, o centro de Paulista foi parcialmente desfigurado para dar passagem aos veículos automotivos





A área do centro de Paulista precisa ser urgentemente repensada urbanisticamente falando. É preciso que toda aquela área seja requalificada para que os valores e os testemunhos históricos da cidade sejam revalorizados por uns e conhecidos por outros. A Praça Agamenon Magalhães que, em tempos idos, já se chamou Praça 10 de Novembro, e que, segundo Antônio Nunes dos Santos Filho, era um concorrido ponto de encontro, local onde “Aos domingos, entre 5 horas da tarde e 11 da noite [...] ficava em festa e parecia que se tornava pequena para comportar tanta gente” (Antônio Nunes dos Santos Filho. Paulista entre algumas lembranças: pessoas, coisas, fatos. 2ª ed. Paulista: s. ed., 1982, p. 37), está necessitando passar por uma revitalização e um reordenamento. O imponente prédio conhecido como “casarão dos Lundgren” faria bonita figura se fosse aberto à visitação pública e abrigasse um museu que contasse a história da cidade. É preciso reabrir o Teatro Paulo Freire que se encontra vergonhosa e tristemente fechado faz um bom tempo. E a Rua Siqueira Campos, seguindo o que nós vemos, por exemplo, na Avenida Rio Branco e na Avenida Guararapes, no Recife, poderia abrigar eventos culturais de vez em quando, como forma de atrair as pessoas para vivenciar a cidade para além de sua função comercial, porque o centro de ocupação urbana mais antiga de Paulista não pode ser reduzido a um espaço integrado por comércio de rua e um shopping center. A Prefeitura Municipal de Paulista precisa conferir ao perímetro aqui descrito o status de um circuito cultural, ambicionando reintegrar aquela parte da cidade à população com o fundamento de pertencimento ao lugar em que ela vive e que, como eu já disse, não se resume a ida ao comércio, porque o viver é bem mais do que isso.


A área que outrora compreendia a outra unidade têxtil da família Lundgren, a Fábrica Aurora,  deu lugar a um grande empreendimento imobiliário







Caso você tenha algumas décadas de estrada e seja conhecedor da fisionomia que aquele perímetro de Paulista tinha, fique posicionado na Praça Agamenon Magalhães, dê um firo de 360° em torno de si mesmo e você verá as transformações todas que se fizeram por ali. É também um horror aquela grade no adro da Igreja de Santa Isabel. E uma grade posta diante de um lugar ao qual os que o buscam, o fazem para encontrar um abrigo e um conforto espiritual, também diz muito de um cenário urbano que, entregue ao desleixo e à própria sorte, é ele próprio excludente em sua professada inclusão.


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