2 de dezembro de 2023

Maceió: uma cidade à beira de um abismo

 Por Sierra


Foto: Robson Barbosa/AFP
A tragédia de Maceió que, repito, se arrasta há vários anos, é o típico caso de projetos que prefeituras municipais e governos estaduais abraçam cegamente sem avaliar os riscos e os danos só visando o ganho eleitoral imediato com geração de empregos e impostos e outras coisas às quais não se ousa dar nomes.


No capítulo XVIII, intitulado de "O mito da Megalópolis", do superclássico A cidade na História, Lewis Mumford nos disse o seguinte:

Grande parte do pensamento a respeito do desenvolvimento em perspectiva das cidades de hoje tem sido baseada nas suposições ideológicas atualmente em voga a respeito da natureza e destino do homem. Por baixo do seu apreço superficial pela vida e pela saúde, encontra-se um profundo desdém pelos processos orgânicos que implicam a manutenção da complexa parceria de todas as formas orgânicas, num ambiente favorável à vida em todas as suas manifestações. Em vez de levar em consideração as relações do homem com a água, o ar, o solo e todos os seus componentes orgânicos, como a mais antiga e fundamental de todas as suas relações - não para ser constrangido ou apagado, mas ao contrário, para ser aprofundado e ampliado tanto em pensamento quanto em ação -, a tecnologia secular de nossa época dedica-se a imaginar meios de eliminar formas orgânicas autônomas, pondo em seu lugar engenhosos substitutos mecânicos (controláveis! lucrativos!) (Lewis Mumford. A cidade na História: suas origens, transformações e perspectivas. Trad. Neil R. da Silva. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 569).

Clássicos não são clássicos por acaso e nem só porque um crítico escreveu uma resenha com avaliação de cinco estrelas para a obra; clássicos são efetiva e fundamentalmente clássicos porque sua essência resiste às intempéries e aos modismos da passagem do tempo e permanecem nos dando lições; e A cidade na História, de Lewis Mumford, continua a nos ensinar não somente sobre os primitivos núcleos urbanos de antanho, mas também a respeito das cidades de nossos dias onde "ingênuos apóstolos do progresso" - a expressão é de Mumford - insistem em tratar o espaço urbano como se estivessem lidando com algo inteiramente novo e, por isso, repetindo erros do qual o passado está abarrotado.

Quem porventura acessou alguns dos grandes sites de notícias brasileiros hoje deu as vistas com o destaque dado por eles ao terrível e lamentável acontecimento digno de figurar num filme-catástrofe hollywoodiano que vem sendo arrastando há vários anos em Maceió, capital de Alagoas, em decorrência da exploração de sal-gema numa área de riqueza ambiental situada às margens da Lagoa Mundaú.

Certamente não foram "ingênuos apóstolos do progresso" que, na década de 1970, durante a vigência de uma ditadura militar sanguinária e feroz que fazia a propaganda do "Brasil grande" e do "Brasil potência", que autorizaram a exploração de sal-gema naquele pedaço de Maceió. Exploração essa que tempos depois passaria a fazer parte da Braskem e resultaria num dos capítulos mais revoltantes e desoladores da história do urbanismo nacional: décadas de exploração de diversas minas provocaram o afundamento do solo em cinco bairros da capital alagoana - Bebedouro, Farol, Mutange, Pinheiro e Bom Parto - que começaram a ver imóveis comerciais, residenciais e industriais apresentarem fissuras e rachaduras, levando a uma inevitável evacuação dos moradores, o que conferiu a eles aspecto de bairros-fantasmas. As imagens de imóveis abandonados eram e são desoladoras; e revelam o nível de destruição causada por uma exploração de sal-gema que, tudo leva a crer, não teve e/ou ignorou estudos de impactos futuros em toda aquela área.

Ao longo dos anos a Braskem manteve uma queda de braço na Justiça no que diz respeito às indenizações da população afetada pelas operações exploradoras da empresa. O que eu venho me perguntando há tempos é se só cabe indenização aos proprietários dos imóveis atingidos por fissuras e rachaduras. E quanto à cidade? E quanto aos animais que serão afetados com a possível abertura de uma gigantesca cratera, como estão anunciando especialistas? E a Lagoa Mundaú? E o meio ambiente em conjunto?

Caso nos restrinjamos tão somente à área urbanizada, que não é pequena, diga-se de antemão, devemos considerar fundamentalmente também que não são apenas casa, lojas, indústrias e edificações outras que foram compulsoriamente condenadas a fisicamente desaparecer da memória urbana de Maceió; lembremo-nos que, junto com tais construções e arruados e praças e todo o traçado urbano que tudo isso ocupava, desapareceram dali costumes, tradições, convívios, celebrações e vivências, porque a alma de uma cidade, a força motriz de uma cidade não são as suas construções e as suas paisagens naturais, e, sim os seus moradores, os seus trabalhadores, os seus visitantes; são, enfim, as pessoas que efetivamente dão vida ao espaço citadino, algo que parece não foi ainda considerado pelos que vêm acompanhando a tragédia urbana de Maceió.

Há quem queira a todo custo nos fazer crer que nem todo capitalista é selvagem, como se o alcance do lucro cada vez mais volumoso não estivesse na planilha de todos eles e eles tivessem um muito profundo respeito e consideração pelas pessoas, pelas coisas e pelos animais; e seguissem ao pé da letra as determinações legais trabalhistas e ambientalistas. Desculpem-me: eu não sou um "ingênuo espectador" das encenações dos "apóstolos do progresso".

A tragédia de Maceió que, repito, se arrasta há vários anos, é o típico caso de projetos que prefeituras municipais e governos estaduais abraçam cegamente sem avaliar os riscos e os danos só visando o ganho eleitoral imediato com geração de empregos e impostos e outras coisas às quais não se ousa dar nomes.

Tudo que estamos vendo acontecer em Maceió confirma uma obviedade ululante: há ganhos que resultam em grandes perdas.

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