12 de agosto de 2023

Rua da Imperatriz: no vazio destes dias um clamor em defesa de sua nobreza

 Por Sierra


Fotos: Arquivo do Autor
Matriz da Boa Vista numa das pontas da Rua da Imperatriz: a pandemia da covid-19 agravou uma situação que já estava grave no que diz respeito à dinâmica do comércio das lojas dessa rua. Atualmente o que mais se vê nela são estabelecimentos fechados; as poucas lojas que ainda resistem convivem com um fluxo de pessoas que já não é o mesmo que se via muitos anos atrás


No último dia 10 de maio, o chamado plenarinho da Câmara Municipal do Recife foi cenário de uma audiência pública promovida pelo vereador Alcides Cardoso (PSDB) com o objetivo de debater os problemas e desafios existentes na Rua da Imperatriz Teresa Cristina, que todos nós chamamos apenas de Rua da Imperatriz, localizada no bairro da Boa Vista, área central do Recife.





Quem tem vivência do centro da capital pernambucana, quem frequentou ao longo dos anos e frequenta nos dias de hoje as ruas do centro da cidade sabe como diminuiu o fluxo de pessoas por aquelas áreas e como isso impactou de maneira negativa a relação do indivíduo com aqueles espaços.

Eu frequento os bairros centrais do Recife desde criança, porque minha mãe era comerciária na Rua Duque de Caxias – ela trabalhou nas lojas Cattan e Marisa -, e, algumas vezes, me levava para o seu local de trabalho aos sábados. E essa vivência juntou em mim muitas memórias e lembranças de transformações pelas quais ruas, praças e prédios foram passando durante as últimas décadas.


Vários dos pontos comerciais da Rua da Imperatriz apresentam anúncios de "aluga-se". A isso se soma o fato de que algumas dessas edificações que compõem o patrimônio histórico edificado do centro comercial do Recife está precisando passar por uma ação de revitalização





Costumo dizer que eu tenho os meus dias de indivíduo que vai ao Recife apenas para fazer compras, resolver problemas e voltar para casa e, também, tenho as ocasiões em que eu busco o Recife assumindo a persona e a condição de um flâneur; e, como tal, eu atravesso ruas, praças e pontes no ritmo da contemplação e de quem não está nem aí para o transcurso das horas. E foi como flâneur e como pesquisador do passado, digo, de aspectos do passado da cidade que eu comecei a enxergar o Recife, digamos, com os olhos mais abertos e mais perscrutadores.

O terrível evento da pandemia da covid-19 que conferiu, em alguns momentos de maior temor da contaminação, ares de cidade fantasma às cidades de um modo quase que geral, só fez agravar um cenário e uma situação que já eram bastante visíveis em vários logradouros comerciais do chamado núcleo primitivo do Recife. Ainda antes da pandemia, e certamente como reflexo da situação econômica do país que apresentava um contingente de mais de 10 milhões de desempregados, via-se que alguns estabelecimentos haviam encerrado suas atividades na Rua da Imperatriz, situação que piorou tremendamente.






Naquela audiência, ocorrida na Câmara Municipal do Recife, foram apontados como fatores que contribuíram para o fechamento de dezenas de lojas na Rua da Imperatriz, a questão da segurança pública, da revitalização da rua e de seus prolongamentos, como  a Praça Maciel Pinheiro, e, principalmente, da falta de inserção do logradouro nos programas de tributação de imóveis da Municipalidade, porque, segundo foi dito ali, com os imóveis fechados, seus proprietários não têm como pagar o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU).

A atual realidade da Rua da Imperatriz e de outras do seu entorno e dos bairros de Santo Antônio e São José tem a ver, claro, com os reflexos da pandemia da covid-19, com o momento da economia nacional – a taxa de desemprego continua altíssima: 8,8%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – e com algo que uns e outros parecem não notar: a mudança de comportamento das pessoas em várias áreas do consumo, processo esse que a tal da pandemia também acentuou.






Não são poucas as pessoas hoje que trocaram a ida a bancos, farmácias, supermercados, sapatarias, restaurantes, magazines, etc., etc., pelo chamado e-commerce, pelo delivery, enfim, pela compra feita no conforto de suas casas muitas vezes pagando menos do que em  estabelecimentos que existem nos lugares onde elas moram. Tal mudança comportamental, que parece ser um caminho sem volta, a meu ver, impactará ainda mais, e de maneira negativa, os espaços antigos das capitais, acentuando o seu esvaziamento, caso eles não sejam reinventados de alguma forma para que se tornem atraentes de novo, seja como locais de moradia, seja como cenários de lazer e de encontro com atividades culturais e mesmo como pontos para as mais variadas atividades comerciais.

