Nenhum
homem nesta terra é repúblico,
nem zela
ou trata do bem comum,
senão
cada um do bem particular.
Frei
Vicente do Salvador, em História do
Brasil, 1627
Durante o movimento de protesto
de caminhoneiros que por muito pouco não provocou a completa paralisação deste
país, eu e certamente milhares e talvez milhões de outros brasileiros fomos
bombardeados diariamente por áudios, textos e vídeos que circulavam pelo WhatsApp espalhando as verdades que
convinham aos seus emissores. Bolsonaristas e quejandos pregavam o tempo todo
uma intervenção militar no comando da nação tomando como pretexto a greve dos
motoristas de caminhões, como se os caminhoneiros não tivessem exercendo uma
paralisação legítima e por que não dizer necessária para eles e por extensão
para todos nós que de alguma maneira movimentamos as engrenagens da economia; e
como se os nobres militares detivessem um poder supremo capaz de dar conta de
tudo e de todos, esquecendo esses pregadores de realidades perfeitas – e realidades
perfeitas, como se sabe, existem uma para cada pessoa, conforme sua ideologia,
crença e tudo o mais – que o trato das conveniências de cada um de nós não
necessariamente atende os anseios de todos e/ou da maioria da sociedade. E afora
essas almas sebosas apareceu outro tipo de oportunista: aquele que se aproveitava
da insegurança imperante e do receio do completo desabastecimento para jogar
nas alturas o preço de itens como gás de cozinha.
Entre as dezenas de vídeos e
áudios que eu recebi um deles tratava de demonizar por completo a Rede Globo
exibindo inúmeros protestos ocorridos sabe-se lá quando, nos quais os
manifestantes xingavam até com palavrões a emissora e os seus funcionários. Teríamos
de ser completamente ingênuos e não dispor de uma mínima capacidade de senso
crítico e de discernimento para não pesar e acreditar cegamente em certas
realidades que nos são reveladas e, dessa forma, não termos um norte para
nossas vidas.
Não é de hoje que a rede de
televisão da família Marinho é acusada de ser a responsável por parte do atraso
sociocultural dos brasileiros e de o tempo todo manipular os telespectadores e
agir conforme suas conveniências, interesses e adesões políticas. É claro, é
óbvio, é muito provável que grande parte, quiçá, a maioria das pessoas que
aparece achincalhando a Rede Globo no famoso vídeo que circula no WhatsApp
esteja ali não para defender a imparcialidade dos meios de comunicação – eu não
conheço nem um sequer que seja imparcial -, a moralidade, os bons costumes, a
honestidade e coisas do gênero, e, sim, defendendo ideologias retrógradas e
autoritárias nas quais acredita, políticos ladrões dos quais recebe algum tipo
de gratificação e mesmo os traficantes que fazem chegar a eles maconha, cocaína
e otras buenas cositas que são, por
assim dizer, os estimulantes de certos protestos. A ética, a moralidade e a
honestidade dessa gente certamente é tão gigantesca quanto a cabeça de um
alfinete. Também me parece claro que o cidadão comum, aquele que não lê livros
nem jornais e sites de notícias e se informa pelo Jornal Nacional, Jornal da
Record, Jornal da Band, SBT Notícias e congêneres e pelo que lhe chega via
WhatsApp, faz pouco ou nenhum questionamento a respeito do que lhe é informado
e propagandeado; e põe sua bunda gorda no sofá para ouvir as baboseiras ditas
por Faustão e acompanhar as tramas das novelas, como o cunhado de um amigo meu
que se diz evangélico fervoroso e não perde um só capítulo da novela das nove.
