14 de junho de 2025

Sobre o discurso da desesperança

 Por Sierra




O aparecimento e a difusão das chamadas redes sociais ao mesmo tempo que proporcionaram esta coisa espantosa, admirável e boa que é dar voz e visibilidade a qualquer pessoa que disponha de um smartphone com acesso à internet, por outro lado, possibilitaram que, quer mostrando a sua real face ou não, muitos indivíduos se empenhasssem em criar fatos e difundir mentiras e o que se convencionou chamar de discursos de ódio, discursos esses, no mais das vezes, contra minorias - negros, homossexuais, pessoas com limitações físicas, etc. - e, também, contra imigrantes e refugiados, entre outros grupos sociais vulneráveis.

Ao lado dessa exposição aos quais milhões, bilhões de pessoas ao redor do mundo se entregam e/ou se disponibilizam e/ou se vendem, digamos assim, nas tais redes sociais, existe também o que uns e outros diizem ser uma perda gradativa e acentudada de uma conexão com a realidade para além do mundo virtual, algo que tínhamos antes de nós nos deixarmos escravizar e sermos dependentes das mil e uma possibilidades que um smartphone conectado à internet proporciona - com o advento da famigerada Inteligência Artificial (IA) o que já era, para muitos, deveras confuso, ficou pior, porque, ao nos depararmos com certas criações feitas por IA, nem sempre nós conseguimos dizer se aquilo que estamos vendo é algo natural ou um produto artificial, tamanha é a semelhanca que elas apresentam com o que vemos em nosso cotidiano.

E, pensando cá comigo, pensando com esta minha cabecinha de QI tão irrisório, eu percebo, olhando ao redor e para mim também, como a imersão diária e duradoura no universo virtual está nos tornando pessoas mais metidas consigo emsmas, nos transformando em quase autômatos e nos dando, por assim dizer, um comportamento robótico.

Seguindo as sempre e sempre renovadas trends das redes sociais, muitos de nós se pega repetindo comportamentos visando a likes e visualizações que, talvez, não repetíssemos, caso não nos encotrássemos a sós diante da câmera do smartphone. E isso me leva a pensar que tal comportamento tende a se agravar se nós, por iniciativa própria, não pusermos alguma limitação e/ou freio a essa imersão tão intensa e duradoura no mundo virtual.

Tentando compreender essa dinâmica de dependência em relação às coisas da esfera virtual eu tenho percebido, em certos círculos sociais da vida fora das telas, o surgimento e a proliferação de discursos de desesperança, sabe? É claro que essa postura desesperançada, eu acredito, advém de uma conjunção de fatores, como condições socioeconômicas, políticas, de crenças ou não no sobrenatural e como se está e/ou se observa o mundo. São discursos que carregam em seu bojo uma ideia de futuro catastrófico e ruim, como se não tivéssemos outras possibilidades de saída e nem força, vontade e coragem para corrigir e reorientar rumos, dando à trajetória que temos de percorrer um sentido diferente do que o que possa estar nos levando para um precipício.

Não sou fatalista. E se, em algum momento de miha vida, eu fui sequestrado pelo pessimismo, isso mudou consideravelmente em mim. Muito embora eu assista, com preocupação, à ascensão de políticos ultradireitistas, com suas ideias retrógradas e obscurantistas que misturam religião e intolerância e perseguição às minorias; muito embora eu reconheça que nós não temos sabido cuidar bem nem do nosso meio ambiente nem dos nossos semelhantes que se encontram em situações de diversos tipos de vulnerabilidade - falta de moradia, insegurança alimentar, perseguição religiosa, etc. -; e, muito embora eu sofra também carregando as minhas próprias misérias humanas, os meus rancores, as minhas reprovações, as minhas feridas, os meus fracassos, enfim, carregando tudo de ruim e todos os fardos que pessoas pobres têm que suportar para conseguirsobreviver em uma sociedade historicamente tão excludente como esta nossa, eu me recuso terminantemente a aderir a esse discurso apocalíptico de terra arrasadda, de não tem jeito que dê jeito e de desesperança total e completa. E por quê? Porque eu acredito que em algum momento, mesmo que cheguemos à beira do penhasco e do desfiladeiro, nós teremos discernimento para compreender que será preciso mudar de postura frente a tudo que for contrário à nossa estada neste mundo.

Não nos deixemos ser capturados por discursos de desesperança, porque, contra o fatalismo existem o planejamento, a determinação e algumas ideias de alegria que também vão dentro de nós.

