9 de junho de 2018

Muitos, muitos vivas para Amelinha!

Por Clênio Sierra de Alcântara



Somente os idiotas se lamentam de envelhecer.
               Marco Tulio Cícero, 44 a.C.



Na capa do livro Amelinha aparece ao lado do então noivo e futuro esposo Francisco Esmeraldo de Melo



Quando, em janeiro do ano passado, João Evangelista de Melo Neto começou a entrar em contato comigo através de correio eletrônico, dizendo que estava preparando um livro em homenagem à sua mãe Amelinha, quis ele saber se em meu arquivo eu dispunha de fotografias e também de um cartão-postal da casa do seu bisavô Ignácio Nery da Fonseca, ao qual eu fiz menção num artigo que escrevi sobre um imóvel da Rua do Progresso, no bairro da Boa Vista, no Recife - a casa do cartão-postal ficava na esquina dessa artéria com a Rua da Soledade e não existe mais; deu lugar a um lucrativo estacionamento, pelo menos por enquanto.

A notícia da elaboração de um livro sobre Maria Amélia Nery da Fonseca Melo, a Amelinha, me encheu de grande expectativa porque em mais de uma ocasião eu tive o privilégio de conversar com ela na casa do seu irmão Edson Nery da Fonseca, em Olinda, e ficara impressionadíssimo com sua vivacidade, com seu talento para os trabalhos manuais e, principalmente, com a clareza de sua memória e a destreza com que ela se punha a resgatar fatos do passado, evocando nomes de pessoas, descrevendo cenários, cantando e fazendo referências até a detalhes aparentemente sem importância. No momento do nosso primeiro encontro sua irmã Lúcia Nery, a bondosa e paciente Lúcia Nery que faleceu ainda há pouco, no último dia 23 de maio, sem que eu tenha conseguido me reconciliar com ela, me disse assim: "Olhe, eu não sou muito boa de memória, mas Amelinha é um espanto. Essa daí parece que não esquece de nada". Nunca, até hoje, eu conheci pessoalmente idosos tão avançados nos anos com memórias tão prodigiosas quanto as de Amelinha, as do seu irmão Edson e as de um amigo dele, Marco-Aurélio de Alcântara. Conversar com essas pessoas era quase sempre para mim um momento de engrandecimento como indivíduo; eu ouvia o que elas tinham para me dizer, me deixando levar pelas narrativas e apreendendo o que era possível guardar na minha memória. 


        Foto: Arquivo do autor   
                Amelinha e o o seu irmão Edson num registro feito em 2003, no dia do aniversário dele


Ainda em fins do ano passado eis que me chegou às mãos a obra Dez vezes mãe: a vida de Maria Amélia Nery da Fonseca Melo (São José dos Campos: Tachion Editora, 2017, 130 p), fruto do empenho e das diligências levadas a cabo pelo João Melo. E eu de pronto comecei a devorar as páginas do livro, que é ricamente ilustrado com fotografias. Fui lendo-o com aquela ânsia própria não de quem está em busca de segredos e sim de quem tem sede de saber mais sobre pessoas que admira e tem apreço. No livro, Amelinha aparece quase tão gigantesca quanto eu a vi na casa do seu irmão, só que tocando piano e fazendo hidroginástica, vejam só, coisas que eu não sabia que essa em tudo admirável senhora fazia e faz. Nascida no Recife em 1928, Amelinha fez parte dos estudos na Escola Normal Pinto Júnior; assistiu a voos do dirigível Zeppelin; e conheceu um tempo da capital pernambucana no qual tocar piano era algo bastante apreciado por famílias de prol, o que a levou ao aprendizado do instrumento no Colégio Regina Pacis, no bairro da Madalena. Afora notas biográficas como essas, o leitor de Dez vezes mãe toma conhecimento do casamento, do nascimento dos filhos e netos, da viuvez e de outros aspectos da trajetória de Amelinha que muito em breve, no dia 22 de outubro, irá celebrar noventa anos de idade; noventa anos de uma existência plena e vitoriosa, porque só ela tem o perfeito entendimento da dureza que foi ficar viúva aos 53 anos com dez filhos para cuidar, alguns deles ainda pequenos.