Confesso que, como flâneur de um Recife que me é muito caro e valioso, como amante de uma cidade que tem uma importância na minha vida como porta e janela para avistar e compreender o mundo, eu venho sentindo certa tristeza quando me ponho a atravessá-la nos seus recônditos que me dizem tantas coisas e os vejo como que esvaziados não só de pessoas, mas também de uma atmosfera revigorante que é, afinal de contas, eu acredito, o que nos faz efetivamente nos apegarmos a determinados lugares como se fosse uma força imática a nos atrair para si. E, apesar de cenários degradados, de aspectos de cidade fantasma que certos espaços da capital tem a mim revelado, eu continuo a buscar o Recife com aquela velha ânsia que eu tinha lá atrás, lá na década de 1980, quando eu era apenas um garotinho que ainda não tinha a mínima noção de quão imperiosa seria a presença pétrea do Recife na sua trajetória e no seu entendimento de si.

 





Quem tem um mínimo de conhecimento sobre a História do Recife e de algumas de suas ruas e que leu obras como Recife do Corpo Santo, de Vanildo Bezerra Cavalcanti, sabe que a Rua da Imperatriz surgiu a partir do chamado Aterro da Boa Vista, “feito em função da nova ponte que se ia construir em 1740” (Vanildo Bezerra Cavalcanti. Recife do Corpo Santo. Recife: Prefeitura Municipal do Recife, 1977, p. 254), aterro esse que aparece designado numa Planta da cidade com o nome de Terra Nova; e que media 100 braças de comprimento por 30 palmos de largura, começando ao pé da ponte e terminando mais ou menos onde foi erguida a imponente Matriz da Boa Vista. Como indicativo da importância que muito cedo o logradouro alcançou no espaço da cidade, em 19 de agosto de 1849 nasceu Joaquim Nabuco, filho do Conselheiro Nabuco de Araújo, num dos sobrados da rua.









Consolidada tanto como rua de comércio como de residência de gente influente na sociedade recifense, com seus sobradões de fachadas ricas em detalhes ornamentais, em 1859, por ocasião da visita que o Imperador Dom Pedro II fez ao Recife, o logradouro passou a ser chamado de Rua da Imperatriz Teresa Cristina – a Municipalidade ainda tentaria alterar o nome para Rua Floriano Peixoto e Rua Rosa e Silva, possivelmente depois da Proclamação da República, quando se pretendeu apagar a memória do tempo da Monarquia, mas essas trocas não vingaram.







Não podemos nos esquecer de que foi também na Rua da Imperatriz que se estabeleceu uma das mais antigas e tradicionais livrarias do Recife, a Livraria Imperatriz, fundada pelo judeu Jacob Berenstein. E que nela está o Sindicato dos Empregados no Comércio do Recife que, como eu li no Praieiro, um boletim que era distribuído pelos postos de salvamento das praias recifenses durante os anos de 1945 a 1952, sob a direção de José Césio Regueira Costa, então à frente da Diretoria de Documentação e Cultura, abria espaço para exposições de artes plásticas.


A tradicional Livraria Imperatriz, um dos prédios-ícones da Rua da Imperatriz





Escrevendo estas coisas eu me lembrei da Maria de França, personagem do livro A rainha dos cárceres da Grécia, de Osman Lins, que sofreu horrores num Recife que lhe parecia ser tão burocraticamente perverso e excludente. Mas uma cidade é como um espelho de muitas faces. E o Recife não é só o Recife de palafitas erguidas nas margens do Rio Capibaribe. E o Recife não é só os prédios antigos abandonados e correndo o risco de desabar, como o da antiga sede do Diario de Pernambuco, na Praça da Independência, e alguns da Rua 1º de Março. E o Recife não é só o processo de gentrificação que vai se impondo para as bandas dos cais de Santa de Santa Rita  e José Estelita. O Recife é também o Recife bonito de suas pontes unindo pedaços de chão da cidade. O Recife é também o Recife de uma memória urbana magnificamente presente nos seus templos católicos e nos seus palácios e sobradões bem cuidados dos tempos de antanho. E o Recife é, enfim, como a Rua Duque de Caxias, como a Rua Nova e como a Rua da Imperatriz que carregam consigo uma nobreza da qual elas – e nem nós que as atravessamos – não querem abrir mão.

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