18 de maio de 2024

Cidades em perigo

 Por Sierra


Imagem: UOL
Tragédia que se repete. Porto Alegre em parte inundada, como em 1941. Não se trata mais de avaliar se as mudanças climáticas são um fenômeno natural ou se elas são decorrentes de ações humanas. Urge que os nossos conceitos de urbanização e de urbanismo sejam revistos sob pena de termos de enterrar dezenas de mortos toda vez que ocorrerem precipitações pluviométricas intensas e prolongadas, como aconteceu agora no Rio Grande do Sul



Ao longo dos últimos dias o Brasil e o mundo vêm acompanhando a grande tragédia que castigou centenas de cidades no Rio Grande do Sul. Chuvas intensas e prolongadas, que especialistas vêm apontando como sendo decorrentes do aquecimento global, provocaram muita, muita destruição, alagamentos, enchentes e mortes de pessoas e de animais. O quadro é de catástrofe. E a tristeza vista nos olhos de quem perdeu parentes, amigos e bens é a marca definidora de tudo o que aconteceu e ainda está acontecendo ali, porque em vários lugares as águas levarão semanas para baixar.

Houve tempo em que casos de inundações, enchentes e deslizamentos de barreiras vitimavam apenas os chamados vulneráveis sociais, pessoas que, por alguma razão de ordem socioeconômica, ocupavam - e ocupam - áreas de encostas e beiras de rios e lagoas. Mas isso vem mudando. Nos últimos anos nós assistimos a ocorrências de enchentes e inundações, com tudo de ruim que elas causam, não somente em locais ocupados pelos vulneráveis como também em lugares das cidades considerados seguros e onde se encontram moradias de alto padrão e grandes estabelecimentos comerciais; ocorrências essas que evidenciam que, em alguma medida, todos nós estamos à mercê desses desastres naturais.

As imagens de uma Porto Alegre em parte tomada pelas águas lembram cenas de filmes-catástrofe. Em 1941 a cidade já tinha vivenciado esse pesadelo. Tudo invadido. Tudo tomado. Tudo compondo um cenário de evidente impotência frente à força da natureza. Tudo deixando ver que, diante das mudanças climáticas, será preciso, urgentemente, repensarmos o nosso conceito de urbanização e essa política governamental de fechar os olhos para todos e cada um que insistem diuturnamente em desprezar e ignorar as leis de uso e ocupação do solo e promover o desordenamento urbano.

Acredito que não exista uma única cidade neste país onde a Municipalidade mantenha uma séria e eficaz atuação que promova uma fiscalização contínua, uma fiscalização que monitore e coíba ocupações desordenadas, construções irregulares, aterros de áreas de escoamento das águas da chuva, estreitamento de rios e córregos, cortes de barreiras e etc.

Por onde se anda e para onde se olha, de norte a sul deste país, nós nos deparamos com cenários que nos dizem claramente de uma indigência urbanística, de uma urbanização com seu muito de descompromisso com a salubridade, a segurança, o ordenamento e o futuro da própria cidade e, por conseguinte, dos seus habitantes.

Enquanto muitos desacreditam o alarme científico que diz que o planeta está passando por um aquecimento global que vem provocando  mudanças drásticas nas condições climáticas, temos visto acontecimentos catastróficos ocorrer em várias partes do mundo. Secas prolongadas e enchentes têm, ao que tudo indica, ficado mais frequentes e intensas que normalmente.

Independentemente de acreditar ou não em quem professa o aquecimento global, quer esse aquecimento seja decorrente da própria natureza, quer ele seja consequência de ações humanas, o fato inescapável, para crentes e negacionistas, é que o fundamento do nosso urbanismo, os pilares de nossa urbanização precisam ser revistos sob pena de continuarmos a lamentar e chorar pelo tanto de vidas perdidas e pelos cenários de destruição e de terra arrasada que estamos vendo em centenas de cidades gaúchas, evento esse de magnitude e abrangência sem precedentes neste país.

As cidades, quando comparadas com organismos vivos, passam por transformações ao longo de suas existências. E, tal qual seres vivos, elas podem sofrer adoecimentos provocados por ações que nós, que as ocupamos, vamos lhe destinando. A partir do momento em que você obstrui e/ou estreita o curso das águas de um rio, por exemplo, pode ter absoluta certeza que isso trará alguma consequência ruim, porque naturalmente esse rio vai manter sua existência de rio, ou seja, vai continuar a correr para algum lugar; e ai de quem ou o quê estiver no seu caminho.

Eu falei de obstrução de um rio, mas as cidades podem adoecer de diversas outras formas: com o desmatamento; com os aterros; com o descarte irregular de entulhos; com o tráfego de veículos; com um número muito elevado de habitantes; e com a ausência de mecanismos de controle do seu crescimento; mecanismos esses que tratem de promover o ordenamento urbano e as diretrizes que estabelecem como as cidades devem existir de modo sustentável.

Nós temos o costume, o mau costume de postergar necessidades e urgências, como se sempre e sempre fôssemos dispor de uma nova chance para reparar, reconstruir, refazer, remendar, resgatar, retelhar, reabilitar, reordenar, recapear, reconduzir, recobrir, reavaliar, religar, reabastecer, reutilizar... e recomeçar.

É assim. É sempre assim. Mas não deveria ser assim. As mais de cem vítimas fatais da tragédia gaúcha, por exemplo, não irão mais poder recomeçar. Tudo para elas acabou. Tudo para elas teve fim. A enchente, a enxurrada e a inundação acabaram com a vida delas.

As cidades estão em perigo. E postergar a elaboração de um urbanismo que nos confira mais segurança frente às turbulências dos fenômenos da natureza é promover um ordenamento urbano que não desacredite o imperativo das mudanças climáticas e nem feche os olhos para o que nas cidades são ataques à sua integridade física.

Não nos esqueçamos disto: quem sempre posterga, além de não mudar para melhor o seu presente, desacredita e arruína parte ou todo o seu futuro.

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