22 de junho de 2024

A cidade esvaziada

 Por Sierra


Fotos: Arquivo do Autor
Flagrante de um trecho da Av. Dantas Barreto a partir da Rua da Roda:


Não sei como isso se dá com vocês, mas comigo, quase sempre, a coisa acontece assim: eu vou atravessando ruas, becos, calçadas e recantos e fico a observar se alguma ou algumas mudanças ocorreram nos cenários desde a última vez que eu os percorrera e/ou os avistara.

Eu sou um colecionador mental de cenários urbanos. Eu arrumo a minha coleção, geralmente, fixando nos registros algum sentimento, alguma evocação de modo que ele permaneça guardado em mim com uma aura de eternidade. É um recurso um tanto quanto passional, eu reconheço, mas, para mim, não poderia ser de outra forma, porque é precisamente essa ideia de eternidade, que eu estabeleci e concebi, que fundamentalmente me liga a esses recortes urbanos.

Na semana passada eu percorri logradouros de três bairros centrais do Recife: da Boa Vista, de Santo Antônio e de São José. Percorri-os olhando para uma miríade de paredes, chãos e indivíduos estabelecendo conexões entre o que se encontrava guardado em mim e o que a vista naquela quinta-feira me trazia.

Eu lamento. Eu lamento muito enxergar espaços esvaziados de gente como eu tenho visto nos bairros centrais do Recife. É como se a cidade estivesse passando por uma ação de evacuação em massa. E esse esvaziamento de pessoas, por outro lado, deixa ver, também, que processos de transformação, revitalização e gentrificação estão seguindo como que coordenados, como se a ausência de pessoas nada dissesse respeito a eles, como se tais processos não estivessem efetivamente ligados e interligados aos indivíduos que habitam na cidade ou que apenas a vivenciam como lugar de permanência temporária.


Rua Matias de Albuquerque: vazios dos cenários urbanos do Recife outrora tão cheios de gente


Enquanto, por exemplo, o Cais de Santa Rita e o Cais José Estelita passam por um vistoso e custoso processo de gentrificação, a Prefeitura Municipal do Recife vem trabalhando para valorizar pelo menos parte do patrimônio histórico edificado civil e religioso da cidade - já "libertaram", por assim dizer, as igrejas de Santa Cecília, de Nossa Senhora do Livramento e do Divino Espírito Santo, dos bares, barracas e etc. que as ladeavam; e o Mercado de São José está sento todo ele recuperado e revitalizado. Some-se a isso o recente anúncio de que vão finalmente restaurar e ocupar, como espaço cultural, o sobrado localizado na Praça Maciel Pinheiro, onde a escritora Clarice Lispector passou parte de sua infância.

Tais iniciativas contrastam com um Recife que está muito abandonado e degradado. Contrastam com um Recife que vem seguindo como se fosse área pela qual não se devesse transitar. Com o abandono de prédios. Com o fechamento de centenas de estabelecimentos comerciais. Com um Cinema São Luiz que está há vários meses sem abrir suas portas...

Naquela quinta-feira eu me deparei com um grande paradoxo: a área central do Recife segue esvaziada de gente e alguém teve a iniciativa, vejam só, de instalar um estacionamento de automóveis no térreo de um edifício que fica na esquina entre as ruas da Imperatriz e Aurora. Aposto com qualquer um que tal estacionamento não terá muito tempo de existência, assim como aconteceu com o que foi instalado num prédio na esquina entre as ruas Nova e do Sol.


Aspecto da Rua Pedro Ivo, que faz a ligação entre as ruas Matias de Albuquerque e Nova: nesta rua que mais parece um beco não há, no momento, sequer um estabelecimento funcionando


Ah, gente, e ali, bem em frente ao novo estacionamento, eu olhei para uma fachada e fiquei ainda mais triste: uma placa anunciando  que o edifício da tradicional Livraria Imperatriz está à venda. É mais uma instituição da paisagem urbana e sentimental recifense que vai desaparecer tal qual aconteceu com a Livro 7 e a Síntese. E por falar nessas livrarias, eu me lembrei agora que, ainda naquela quinta-feira, eu passei pela Rua do Riachuelo e vi que demoliram umas construções e que removeram umas barracas num amplo terreno - eu não observei se havia uma placa informando o que será feito ali. Também na Rua do Riachuelo, só que na esquina com a Rua do Hospício, eu observei que um casarão que há muitos anos sofria com um processo de degradação e que ocupado, entre outros, por uma reprografia e um sebo, fora igualmente demolido.


O prédio da icônica Livraria Imperatriz está à venda


Por esses dias me ligou um muito querido amigo chamado Holmes Vanderley. Nesses tempos de troca de mensagens textuais e de áudio pelos WhatsApp's da vida, receber uma ligação é algo inusitado e incomum; acontece que eu e ele somos de outro tempo, por isso, um telefonema, para nós, não é um espanto. Pois bem, entre os vários assuntos que nós tratamos na demorada conversa, Holmes, que está atualmente residindo em Caruaru, me disse que, por ora, ele, que é uma das pessoas que eu conheço mais identificada com o Recife, com as coisas do Recife, com o ser do Recife, com a luz do Recife, com o traçado do Recife, enfim, com o espírito do Recife, não tem sentido vontade alguma de voltar a morar lá. Ele me disse que o que tem sentido é uma enorme vontade de sair também de Caruaru e ir buscar moradia em alguma pequena cidade do nosso interior pernambucano.


Aspecto da Praça Maciel Pinheiro, vendo-se ao fundo o sobrado onde morou Clarice Lispector com um anúncio da restauração e reocupação do prédio

Depois de nossa conversa eu me peguei pensando em quantos Holmes Vanderleys se desapegaram do Recife, saíram do Recife, se afastaram do Recife, abandonaram o Recife, esvaziaram o Recife... 

Não sei. Eu não sei se ainda verei um centro do Recife em pleno bulício, em plena agitação como vi há quinze, vinte anos. Creio que não o verei mais como em tempos atrás. O esvaziamento dos bairros centrais do Recife talvez seja um processo que não será mais revertido, como igualmente pensa o Holmes Vanderley. Talvez eu e ele estejamos errados em nossas avaliações. Eu só não quero que em mim o sentimento de apego ao Recife se esvaia deixando um imenso vazio. Ah, isso não.

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