17 de agosto de 2024

Silvio Santos, o eterno camelô da TV brasileira

 Por Sierra


Foto: Luiz Carlos Murauskas/Folhapress
Quem quer dinheiro? É fácil ficar cantarolando "da vida não se leva nada, vamos sorrir e cantar' para plateias embasbacadas e alienadas ao mesmo tempo em que, por outro lado, você se mantém tenazmente empenhado em se tornar um multimilionário


Tendo amargado uma infância e uma adolescência com muitas privações, eu só vim a ter uma televisão em casa quando completei 15 anos de idade: meus padrinhos me deram um aparelho que transmitia imagens em preto e branco, já usado, e que teve uma vida curtíssima, porque o tubo queimou.

Eu possuo uma memória televisiva desse período bem grande, considerando que durante muitos anos eu fui o que chamam de televizinho, que é o indivíduo que, não dispondo de uma aparelho de TV em sua residência, vai assistir à programação televisiva na casa dos outros, na casa do vizinho.

Foi essa lembrança agridoce de um tempo da minha vida que me chegou quando eu, hoje, ao ligar a TV na hora do almoço, tomei conhecimento da morte do apresentador Silvio Santos, anúncio esse que me deixou um pouco triste, mas que, por outro lado, não me pegou de surpresa, porque, há dias eu vinha acompanhando, nos sites de notícias, informes sobre o estado de saúde dele, que se encontrava internado num hospital.

Como eu disse, eu possuo uma memória televisiva enorme do meu período de infância e de adolescência. E boa parte do meu, digamos, hard disc cerebral quanto a isso, está ocupada por várias coisas que eu vi no Sistema Brasileiro de Televisão, que todos nós conhecemos como SBT. Eu adorava, por exemplo, o programa Domingo no Parque, cuja plateia era formada por crianças. Nossa, várias vezes eu desejei estar ali no meio daquele pessoal, porque eu queria poder ganhar aqueles brinquedos da marca Estrela que tanto me fascinavam. Era uma festa, uma verdadeira festa dominical aquele programa. 

Passaram os  anos e o Silvio Santos lançou gente nova como o Gugu Liberato - vi muito os programas Viva a Noite e Domingo Legal com sua famosa e criticada banheira repleta de homens e mulheres seminus numa época de acirrada disputa no Ibope pela audiência com o Domingão do Faustão, da Rede Globo - e a Mara Maravilha, de quem eu gostava mais como cantora do que como apresentadora. E pôs no ar, importado do México, o humorístico bobinho Chaves. E o telejornal apelativo e sensacionalista Aqui Agora. E como não se lembrar do programa Qual é a Música?. Eu fechava os olhos e tentava adivinhar qual era a música conforme os toques das notas musicais dadas no teclado do piano.

E é preciso que eu diga que tudo isso aconteceu numa época em que a televisão era o maior e para muitos o único meio de entretenimento que existia. E quando eu digo isso é para que você, que chegou ao mundo quando a sociedade já estava imersa e dominada pelas maravilhas e pelas coisas nocivas advindas com a difusão da internet, tenha pelo menos uma ideia do alcance massivo da televisão. Se ainda hoje, num tempo de internet, de streamings e outros atrativos, alguns programas das TV's abertas, como o Jornal Nacional e A Fazenda, atraem milhões de espectadores, imaginem no tempo das TV's como atrativos dominantes.

Como historiador de formação que sou, eu não consigo mais olhar para os acontecimentos sem fazer uma avaliação e/ou reavaliação deles a  partir de diversos parâmetros e mesmo comparações que o distanciamento do tempo transcorrido permite e possibilita. Sendo assim, eu, a partir de certo momento, comecei a reavaliar o papel de Silvio Santos e de seu canal de televisão na  realidade brasileira.

Muito do que eu vi hoje nos canais de televisão, que dedicaram parte de sua programação para homenagear o Silvio Santos, exaltou este fato sobejamente conhecido: ele começou como um camelô e conseguiu erguer um império com o SBT. A meu ver Silvio Santos nunca deixou de ser um camelô; ele, na verdade, se tornou um camelô televisivo.