A falta de imparcialidade é
tão flagrante nos meios de comunicação que, no caso particular da cobertura do
movimento dos caminhoneiros, não se viu – eu pelo menos não vi – reportagens das
redes de televisão – e não só as exibidas pela Rede Globo – que mostrassem também a
vida dura dos caminhoneiros e todas as dificuldades que eles enfrentam na lida diária; o que era mostrado se punha basicamente contra a greve,
de modo que o telespectador ficasse indignado e sem apoiar os motoristas de
caminhão – o próprio fato de as pessoas irem aos postos atrás de combustíveis
era por si só a mais flagrante demonstração de que o movimento não estava sendo
apoiado pela população; era como se a reivindicação dos caminhoneiros não lhes
dissesse respeito. Não se mostrava, por exemplo, os longos percursos que muitos
caminhoneiros percorrem diuturnamente, por vezes durante semanas, para levar e
trazer produtos e matérias-primas em estradas e rodovias estaduais e federais
sem conservação e até sem asfalto; em vez disso, mostrava-se a diminuição de
ônibus nos terminais e o sufoco de passageiros querendo embarcar. Não se
revelava valores de fretes para determinados itinerários e quanto, no final das
contas, ficava com os motoristas, depois dos gastos com óleo diesel e pedágios;
em vez disso, informavam que postos de saúde, clínicas e hospitais estavam com
seus atendimentos entrando em colapso por falta de medicamentos e insumos que
deixaram de ser entregues. Não se esclarecia a população de que, todos os dias,
motoristas – e o estado do Rio de Janeiro é, até onde se sabe, o lugar onde
isso mais acontece – têm seus veículos e cargas roubados sem que o poder
público consiga agir eficazmente para tentar coibir essas ações criminosas; em
vez disso, os repórteres se punham a exibir centrais de abastecimento às moscas
e gôndolas de supermercados esvaziando. Não se dizia ao povo que o custo de
manutenção de um caminhão é altíssimo – pneus, por exemplo, precisam ser
trocados com menos de um ano de uso, dadas as distâncias enormes que são
percorridas e as estradas péssimas que eles atravessam -; em vez disso, o
enfoque eram o descarte de milhares de litros de leite e a mortandade de
frangos nas granjas, por falta de ração. Enfim, a ordem do discurso era essa. A
toada das reportagens era um interminável déjà
vu com entradas ao vivo em tudo quanto era canto revelando quão danosa
estava sendo para a população o movimento capitaneado por motoristas de
caminhão. E, repito, a realidade era assim mostrada não só pela Rede Globo, e,
sim, por todos os canais de televisão aos quais eu assistia, numa bem
direcionada – e mal-intencionada – cobertura jornalística cuja apuração dos
fatos tomava de antemão um partido e uma posição: ser contra o movimento dos
caminhoneiros. E ponto.
Por que as redes de
televisão – e, repito, não só a Rede Globo – não aproveitaram a paralisação dos
motoristas para esclarecer didaticamente a população como pesam os tributos do
Governo em tudo o que consumimos? E, principalmente, por que a cambada de
políticos que vive no bem bom às nossas custas não pôs a cara na janela e se
manifestou sobre o que estava acontecendo – as exceções foram os governadores,
claro, porque eles já estavam/estão lidando com perdas e mais perdas de
arrecadação de impostos -? Ora, por que,
porque essa gente não quer se comprometer para valer com os trabalhadores e só
se preocupa em como ludibriar o cidadão e se lançar em qualquer maracutaia e
negócio escuso que lhe renda uma quantia significativa a ser depositada em
contas no exterior. Minha gente veja o que o Governo fez agora para conceder um
desconto de R$ 0,45 no preço do litro do óleo diesel: reonerou certos setores
da economia e cortou verbas para projetos sociais. Em outubro do ano passado,
para aumentar o Fundo Partidário, que passou para quase um bilhão e oitocentos
milhões de reais, emendas parlamentares – um montante beirando quatrocentos e
setenta e três milhões de reais – deixaram de ser destinadas à saúde e à
educação.
