24 de agosto de 2024

Descrevendo um testemunho

 Por Sierra


Foto: Miriam Stumpf
Detalhe da planta aveloz
Relatos orais das ditas "pessoas comuns" podem nos dar uma dimensão de vidas que nem sempre são postas e colocadas nas narrativas oficiais de nossa historiografia


Anteontem, quando, ao sair do trabalho, eu embarquei num dos dois ônibus que tomo para chegar a minha casa, uma senhorinha pequenina e de aparência frágil se sentou ao meu lado. E não demorou para que nós iniciássemos uma boa e demorada conversa.

Não sei se eu já lhes falei sobre o fato de que, não raro, pessoas que eu nunca vira antes se põem a conversar comigo e contar coisas íntimas de suas vidas, como se fôssemos velhos conhecidos. Certa feita, um guarda municipal me falou assim, após uma longa conversa que mantivemos também dentro de um coletivo: "Não sei por que eu te falei todas essas coisas. Eu não sou de fazer isso com ninguém, juro por Deus".

Na conversa que eu tive com  a senhorinha Risomar - "O pessoal que me conhece costuma me chamar de Riso", ela destacou do alto dos seus 69 anos de idade -, na tarde da última quinta-feira, o tom confessional dela me fez ver em seus olhos que, mais do que um diálogo com um quase desconhecido - eu disse quase  porque eu já a avistara mais de uma vez num ponto de ônibus e a cumprimentara com um "bom dia!" -, o  que ela efetivamente estava fazendo em minha companhia era uma espécie de pagamento ao sobrenatural, no qual ela acredita, pelo que considerou como sendo uma graça alcançada vinda, segundo me disse, "Pelo muito que eu pedi a Deus e a Nossa Senhora para que me livrassem da doença". "Eu já dei este testemunho a várias pessoas. Eu precisava fazer isso", ela completou. E ao ouvi-la falar assim eu compreendi que a sua narrativa ou, no dizer dela, o seu testemunho era como se fosse um ex-voto.

Risomar falava toda ela aparentando estar muito satisfeita e feliz por ter saído vitoriosa de uma dura batalha. E que batalha foi essa? A luta contra um câncer no reto, descoberto há alguns poucos anos.

Eu era todo ouvidos para a Risomar porque, não bastassem a minha formação como historiador e a curiosidade enorme que me move, eu gosto muitíssimo de ouvir depoimentos de pessoas mais velhas sobre toda e qualquer coisa, buscando nas falas delas a compreensão que elas carregam sobre como estar no mundo.

Começando pelo começo, pela ocasião da descoberta da doença, Risomar me contou que, certo dia, depois de evacuar, observou um pouco de sangue nas fezes, situação essa que se repetiu em outros dias. "Como ocorreu uma suspeita de que fosse hemorroida (sic), eu cheguei a tomar remédios pra isso, mas não resolveu. Então eu fui procurar saber o que realmente era. Foi quando eu fiquei sabendo que era câncer no reto", ela falou.

Não foi o fato da espontaneidade do testemunho da Risomar o que me chamou a atenção, afinal, como eu disse, isso costuma acontecer comigo. O que foi marcante no depoimento dela foi a tríade fé religiosa + crença na ciência acadêmica + crença na sabedoria popular à qual ela recorreu para, de acordo com suas próprias palavras, "Vencer a doença".

Apegada à sua fé em Deus e em Nossa Senhora, Risomar buscou tratamento no Hospital das Clínicas do Recife - ela também passou pelo Real Hospital Português da capital pernambucana -, tendo enfrentado várias sessões de quimioterapia e radioterapia - "O meu cabelo não caiu, acredita?", ela me disse num tom que denotava uma admirável satisfação junto com uma inegável alegria - e, paralelo a isso, recorreu também a uma, digamos, terapia alternativa que alguém lhe ensinara: ao longo do dia ela tomava, em três ocasiões - manhã, tarde e noite - um remédio caseiro: uma gota de leite de aveloz dissolvida em água. Ela me disse acreditar piamente que foi o conjunto formado pela fé religiosa, o tratamento médico e o leite de aveloz que possibilitou a sua cura. "Tinha gente que pensava que eu ia ser operada. Até uma médica falou isso. Ela chegou pra mim e disse: 'Dona Risomar, cirurgia não é garantia de 100% de sucesso, mas tem de fazer'. Eu disse: 'Doutora, se não é 100% pra ninguém, imagine pra mim, com essa idade'. Graças a Deus, a Nossa Senhora, aos remédios e ao aveloz eu fiquei boa".

Quando terminou de me contar a sua história Risomar me disse assim: "Eu já dei esse testemunho a várias pessoas para que elas saibam do poder de Deus".

O depoimento da Risomar me fez ficar pensando no tanto que, ao longo da vida, cada um de nós lança mão e recorre a vários recursos na tentativa de se livrar dos obstáculos que vão surgindo, para que o existir perdure durante o maior tempo que for possível . A singeleza e a força do seu testemunho revigoraram em mim um sentimento de autodeterminação ao mesmo tempo que alargaram, no meu fazer como pesquisador, o entendimento e a valorização da chamada História oral como instrumento para obtenção de narrativas que podem ser conseguidas no meio da gente simples e não somente daqueles tidos por alguns como verdadeiros "testemunhos da História". A História, na verdade, está também onde nós às vezes nem imaginamos que esteja.

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