7 de setembro de 2024

O caso Silvio Almeida

 Por Sierra


Foto: Reprodução/Instagram
Qual é a dificuldade que alguns homens deste meu tempo têm para compreender que a nossa convivência e trato com as mulheres, em várias instâncias e ambientes, não pode ser mais como era antigamente, pelo menos não em nossa sociedade? Gente, o tempo definitivamente é outro


Quando, anteontem, começaram a aparecer na imprensa as denúncias de assédio sexual envolvendo o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania Silvio Almeida, eu fiquei muito abalado. Eu senti um misto de desapontamento, de tristeza e de frustração, porque, para mim, Silvio Almeida tem uma força de presença muito forte e um simbolismo muito grande.

Num país onde a população negra sofre com uma quase verdadeira caçada diária - não é por acaso que é negra a maioria dos indivíduos que é assassinada por este Brasil afora -, Silvio Almeida é um sobrevivente. Num país onde o racismo recorre a vários meios para impedir que os negros alcancem um alto patamar na pirâmide social, Silvio Almeida atingiu uma altura normalmente só alcançada pela mais do que privilegiada população branca. Num país onde, para os pobres e despossuídos, a educação pública, muitas vezes, é um artigo que possui baixa e/ou baixíssima qualidade, Silvio Almeida conseguiu fazer duas graduações - Direito e Filosofia - e cursar um doutorado. Num país onde pouco se vê negros ocupando altos postos nos mais variados setores e instituições, Silvio Almeida, advogado, escritor e professor universitário foi alçado à condição de ministro de Estado. Não é pouca coisa. Não é mesmo. Muito pelo contrário. É uma dessas grandes façanhas proporcionadas àqueles que se esforçam diariamente para conseguir em algum momento sair da zona de perigo e de exclusão social em que se encontram.

Quando foram anunciados os nomes dos ministros do atual governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e apareceu o de Silvio Almeida entre eles, eu vibrei como se ele fosse muito próximo a mim, como se ele fosse um velho camarada meu. E eu sei por que esse sentimento de satisfação me tomou: eu vi em Silvio Almeida uma reserva de integridade, competência, preparo intelectual, determinação e resiliência e, claro, uma figura altiva e reluzente que, eu acreditava, demarcaria um muito necessário espaço de representatividade da população negra dentro de um governo de esquerda, dentro de um governo tão comprometido com as pautas das chamadas minorias.

Eu conheço e imagino que você que está lendo estas linhas também conhece alguma pessoa negra que só porque conseguiu superar a sua condição de pobreza e de exclusão social, só porque ela conseguiu, como se costuma dizer, "vencer na vida", afirma que não existe racismo no Brasil. Alguém que abre a boca para afirmar isso certamente não tem clareza sobre a sociedade em que vive e muito menos tem compreensão das desigualdades socioeconômicas que atingem mais negros e pardos do que brancos. E, quando eu digo isso, eu me recordo não somente dos altos índices de assassinato que acometem jovens e adultos negros como também me lembro do triste e terrível caso do menino Miguel, que, sem atenção alguma de quem poderia naquele momento estar cuidando dele, caiu de um apartamento de um prédio de alto padrão, no Recife, enquanto sua mãe, negra e empregada doméstica, passeava com o cachorro da patroa, em plena pandemia da covid-19, estando a patroa com uma manicure.

No momento em que, bastante triste pelo que ocorreu com o Silvio Almeida, escrevo este relato, eu penso que o caso do agora ex-ministro Silvio Almeida é tanto mais lamentável porque nós sobrevivemos aos quatro malditos anos do desgoverno de Jair Bolsonaro, assistindo, durante o quadriênio antidemocrático, a discursos contra minorias e a manifestações de quem dizia que as minorias devem se curvar à maioria e que o sistema de cotas não deveria existir, entre outros ditos desprezíveis, cruéis e desumanos. Além disso, víamos na presidência da Fundação Palmares, uma instituição criada para celebrar a ancestralidade africana que permeia a nossa sociedade bem como o seu legado em vários campos de nossa vida cotidiana, um homem negro  chamado Sérgio Camargo que mais parecia um capitão do mato a perseguir e destratar grandes personalidades negras da nossa História, como se ele tivesse vergonha de ser negro. Frente a um quadro de tamanha malignidade vista no desgoverno ultradireitista de Jair Bolsonaro, a chegada de um negro com a estatura intelectual de Silvio Almeida a um ministério do atual governo ganhou um simbolismo, uma dimensão e um significado enormes.

Eu não vou cair aqui na linha de análise, que eu li em alguns lugares, que pontuaram e sugeriram que certamente Silvio Almeida foi destituído do ministério do qual era titular por interesses de quem não suportava a ideia de que existisse um negro comandando um cargo daquela grandeza. Não vou fazer isso porque, seguindo esse raciocínio, eu desqualificaria as denúncias de assédio sexual que foram feitas contra ele e, por tabela, agiria para desqualificar as vítimas e me portar como mais um desses tantos machos que andam por aí dizendo que mulheres só existem para satisfazer sexualmente os homens e para cuidar das tarefas da casa.

Qual é a dificuldade que alguns homens deste meu tempo têm para compreender que a nossa convivência e trato com as mulheres, em várias instâncias e ambientes, não pode ser mais como era antigamente, pelo menos não em nossa sociedade? Gente, o tempo definitivamente é outro. Sim, infelizmente, nós ainda convivemos com elevadas taxas de feminicídio e de exploração sexual de mulheres; mas, por outro lado, avançaram e muito os instrumentos legais que trataram de dar amparo e de proteger as mulheres que são vítimas de predadores sexuais. E isso, essa mudança de paradigma legal fazendo par com a postura que umas e outras tiveram e têm tido de levar os seus casos para a Justiça e expô-los publicamente, provocaram um efeito cascata que, pela força da correnteza que nós temos visto, não vai cessar e nem retroceder.

Desapontado e triste eu sinceramente espero que o Silvio Almeida prove a sua condição de inocente que ele está dizendo que é nos casos de assédio sexual que até agora vieram à tona. E, se as investigações apontarem e confirmarem os crimes que as denunciantes disseram que ele praticou, que ele seja justa e corretamente penalizado por isso.

Negros e brancos, direitistas e esquerdistas, ricos e pobres, bem formados e analfabetos... Os algozes e predadores sexuais das mulheres não têm uma única face e não estão restritos a um só segmento social.

Professor Silvio Almeida, doutor Silvio Almeida, escritor Silvio Almeida, humanista Silvio Almeida, o senhor não faz ideia como tudo isso em que a sua pessoa está envolvida me entristeceu. Por mais que eu lhe admire e por mais que eu lhe queira bem, neste momento a minha solidariedade é para com as mulheres que se apresentaram como vítimas de crimes que elas afirmaram que o senhor cometeu.

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