                                              Cartão-postal: Arquivo do autor
Diferentemente da casa do avô do poeta Manuel Bandeira, localizada na Rua da União, que ainda existe, parecendo mesmo que está impregnada de eternidade, esta, que pertenceu a Ignácio Nery da Foneca, avô de Amelinha, situada na esquina da Rua da Soledade com a Rua do Progresso, também no Recife, desapareceu para dar lugar - pelo menos por enquanto - a um estacionamento de automóveis

Muito embora tenha sido uma leitura até certo ponto entusiasmadora, o livro de João Melo em alguma medida me frustrou. Eu esperava encontrar uma narrativa ainda mais dinâmica, mais rica. Fiquei com a impressão de que o autor porventura tenha peneirado demais os depoimentos que colheu de sua mãe; e essa percepção me veio por conta das lembranças de minhas conversas com ela; e, também, porque, talvez, eu esperasse encontrar no livro do João Melo certa pujança que eu vi nos longos depoimentos de idosos que aparecem na obra Memória e sociedade: lembranças de velhos, um estudo fundamental da Ecléa Bosi que eu li às vezes com os olhos marejados e desejando que nunca acabasse. Contudo, afora essas observações e o fato de que, diferentemente do que está dito na página 43, a padroeira do Recife é Nossa Senhora do Carmo e não Nossa Senhora da Conceição, o esforço de João Melo deve ser louvado como o registro daquilo que em termos, digamos, científico e/ou acadêmico é definido como “escrita de si”, na qual se enquadram as correspondências, os diários, as biografias, as autobiografias e os livros de memórias, porque dizer de si é também contribuir para a escrita do mundo.


Em Saber envelhecer o filósofo Marco Tulio Cícero, que nasceu em 106 a. C., apregoou que “é preciso resistir à velhice e combater seus inconvenientes à força de cuidados; é preciso lutar contra ela como se luta contra a doença; conservar a saúde, praticar exercícios apropriados, comer e beber para recompor as forças sem arruiná-las” (Cícero. Saber envelhecer e A amizade. Trad. Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2007, p. 32). E Maria Amélia Nery da Fonseca Melo, a adorável Amelinha, que está prestes a completar noventa anos de idade, persevera na labuta da vida fazendo hidroginástica, frequentando a academia, tocando piano, executando bordados em ponto smock, viajando e enchendo o dia a dia dos seus muitos filhos, netos e bisnetos com entusiasmo, temperança e uma crença absoluta de que viver requer de cada um de nós um esforço e um entusiasmo enormes para que possamos ultrapassar os obstáculos que vão aparecendo e enxergar na realidade que nos rodeia, o espaço mesmo de nossa satisfação e alegria, venham elas com o peso e o tamanho que for.

4 comentários:

  1. Caríssimo Clênio Sierra, muito agradeço, primeiramente, as fotos que fiz incluir na biografia de minha mãe, como também seus comentários e críticas.
    Como se pode depreender da leitura da introdução, observará que a ousadia de fazer publicar essa homenagem para minha mãe não foi precedida de qualquer planejamento e, ainda mais, contou com o desfavorecimento cruel da pressa em lhe presentear, nos seus 89 anos, com algum registro de sua longa e frutuosa vida.
    Registrei, ainda, a certeza das insatisfações que adviriam e a esperança de que, no futuro, algum familiar mais afeito à arte de escrever, que não um velho agrônomo, possa aproveitar os registros que juntei para elaborar coisa melhor, mais rica e detalhada sobre a maravilhosa e instigante existência de minha amada mãe.
    Um abraço,
    João Melo

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Bom dia. Ao que me consta tenho uma ancestral chamada Nympha Accioli de Mello Fonseca, casada em segundas núpcias com um médico de nome Ignácio Nery da Fonseca (falecido em 1865 acredito). Seria o pai do dono desse casarão acima? Grato desde já pela resposta

      Excluir
    2. Caro Guilherme, tudo bem? Não tenho essa informação. Por favor, entre em contato com o filho de Amelinha, João Neto pelo e-mail melonetoje@uol.com.br.

      Excluir