19 de agosto de 2023

A propósito de leitura e de memória visual

 Por Sierra

 

Especialmente para Ernani Neves, um talentoso fotógrafo e editor de imagens, no dia do seu aniversário

 

Imagem: Internet
Eu me alinho entre aqueles que consideram a visão o nosso sentido mais poderoso. E sei que a minha memória visual é a principal responsável pela maior parte dos meus gostos estéticos e pelo muito do prazer que eu senti e sinto na minha vida. As imagens me atraem na mesma medida que em mim elas despertam o interesse de tentar interpretá-las e compreender o que está evidente e/ou apenas sugerido



Desde muito menino eu sou um fascinado por fotografias e por imagens de um modo geral. Agora que eu estou escrevendo isso aos 49 anos de idade, eu lhes digo, com plena convicção, que – e deve ser assim com todo mundo que não tem deficiência visual de nascença – eu primeiro aprendi a ler através de imagens e só depois com as letras, sílabas e palavras. Não lembro se eu já lhes contei que eu só aprendi a ler palavras tardiamente. Pois é, foi só aos nove anos de idade que eu me vi dotado disso que tenho como sendo algo extremamente poderoso, que é a capacidade de ler palavras.

Nossa, eu nem tinha me dado conta disso quando resolvi escrever sobre a minha paixão por imagens: faz quarenta anos que eu aprendi a ler sob as vistas e assistência da minha inesquecível professora Livonete de Araújo Alves, na Escola Mário Domingues, na minha cidade natal, Abreu e Lima, na Região Metropolitana do Recife.

Havia na grande estante de livros da casa dos meus padrinhos Maria Lúcia e Aleixo, um livro grande e muito bonito com ilustrações bastante coloridas de clássicos dos Estúdios Walt Disney. Aquilo me enchia os olhos de tal forma que eu não me cansava de ver e rever, de virar e revirar aquelas páginas todas. Era como se vendo e revendo todos aqueles desenhos eu de alguma forma pudesse estar dentro deles, sendo parte do cenário e interagindo com os personagens dada a familiaridade que eu mantinha com eles. Eu não sabia ainda ler palavras, mas compreendia – eu assim pensava – a estória. E certamente essa compreensão existia, essa leitura imagética estava entranhada em mim porque me afligia ver o Dumbo naquele circo: eu receava que, mesmo sabendo voar, o elefantezinho poderia se machucar. E ele voava.

E essa coisa de voar é muito marcante porque um outro livro que existia naquela estante, que tinha como título Menino de asas, e que fora escrito pelo Homero Homem, possuía umas ilustrações que igualmente me impressionavam bastante, sendo que uma delas me deixava triste, que era uma em que ele aparece de costas para o observador enquanto voa como que fugindo do mundo.

Nunca que eu me esqueci daquela imagem do Dumbo dentro de um circo e nem do menino que possuía asas. Como também eu não esqueço que, ainda na minha tenra infância, e também na casa dos meus padrinhos, eu quase que ia sendo flagrado pela Anna Lúcia, uma das filhas deles, no momento em que, no quarto onde ficavam os livros e as revistas, eu estava a esfregar no meu pênis um calendário no qual aparecia uma mulher nua, calendário esse que eu mantinha escondido naquele cômodo da casa. Imagens são coisas realmente muito instigantes.

Como eu vinha dizendo, desde que eu era um menino eu sou fascinado por imagens. Talvez esteja relacionado com isso o gosto que, na infância, eu mantive de ter álbuns de figurinhas – eu até hoje possuo alguns álbuns do chocolate Surpresa, que são uma das melhores lembranças que eu guardo daquele tempo; colecionar as figuras que vinham naquele chocolate da Nestlé era algo que em mim causava um grande e permanente contentamento. E além de colecionador de álbuns de figurinhas, eu também colecionei selos postais.

Durante a minha graduação em História, na Universidade Federal de Pernambuco, num tempo em que o acesso à internet ainda não era essa coisa amplamente massificada e de fácil acesso que é hoje, o contato e o aprendizado que eu tive com mestres que nos estimulavam a buscar imagens como complemento e/ou ampliação do entendimento e da absorção do que víamos com eles na sala de aula, caso, principalmente, dos professores Antonio Paulo Rezende, Luciano Cerqueira e Christine Dabat, o fascínio e o gosto e o apreço por imagens só fizeram se acentuar e se fixar em mim tanto como material de pesquisa como complemento de pesquisa, o que, inevitavelmente, me levou a ler e a buscar estudos que tratassem especificamente desse assunto e/ou que tomassem a fotografia e as imagens de um modo geral como um motivo e como um fundamento para que eles construíssem suas narrativas escritas, como foi o caso, por exemplo, dos historiadores Nicolau Sevcenko e Boris Kossoy, e do sociólogo Gilberto Freyre, cuja escrita é ela mesma imagética.

Naquele que é um clássico inescapável para todos que se interessam pela fotografia em sentido muito amplo, que é Sobre fotografia, a nova-iorquina Susan Sontag escreveu uma sentença que eu considero um achado entre os muitos que constituem o seu livro: “Toda foto tem múltiplos significados; de fato, ver algo na forma de uma foto é enfrentar um objeto potencial de fascínio. A sabedoria suprema da imagem é dizer: ‘Aí esta a superfície. Agora, imagine – ou, antes, sinta, intua - o que está além, o que deve ser a realidade, se ela tem este aspecto’” (Susan Sontag. Sobre fotografia. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 33).

Diante de uma fotografia e de uma imagem estática não fotográfica, como uma pintura, quantas perguntas nós intimamente fazemos? Várias, certamente, porque, eu assim penso, é justamente em tais indagações e nesse exercício de exegese, de interpretação e curiosidade que se fundamenta, no final das contas, o fascínio, o grande, o imenso fascínio que as imagens despertam em nós. E isso em muito explica por que o sorriso ou quase sorriso da Mona Lisa de Leonardo da Vinci vem despertando um fascínio contínuo na humanidade através dos séculos.

Eu me alinho entre aqueles que consideram a visão o nosso sentido mais poderoso. E sei que a minha memória visual é a principal responsável pela maior parte dos meus gostos estéticos e pelo muito do prazer que eu senti e sinto na minha vida. As imagens me atraem na mesma medida que em mim elas despertam o interesse de tentar interpretá-las e compreender o que está evidente e/ou apenas sugerido.

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