15 de junho de 2024

Sobre presentes que nos desagradam

 Por Sierra



Imagem: Freep!k
Ninguém merece ganhar coisas das quais não gosta


Quem é que não gosta de ganhar presente? Eu particularmente adoro. Assim como também gosto de ver o brilho nos olhos daqueles que recebem presentes que eu lhes oferto. Ganhar e ofertar presentes são formas de demonstrar um carinho e um gostar, na maioria das vezes. Ruim é quando acontece de você ter escolhido algo que a pessoa visivelmente não gostou de ter recebido.

Muitos anos atrás - o episódio ocorreu há mais de uma década - eu ganhei um porta-retratos de um casal que voltara de lua de mel. Ao receber das mãos do sujeito aquele objeto eu disse assim de mim para mim: "Como alguém traz um troço desses de viagem para presentear alguém?". Chegando à minha casa eu tratei de manter o tal porta-retratos guardado num lugar que não ficasse ao alcance da minha vista.

O tempo foi passando e a estratégia de esconder o porta-retratos não funcionou, porque, quando, por algum motivo, me deparava com ele, eu sentia uma raiva danada daquilo. Até que num belo e iluminado dia me veio a indagação: "Qual a razão para eu manter dentro de casa algo que só me causa contrariedade, algo que inteiramente me desagrada?". E eu de pronto me dei uma resposta em ação que foi uma verdadeira catarse: eu peguei aquela coisa feia, quebrei ela em mil pedaços e joguei logo no balde de lixo.

Nossa, como foi bom ter feito isso. Ufa, que alívio! Se eu soubesse que ter feito isso me faria tão bem, eu teria destruído aquele troço no dia mesmo em que ele chegou às minhas mãos e imediatamente começou a me fazer mal.

Normalmente a vida e as pessoas ao nosso redor nos ensinam uma porção de coisas para o nosso bem viver; e, às vezes, ocorre que nós mesmos temos alguns insights e fazemos pequenas e grandes descobertas que nos elevam para um patamar que sequer imaginávamos que alcançaríamos, como aconteceu comigo ao me livrar daquele presente incômodo, daquele intruso, daquele inconveniente objeto que eu levara para dentro da minha casa sem quê nem para quê e que ficara me atanazando com sua presença durante um longo tempo.

Há quem diga que presentes são coisas que nós devemos guardar e preservar mesmo que eles não nos agradem. Existe até um dito popular para isso: "a cavalo dado não se olham os dentes". Quem louva e defende isso parece ignorar aquele outro quadrúpede, o cavalo de Troia, o presente dos aqueus para os eólios que causou a derrota destes numa guerra.

Não, gente, comigo isso não funciona mais desde aquele iluminado dia em que eu me livrei do maldito porta-retratos. "Ah, a pessoa escolheu com tanto carinho o presente e se lembrou de você durante a viagem e você fez isso?". Bem, se foi verdade que sobrou carinho, o fato é que faltaram bom senso e simancol na escolha do suvenir. E eu decididamente não tenho vocação nenhuma para autoflagelação. Não tenho mesmo.

Vejam o que é a falta de bom senso - de bom senso e de respeito, melhor dizendo - na postura de quem escolhe um presente para dar a alguém. Por ocasião do meu mais recente aniversário uma alma que talvez se julgue ser muito, muito caridosa - ela é evangélica, ainda por cima; não que ser evangélico seja um mal em si e um defeito; para mim o mal e o defeito de um evangélico estão na postura de querer a todo custo converter alguém à crença dele e de pensar que todos os outros que não seguem a religião que ele professa irão para o inferno. Particularmente eu não tenho nenhum problema com a ideia de inferno por eles desenhada e constantemente anunciada; mas, com gente desse tipo eu tenho sim; e, por isso, eu os evito -,  sabendo que eu sou ateu me presenteou, imaginem, com uma caneca na qual estava gravado um versículo bíblico. Não é de lascar? Como se não bastasse a cafonice de dar de presente uma caneca, a criatura, que não se conforma com o fato de ir para o céu sozinha, ainda teve a petulância e o descaramento de afrontar a minha descrença. Eu tive ímpeto de jogar no chão a caneca assim que eu a recebi no meio de um grupo de pessoas. Mas consegui me conter. E dois ou três dias depois, não me lembro bem, eu repassei o objeto para um conhecido meu dizendo que eu ganhara aquilo e que não gostara dele; e perguntei a ele, claro, se a queria ou não, porque, caso ele não a quisesse, eu a jogaria fora. Ele a quis.

Passadas algumas semanas a criatura que me presenteara com a indesejada caneca me perguntou por ela. Sem titubear e nem medir as palavras eu lhe disse que me desfizera do objeto, que o repassara para outra pessoa, porque não gostara do presente e muito menos da frase que ele trazia. E arrematei a explicação com esta frase que eu carrego como um mantra desde aquele dia catártico em que eu me livrei do porta-retratos: "Presente só é de fato um presente quando faz bem e agrada a gente".

O livrar-se do porta-retratos foi um aprendizado e tanto para mim. Depois dele, nunca mais eu me deixei ficar refém de presentes incômodos: eu trato de me livrar deles o mais rápido que posso. Amém!

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