6 de julho de 2024

Outras cidades invisíveis

 Por Sierra


Foto: Arquivo do Autor
Trecho da Rua Fernando Lopes de Albuquerque, na Ilha de Itamaracá, no litoral norte de Pernambuco

 

Naquela que deve ser a sua obra mais conhecida e celebrada, que é As cidades invisíveis, mestre Italo Calvino nos falou de várias urbs, como: Chloé, cidade grande na qual as pessoas que passam pelas ruas não se reconhecem; Sofrônia, que é composta de duas meias cidades; Eudóxia, que possui um tapete no qual se pode contemplar a verdadeira forma da cidade; e Moriana, cujas portas são de alabastro transparente.

Eu me recordei dessa famosa narrativa de Italo Calvino quando fiquei a imaginar os milhares, os milhões, os bilhões de cidades invisíveis que existem na cabeça de cada um dos habitantes deste planeta em contraste com as cidades reais com as quais nós lidamos diariamente.

Decerto são bastante diferentes as cidades que imaginamos como sendo as ideais para se viver e aquelas onde em realidade nós vivemos. Nós sempre tendemos a fazer mentalmente projetos de centros e espaços urbanos perfeitos, principalmente quando os lugares reais que percorremos apresentam uma série de deficiências estruturais e são, por assim dizer, espécies de anticidades.

E por que existem anticidades? E por que nós não tratamos de promover a transformação da cidade real conferindo-lhe a aparência daquela que imaginamos? E por que nós não nos dispomos a executar pequenas ações - não jogar lixo em córregos, por exemplo - que podem mudar para melhor a aparência dos espaços que habitamos? E por que sempre e sempre nós responsabilizamos a administração municipal por todos os males que acometem a cidade sem que assumamos a nossa parcela de responsabilidade para com tais ocorrências?

Na última quarta-feira, enquanto eu me encontrava à espera de uma condução, ouvi um homem dizer para outro que algumas obras da cidade onde ele mora foram abandonadas pelo prefeito atual porque se tratam de projetos de administrações anteriores. Segundo o entendimento daquele cidadão, o abandono das obras e o descaso para com o dinheiro público se resumiam ao fato de que o chefe do executivo municipal do momento não querer concluir um projeto que de algum modo poria o nome de um ex-prefeito na ordem do dia, porque, afinal, fora ele que o concebera. 

A avaliação daquele cidadão tem o seu quê de verdadeira, uma vez que, neste país, em todos os níveis do poder executivo - municipal, estadual e federal - a cultura da descontinuidade administrativa é histórica e muito daninha para a sociedade como um todo, porque abandonar uma obra sem justificativas técnicas plausíveis é jogar o dinheiro do contribuinte no lixo. Acontece que, muitas vezes, muitas vezes mesmo, o abandono desta ou daquela obra se deu não por mero capricho do administrador do momento e sim porque a obra foi embargada pela Justiça por causa de uma ou mais irregularidades. Ou o abandono ocorreu forçosamente, porque a empresa que estava tocando o projeto consumiu boa parte dos recursos e depois faliu. Ou foi descoberto um superfaturamento da obra. Ou o serviço iniciado no empreendimento ficou tão malfeito  que era preciso recomeçar do zero. Sem querer posar de advogado do diabo, amiúde, são essas e outras situações que também podem provocar o abandono de obras públicas; obras essas que frequentemente consomem rios de dinheiro.

Andando pelas cidades - sejam elas do tamanho que for - nós sempre nos deparamos com problemas: ruas sem pavimentação; lixo não recolhido; bueiros entupidos; rodovias esburacadas; pontes sem guarda-corpos; desordenamento urbano; etc. E reclamamos dos prefeitos. E depositamos uma esperança de que o próximo chefe do executivo municipal que for eleito resolverá finalmente todas as carências e deficiências da cidade, dotando-a de uma nova cara. E, novamente, nós não assumimos responsabilidades para com o bem-estar da cidade, como se ela abrisse mão da nossa cota de cuidado e participação para com a manutenção de sua integridade.

Neste ano ocorrerão as eleições - em alguns casos as reeleições - de prefeitos e vereadores. Ouviremos promessas que não serão inteiramente cumpridas. Apostaremos nossas fichas em fulano e beltrano. E aguardaremos o desfecho do pleito eleitoral com grande expectativa ou com um enorme desânimo.

Todos e cada um de nós carrega dentro de si "um sonho feliz de cidade", como disse Caetano Veloso na música "Sampa". O que tem nos faltado é uma clara compreensão de que a cidade idealizada jamais ganhará concretude enquanto não nos dispusermos a manter uma rotina de verdadeiro cuidado para com a cidade real na qual habitamos.

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