1 de junho de 2024

Fora da gaiola

 Por Sierra


Charge de Renato Magrini de Souza.
Quem nasceu para ser livre jamais se conformará com a usurpação de sua liberdade


Eu era um adolescente. Não lembro quantos anos eu tinha exatamente. Por esse tempo mainha estava namorando um sujeito chamado Mário, que trabalhava vendendo frutas, era cachaceiro e gostava de criar passarinhos. Mário foi um dos namorados da minha mãe com o qual me dei bem, não o repeli nem nada, porque ele me parecia ser gente boa.

Certo dia Mário, que gostava de me agradar, trouxe para mim, de presente, um curió. Também não recordo os sentimentos que me tomaram naquela ocasião. Aquilo era novo para mim. Eu nunca sequer cogitara possuir um pássaro numa gaiola naquela casinha de taipa;  casinha mesmo pois só possuía uma salinha, um quarto e um espaço que servia como cozinha; o banheiro e o estrado, que chamávamos de jirau, onde lavávamos roupas e pratos, ficavam do lado de fora do casebre. Retratos de tempos difíceis, muito difíceis.

O meu encantamento como garoto que possuía um passarinho numa gaiola e ainda mais um curió, logo um curió, um passarinho do qual se dizia que poderia valer uma nota caso ele fosse um bom cantor, não demorou um mês. Certo dia, quando eu acordei e mirei a gaiola, me dei conta de que o curió não estava ali, em seu abrigo, pendurado num caibro do telhado da sala. Cheguei a pensar que fora a inveja dos meus colegas que fizera com que o danadinho tivesse deixado a nossa morada. Examinando a gaiola mais de perto eu verifiquei que sua portinha não estava aberta e que uma das laterais daquele objeto feito com madeira, arame e varetas fininhas estava quebrada; e eu deduzi que só poderia ter sido por ali que o bichinho havia saído para reconquistar a sua liberdade.

A tristeza que me tomou foi também ela fugaz. E o episódio, hoje tão longínquo, me deu na ocasião um olhar novo sobre aquilo: eu nunca mais que iria querer possuir um passarinho engaiolado pelo resto de minha vida. Aquele acontecimento fez brotar em mim o entendimento da dimensão do aprisionamento e da necessidade de liberdade. E isso despertou em mim certa aversão que eu passei a nutrir por esse costume, por essa cultura da gaiola. E foi e é exatamente por isso que eu me sinto até hoje incomodado quando passo e observo nos terraços e nos alpendres das casas gaiolas expostas como se fossem troféus.

Não tem quem me convença, não tem que me faça compreender e aceitar que seja carinho ou algo que o valha o comportamento de quem mantém em sua casa uma ou mais gaiolas com passarinho. Eu sei que muita gente cria para vender; e que outros possuem passarinhos porque egoisticamente querem ouvir seus cantos, como se essas aves canoras existissem para ser propriedades suas e não para viverem livres e soltas na natureza.

Recordar a lembrança do curió que um dia eu possuí está servindo aqui como preâmbulo para eu dizer, a partir de agora, de uma cultura de passarinho de gaiola que existe neste pedacinho da Ilha de Itamaracá onde eu moro e que ocupa muitos adolescentes e jovens adultos.

Todos os dias, todos os dias em que eu saio de casa às cinco e pouca horas da manhã para pegar o primeiro dos dois ônibus que me conduzem até o meu lugar de trabalho, na cidade de Abreu e Lima, eu me deparo com alguns dos muitos criadores de passarinhos que existem por aqui. Reparo que um deles, da rua onde eu moro, possui várias gaiolas; e que ele cuida com grande dedicação de todos os passarinhos, trocando a água, repondo comidinhas e saindo para campear com pelo menos um deles - campear é sair com a gaiola por aí e colocá-la em algum ponto afastado da casa; e o campear por vezes reúne diversos criadores, que se encontram nalgumas esquinas de certas ruas que dão para a Avenida do Forte Orange. Não há uma só vez em que eu olhe para todas aquelas gaiolas e sinta dó pelos passarinhos privados de sua natureza de voar e de ser livre. E quase sempre isso me entristece.

A propósito eu quero registrar aqui uma passagem do livro de memórias de José Lins do Rego, que foi um menino de engenho de cana de açúcar na Paraíba. No capítulo XVII do seu Meus verdes anos ele nos contou de um sujeito conhecido como Chico Pechincha, que vivia de capturar passarinhos e vendê-los nas feiras livres. Certa feita esse comerciante disse assim a Zé Lins;

- Menino, eu pego passarinho mas até tenho vergonha do ofício. Olha aquele canário que está naquele pé de goiabeira. A gente bota o alçapão e ele vem cair na esparrela. Nunca mais que ele canta como está cantando. Perde a voz e há até muitos que morrem (José Lins do Rego. Meus verdes anos. Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint S. A., s. d., p. 67).

Durante a desgraceira da pandemia da covid-19, circulou nas redes sociais uma charge do Renato Magrini de Souza que me marcou profundamente. No desenho do que parecia ser uma sala, sentado numa cadeira junto a uma janela de onde se via a paisagem verdejante de um dia ensolarado, um homem mirava o vazio lamentando o fato de não poder sair de casa por causa da quarentena. Ele dizia assim: "Poxa, não aguento mais ficar trancado dentro de casa...". E um passarinho preso numa gaiola comentava: "È ruin (sic) né? Por quê (sic) você não canta pra passar o tempo?".

O maravilhoso Zé Lins fechou o seu livro de memórias nos contando tristemente sobre o dia em que viu pela última vez o seu canário Marechal, que fora presente do negro José Joaquim, que trabalhara no Engenho Corredor, propriedade do seu avô materno. Zé Lins acreditava que fora o marido de sua Tia Naninha que abrira a porta da gaiola. O menino ficou desconsolado; e chorou tanto. Certa manhã Marechal apareceu no quintal. Havia uma esperança de que ele estivesse querendo voltar para casa. Zé Lins chegou a jogar alpiste no terreiro para ver se o bichinho se aproximava mais. Mas não foi isso o que aconteceu:


E mal pus os pés por debaixo da goiabeira, ele voou para longe até sumir-se na distância. Ainda o vi como um pontinho no céu azul. Vi-o furando o espaço e correndo  para o mundo. Lá se fora ele com os cantos que enchiam de alegria minhas madrugadas de asmático. Lá se perdia ele para sempre, assim como estes meus verdes anos que em vão procuro reter (José Lins do Rego. Op. cit., p. 262-263).

Quem nasceu para ser livre jamais se conformará com a usurpação de sua liberdade.

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