É esse o Brasil que esses
cupins, esses cânceres que trajam termos e tailleurs
querem para o futuro: um Brasil preso ao passado e ao atraso sem fim. Mas não
nos iludamos ao pensar que são apenas os políticos que se esforçam para que
este país permaneça na lesma lerda: milhares de funcionários públicos com
salários astronômicos ficam dia a dia reivindicando mais e mais benefícios. Por
R$ 0,45 foram cortados verbas para projetos sociais. Por que não se cortou
auxílio moradia de juízes e quetais? Por que não se mexeu no Fundo Partidário? Por
que não se cortaram salários que em muito extrapolam o teto constitucional e
pensões vitalícias que mais se parecem coisas do tempo das Capitanias
Hereditárias? Ora por que, porque essa coisa de “justiça social” não é com
essas pessoas. Essa gente está cagando e andando para as injustiças sociais
porque o que lhes importa mesmo é ter garantidos a mansão no condomínio de
luxo, o foro privilegiado, a escola bilíngue dos filhos e as viagens a Paris. Para
eles continua valendo o pensamento do filósofo Justo Veríssimo: “Eu quero que
pobre se exploda!”. É esse o retrato acabado, cagado e cuspido do Brasil que
sempre esteve aí, um país no qual advogados têm o desplante de esbanjar em
revistas, em redes sociais e onde mais puderem a vida nababesca que passaram a
ter defendendo ladrões do dinheiro do povo. Somos uns desgraçados mesmo. E nossa
alienação, nossa pequenez moral, nossa inferioridade cívica e intelectual
explica por que indivíduos como Renan Calheiros e Romero Jucá e outros tantos
de igual espécie se mantêm por anos a fio na ativa democraticamente eleitos e
aprontando das suas.
É ano de eleições gerais e
estamos mergulhados num mar de incerteza como, aliás, sempre estivemos. Que legitimidade
tem um Congresso Nacional, uma assembleia legislativa, uma câmara de vereadores
onde diariamente – diariamente é um exagero, porque suas excelências trabalham
pouco, vocês sabem – se tramam as mais sórdidas negociatas, as mais nefastas
transações de locupletação enquanto hospitais públicos se arruínam cada dia
mais, escolas continuam disponibilizando ensino de qualidade inferior e pessoas
são assassinadas aos magotes vitimadas por ações de foras da lei? Que moral e
legitimidade tem um presidente da República para dirigir os rumos de uma nação
se esse mesmo presidente é, também ele, um sujeito acusado de tramar com
malfeitores para rapinar os cofres públicos? O que esperar e como confiar em um
Supremo Tribunal Federal cujos integrantes mudam seus votos sobre assuntos que
dizem respeito a toda a população brasileira como quem troca de roupa e sai por
aí para tomar umas e outras e jogar conversa fora? Estamos sem horizonte, essa
é que é a verdade. As eleições gerais se aproximam e o que temos como potencial
vencedor da disputa para ocupar o mais elevado cargo público da nação é um
sujeito completa e inteiramente estúpido, uma criatura sem noção, uma pessoa
retrógrada que acredita ser detentora de plenos poderes e que é a própria
encarnação da besta-fera. Vade retro, satanás!
Durante a paralisação dos
motoristas aqui e ali apareciam pessoas demonstrando apoio à causa desses
homens – mulheres caminhoneiras ainda quase não se veem por aqui – que cruzam o
país de norte a sul e de leste a oeste na boleia de seus caminhões levando e
trazendo as riquezas que a gente realmente trabalhadora produz.
Todos nós concordamos o
tempo todo que o Brasil precisa de algum modo ser salvo. O problema é que a
maioria de nós não pensa realmente no bem comum e se ocupa fundamentalmente, ao
fim e ao cabo, em salvar somente a própria pele.
Parabéns pelo texto. Sinceramente, muito bom.
ResponderExcluirConcordo e digo: Setenta por cento do não sucesso da greve dos caminhoneiros é culpa exclusiva mimi dos coxinhas, paneleiros e as desgraças dos direita e esquerda entende? mimi do ta faltando tomate, remédio, carne , ta morrendo frango nas granjas, foda-se ....
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