Por Sierra
No último dia 10 de maio, o
chamado plenarinho da Câmara Municipal do Recife foi cenário de uma audiência
pública promovida pelo vereador Alcides Cardoso (PSDB) com o objetivo de
debater os problemas e desafios existentes na Rua da Imperatriz Teresa
Cristina, que todos nós chamamos apenas de Rua da Imperatriz, localizada no
bairro da Boa Vista, área central do Recife.
Quem tem vivência do centro
da capital pernambucana, quem frequentou ao longo dos anos e frequenta nos dias
de hoje as ruas do centro da cidade sabe como diminuiu o fluxo de pessoas por aquelas
áreas e como isso impactou de maneira negativa a relação do indivíduo com
aqueles espaços.
Eu frequento os bairros
centrais do Recife desde criança, porque minha mãe era comerciária na Rua Duque
de Caxias – ela trabalhou nas lojas Cattan e Marisa -, e, algumas vezes, me
levava para o seu local de trabalho aos sábados. E essa vivência juntou em mim
muitas memórias e lembranças de transformações pelas quais ruas, praças e
prédios foram passando durante as últimas décadas.
Costumo dizer que eu tenho os meus dias de indivíduo que vai ao Recife apenas para fazer compras, resolver problemas e voltar para casa e, também, tenho as ocasiões em que eu busco o Recife assumindo a persona e a condição de um flâneur; e, como tal, eu atravesso ruas, praças e pontes no ritmo da contemplação e de quem não está nem aí para o transcurso das horas. E foi como flâneur e como pesquisador do passado, digo, de aspectos do passado da cidade que eu comecei a enxergar o Recife, digamos, com os olhos mais abertos e mais perscrutadores.
O terrível evento da
pandemia da covid-19 que conferiu, em alguns momentos de maior temor da
contaminação, ares de cidade fantasma às cidades de um modo quase que geral, só
fez agravar um cenário e uma situação que já eram bastante visíveis em vários logradouros
comerciais do chamado núcleo primitivo do Recife. Ainda antes da pandemia, e
certamente como reflexo da situação econômica do país que apresentava um
contingente de mais de 10 milhões de desempregados, via-se que alguns
estabelecimentos haviam encerrado suas atividades na Rua da Imperatriz,
situação que piorou tremendamente.
Naquela audiência, ocorrida
na Câmara Municipal do Recife, foram apontados como fatores que contribuíram
para o fechamento de dezenas de lojas na Rua da Imperatriz, a questão da
segurança pública, da revitalização da rua e de seus prolongamentos, como a Praça Maciel Pinheiro, e, principalmente, da
falta de inserção do logradouro nos programas de tributação de imóveis da
Municipalidade, porque, segundo foi dito ali, com os imóveis fechados, seus
proprietários não têm como pagar o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU).
A atual realidade da Rua da
Imperatriz e de outras do seu entorno e dos bairros de Santo Antônio e São José
tem a ver, claro, com os reflexos da pandemia da covid-19, com o momento da
economia nacional – a taxa de desemprego continua altíssima: 8,8%, segundo o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – e com algo que uns e outros
parecem não notar: a mudança de comportamento das pessoas em várias áreas do consumo, processo esse que a tal da pandemia também acentuou.
Não são poucas as pessoas
hoje que trocaram a ida a bancos, farmácias, supermercados, sapatarias,
restaurantes, magazines, etc., etc., pelo chamado e-commerce, pelo delivery, enfim, pela compra feita no conforto de suas casas muitas vezes pagando menos do que
em estabelecimentos que existem nos
lugares onde elas moram. Tal mudança comportamental, que parece ser um caminho
sem volta, a meu ver, impactará ainda mais, e de maneira negativa, os espaços antigos
das capitais, acentuando o seu esvaziamento, caso eles não sejam reinventados
de alguma forma para que se tornem atraentes de novo, seja como locais de
moradia, seja como cenários de lazer e de encontro com atividades culturais e mesmo como pontos para as mais variadas atividades comerciais.