Revendo a trajetória do Silvio Santos, já no seu SBT, eu percebo que ele possuía um quê desses pastores evangélicos de igrejas neopentecostais que pregam a famigerada "teologia da prosperidade". Eu vejo o Silvio Santos como alguém que procurou o tempo todo incutir no telespectador o pensamento de que é preciso possuir dinheiro e bens materiais para ser feliz; o tal do "ter para ser" foi uma constante nos programas dele. Não é à toa que o carnê que proporciona o resgate de mercadorias ao final dos pagamentos das mensalidades e até sorteios de idas aos programas do SBT se chama Baú da Felicidade. A ideia de que a felicidade, que pode ser financiada e paga em parcelas, vem com a conquista material é uma pregação muito poderosa, porque consegue aliciar facilmente muita gente.  Eu me lembro muito bem do dia em que, nos idos da década de 1980, uma vendedora dos tais carnês bateu na porta da minha avó Maria da Conceição e a convenceu a ficar com dois deles. Também me recordo das duas vezes em que eu fui, com umas vizinhas, às lojas do Baú da Felicidade que existiam nas ruas do Hospício e Camboa do Carmo, no Recife, para fazer o resgate de prêmios que, na verdade, consistia em comprar mercadorias das lojas, que não eram nada baratas, com o valor total pago das mensalidades dos carnês. Como as mercadorias eram caras, geralmente, a pessoa tinha de desembolsar mais grana para levar algo que a encantou e que o valor do resgate não dava para comprar.

Na esteira do Baú da Felicidade veio o bingo televisivo Tele-sena. Minha mãe comprou  cartelas por anos a fio e nunca ganhou nada. A "teologia da prosperidade seduziu e ainda seduz milhões de indivíduos por este país afora. E, depois da Tele-sena, vieram os perfumes da Jequiti, outro empreendimento do Silvio Santos amplamente divulgado e vendido pelo seu canal de televisão. E nós não podemos nos esquecer de que ele também possuiu um banco, o Pan Americano, que faliu em 2010 revelando uma fraude bilionária.

Como eu tive uma infância vivida sob a Ditadura Militar, eu me recordo também da ação da censura na televisão - antes do início dos programas aparecia uma autorização para tanto, do censor federal -; e que no SBT, que começou a existir em 1981, era exibida nos intervalos da programação dos domingos, uma espécie de propaganda do presidente da República chamada A Semana do Presidente.

Não é cabível, digamos assim, falar do lado B das pessoas no calor de sua morte, segundo avaliam alguns. Eu não penso assim; e minha formação acadêmica não permite que eu aja assim. Ainda há pouco também faleceu o economista Delfim Netto; e, ainda bem, houve quem tenha recordado que ele foi ministro dos ditadores militares e apoiou o Ato Institucional nº 5, o mais terrível dentre os que foram decretados pelos golpistas. E eu acredito que no meio das louvações que tantos fizeram hoje ao Silvio Santos, alguém, assim como eu, fez questão de recordar a bajulação que ele fazia aos militares que lhe destinaram a concessão do canal de televisão. E aposto que também, assim como eu, alguém anotou que Silvio Santos nunca deixou de ser um camelô, porque ele fez do SBT um canal majoritariamente de televendas. É fácil ficar cantarolando "da vida não se leva nada, vamos sorrir e cantar" para plateias embasbacadas e alienadas ao mesmo tempo em que, por outro lado, você se mantém tenazmente empenhado em se tornar um multimilionário.

Indiscutivelmente, para o bem e para o mal, Silvio Santos é um dos grandes ícones da TV brasileira. Muito do que ele fez foi superado pelo tempo, pelas transformações sociais e comportamentais e pelo discurso do politicamente correto. Contudo, ele seguirá sendo um exemplo de sucesso e de superação num país que abomina e que tem um verdadeiro horror aos pobres, humildes e fracassados.

Quem quer dinheiro?

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