3 de agosto de 2024

A cidade que não existe mais

 Por Sierra

Foto: Arquivo do Autor
Paisagem de uma memória sentimental: trecho do centro urbano de Abreu e Lima, minha cidade natal, que foi em grande parte desfigurada para que novas faixas da BR 101 fossem abertas. Alguns cenários da Abreu e Lima da minha infância não existem mais


Quantas vezes aconteceu de você voltar, por exemplo, para a cidade em que você nasceu, depois de ter passado muitos anos fora, ou mesmo para uma cidade para onde você viajou nas férias, há vários anos, e se deparou com algumas transformações no desenho urbano propriamente dito - as ruas, as praças, os prédios, etc. - e isso lhe causou certo espanto e estranhamento a tal ponto que você chegou mesmo a dizer assim de si para si: "Essa não é mais aquela cidade que um dia eu conheci. Não é mais a cidade da minha infância e juventude"?

Eu falei em traços urbanos físicos porque eles funcionam como os elementos mais costumeiramente lembrados quando nós falamos de descaracterizações e/ou transformações pelas quais determinadas urbs passaram e passam. Mas é claro que existem outros referenciais que não são necessariamente palpáveis. Eu posso falar de uma padaria que existia na Rua Fulano de Tal, como também dizer de uma festa tradicional que não mais realizam. Posso apontar que naquele terreno onde passou a existir um grande supermercado outrora era ocupado por uma muito conhecida oficina de carros e também dizer que, todos os anos, quando principiava o verão, muita gente costumava ir tomar banho no rio que cortava a cidade em seu lado sul e que, atualmente, figura como um verdadeiro esgoto correndo a céu aberto com centenas, milhares de casas construídas às suas margens em grande parte de seu curso.

Não é só caminhando pela minha cidade natal, Abreu e Lima, que eu percebo que ela em parte não existe mais. Isso eu constato igualmente em outros centro urbanos que eu conheço. Eu vou atravessando ruas, pontes, viadutos e avenidas e me certifico de que algo foi mudado e de que alguma coisa despareceu para sempre da paisagem concreta que era visível aos olhos; desapareceu uma paisagem que é atingida e marcada pela memória que cuida ela própria de estabelecer os limites e os perímetros de uma paisagem sentimental, que, diferentemente daquela cidade concreta, feita de aço, tijolo e cimento, não se arruína e nem desmorona e se conserva intacta, como que confirmando que, nas tramas da memória, a ideia  de cidade que ficou em nós, como cenário de uma vivência, é, por assim dizer, imutável.

O ritmo das mudanças impelidas pelo incansável e todo-poderoso deus Progresso não se processa da mesma forma em todas as cidades. Há cidades que parecem que mudam suas feições como quem troca de roupas; ao passo que existem outras cuja dinâmica de transformação opera de modo lento, como se elas fossem desobedientes e se recusassem bravamente a cumprir as determinações daquele deus que abomina a permanência porque é por natureza inquieto e impaciente. Mas em alguma medida e de alguma forma todas as cidades se transformam ao longo de suas existências.

E por que eu digo isso? Porque tais transformações operam não somente dentro daqueles dois pontos que eu mencionei lá atrás: as mudanças de elementos físicos e concretos, como edificações; e mudanças de caráter imaterial, como o ritual de uma procissão em homenagem à padroeira do município. As transformações que me levam a pensar numa ou em mais cidades que deixaram de existir operam também na teia dos sentimentos com os quais lidamos com elas. A partir do momento em que eu perco o sentimento que me ligava efetivamente a elas, inevitavelmente elas acabam sendo transformadas dentro de mim, num processo que paulatinamente vai apagando elas do meu convívio e do meu interesse num movimento de irrefreável desapego.

E por que isso se dá? E por que isso ocorre?  Eu não tenho uma explicação muito clara e precisa para tanto. Talvez isso ocorra porque algo dentro de nós se recusa terminantemente a aceitar a sua impotência diante da força esmagadora, insensível e impiedosa do deus Progresso, que faz ouvido surdo a toda e qualquer súplica e apelo para que não siga em frente de maneira tão avassaladora e destruidora.

Entre as várias cidades que o poeta maranhense Ferreira Gullar inventou figura a muito conhecida e buscada Ufu, na verdade, uma megalópole que "não se rende a nenhuma definição". Disse-nos o poeta que os que para ela se dirigiram em viagens de turismo, voltam para seus lugares de morada geralmente carregando "uma inconfessada mágoa no coração". E por quê? Porque "a Ufu que conheceram era muito diferente daquela de que lhes falavam e sabem que, uma semana depois, quando chegarem em casa, falarão de uma Ufu que já não existe mais, uma vez que ela se transforma veloz e incessantemente. É como se não tivessem ido lá" (Ferreira Gullar. Cidades inventadas. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2000; todas as citações na p. 9).

Existem, infelizmente, várias Ufus por aí. E algumas delas se alvoroçam dentro de mim, elas que são prisioneiras de um movimento esmagador que as segue modificando incessantemente.


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