Confesso que, como flâneur de um Recife que me é muito caro
e valioso, como amante de uma cidade que tem uma importância na minha vida como
porta e janela para avistar e compreender o mundo, eu venho sentindo certa
tristeza quando me ponho a atravessá-la nos seus recônditos que me dizem tantas
coisas e os vejo como que esvaziados não só de pessoas, mas também de uma
atmosfera revigorante que é, afinal de contas, eu acredito, o que nos faz
efetivamente nos apegarmos a determinados lugares como se fosse uma força imática
a nos atrair para si. E, apesar de cenários degradados, de aspectos de cidade
fantasma que certos espaços da capital tem a mim revelado, eu continuo a buscar o
Recife com aquela velha ânsia que eu tinha lá atrás, lá na década de 1980,
quando eu era apenas um garotinho que ainda não tinha a mínima noção de quão
imperiosa seria a presença pétrea do Recife na sua trajetória e no seu
entendimento de si.
Quem tem um mínimo de
conhecimento sobre a História do Recife e de algumas de suas ruas e que leu
obras como Recife do Corpo Santo, de Vanildo Bezerra Cavalcanti, sabe que a Rua da
Imperatriz surgiu a partir do chamado Aterro da Boa Vista, “feito em função da
nova ponte que se ia construir em 1740” (Vanildo Bezerra Cavalcanti. Recife do Corpo Santo. Recife:
Prefeitura Municipal do Recife, 1977, p. 254), aterro esse que aparece
designado numa Planta da cidade com o nome de Terra Nova; e que media 100 braças de
comprimento por 30 palmos de largura, começando ao pé da ponte e terminando
mais ou menos onde foi erguida a imponente Matriz da Boa Vista. Como indicativo
da importância que muito cedo o logradouro alcançou no espaço da cidade, em 19 de agosto de
1849 nasceu Joaquim Nabuco, filho do Conselheiro Nabuco de Araújo, num dos
sobrados da rua.
Consolidada tanto como rua
de comércio como de residência de gente influente na sociedade recifense, com
seus sobradões de fachadas ricas em detalhes ornamentais, em 1859, por ocasião
da visita que o Imperador Dom Pedro II fez ao Recife, o logradouro passou a ser
chamado de Rua da Imperatriz Teresa Cristina – a Municipalidade ainda tentaria
alterar o nome para Rua Floriano Peixoto e Rua Rosa e Silva, possivelmente depois
da Proclamação da República, quando se pretendeu apagar a memória do tempo da
Monarquia, mas essas trocas não vingaram.
Não podemos nos esquecer de que
foi também na Rua da Imperatriz que se estabeleceu uma das mais antigas e
tradicionais livrarias do Recife, a Livraria Imperatriz, fundada pelo judeu
Jacob Berenstein. E que nela está o Sindicato dos Empregados no Comércio do
Recife que, como eu li no Praieiro,
um boletim que era distribuído pelos postos de salvamento das praias
recifenses durante os anos de 1945 a 1952, sob a direção de José Césio
Regueira Costa, então à frente da Diretoria de Documentação e Cultura, abria
espaço para exposições de artes plásticas.
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A tradicional Livraria Imperatriz, um dos prédios-ícones da Rua da Imperatriz |
Escrevendo estas coisas eu
me lembrei da Maria de França, personagem do livro A rainha dos cárceres da Grécia, de Osman Lins, que sofreu horrores
num Recife que lhe parecia ser tão burocraticamente perverso e excludente. Mas uma
cidade é como um espelho de muitas faces. E o Recife não é só o Recife de
palafitas erguidas nas margens do Rio Capibaribe. E o Recife não
é só os prédios antigos abandonados e correndo o risco de desabar, como o da
antiga sede do Diario de Pernambuco,
na Praça da Independência, e alguns da Rua 1º de Março. E o Recife não é só o
processo de gentrificação que vai se impondo para as bandas dos cais de Santa
de Santa Rita e José Estelita. O Recife
é também o Recife bonito de suas pontes unindo pedaços de chão da cidade. O
Recife é também o Recife de uma memória urbana magnificamente presente nos
seus templos católicos e nos seus palácios e sobradões bem cuidados dos tempos de antanho. E
o Recife é, enfim, como a Rua Duque de Caxias, como a Rua Nova e como a Rua da
Imperatriz que carregam consigo uma nobreza da qual elas – e nem nós que as
atravessamos – não querem abrir mão.
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