7 de junho de 2025

No Museu do Artesanato Paraibano Janete Costa

 Por Sierra


Foto: Divulgação. As demais imagens são do Arquivo do Autor
Localizado no entorno da Praça da Independência, o Museu do Artesnato Paraibano Janete Costa é um primor de equipamento cultural que não só merece, ele precisa ser visitado e celebrado



Por que os museus?


Num conjunto de ensaios que tem um quê de muita provocação - eu diria que até de alguma iconoclastia -, o historiador e crítico de arte norte-americano Douglas Crimp fez uma série de considerações em particular sobre os museus, mas também a respeito de assuntos como fotografia e escultura. É preciso que eu diga logo aqui que uma das narrativas desse estudioso sobre o espaço museal não é nada apologética a tais instituições culturais. Muito pelo contrário. De modo que a epígrafe ácida de Theodor Adorno (1) aparece ali como uma espécie de alerta para com o que, doravante, o leitor irá se deparar no texto de Crimp.

Aqui e ali fazendo referências às obras Arqueologia do saber e Vigiar e punir, de Michel Foucault, Douglas Crimp nos disse que, além do hospício, da clínica e da prisão, "Existe uma outra instituição similar de confinamento à espera de uma análise arqueológica - o museu -, e uma outra disciplina - a história da arte", (2) que são, segundo ele, a pré-condição do discurso para aquilo que nós conhecemos como arte moderna.

As assertivas de Douglas Crimp me levaram a fazer estas indagações a mim mesmo no momento de eu começar a escrever este artigo: qual o papel dos museus no seio de uma sociedade, como a brasileira, na qual a ideia de aquisição de cultura é tomada, por muitos, como uma ambição e/ou exclusivismo das elites? Como pensar a existência de museus para um público que, de acordo com sucessivas pesquisas de avaliação do nível de leitura, nutre certo desprezo por algo mais simples e acessível, como os livros, que costumam ser e/ou podem ser portas de entradas para o despertar de interesses outros voltados para o mundo das artes e da cultura de modo amplo?

Em primeiro lugar, eu acredito, assim como Renato Almeida, que nós devemos ressaltar a importância do museu "pelo valor expositivo e igualmente como centro de estudo, classificação e documentação" (3); e que eu concordo com o entendimento de José Reginaldo Santos Gonçalves - na verdade,  eu concordo com certa reserva, porque aprendi com as pesquisas de Gilberto Freyre que um estudo pode fazer uso e recorrer a uma ampla variedade de testemunhos materiais e mesmo imateriais, como um depoimento oral - que afirmou que "Para um historiador moderno ou para um antropólogo, os textos falam mais e melhor do que os objetos" e que "Para um profissional de museu, a valorização recai nos objetos". (4) Em segundo lugar, eu avalio que, de maneira quase geral, faltam nos nossos meios culturais políticas de formação de público para que mais e mais pessoas coloquem os museus não somente como instituições de formação educacional/cultural, mas também como roteiros de passeios e viagens, porque, não raro, museus costumam ser espaços que apresentam uma gama variada de possibilidades de imersão, interação e aquisição de conhecimentos.


Visitando um museu


Considerando a minha formação acadêmica e os meus campos de interesses culturais em par com uma permanente vontade de saber e de conhecer, museus, galerias e congêneres estão sempre me chamando, digamos assim, para ir visitá-los. E assim foi que, na manhã do dia 15 de janeiro passado, estando hospedado na cidade do Conde, eu tomei um ônibus para ir curtir uma flânerie por João Pessoa; e, de um só bocado, eu passeei pela arborizadíssima Praça da Independência, que está localizada no bairro Tambiá, e visitei dois espaços museais situados no seu entorno: o Museu da Cidade de João Pessoa e o Museu do Artesanato Paraibano Janete Costa, um ao lado do outro, de modo que, num mesmo passeio você pode aproveitar duas importantes instituições culturais da capital paraibana.




Num artigo publicado neste blog, no último dia 25 de janeiro, eu disse de minha visita ao Museu da Cidade de João Pessoa. Hoje eu vou falar da ida ao Museu do Artesanato Paraibano Janete Costa.




Salve simpatia: o monitor Ewerton Queiroz que me recepcionou durante a visita: muito obrigado, camarada!




Como costuma ocorrer em várias unidades museais, também no Museu do Artesanato Paraibano Janete Costa (5) o prédio onde ele se encontra instalado  é por si só uma atração à parte. Trata-se de um elegante casarão, devidamente tombado, que diz muito da fisionomia urbana que marcava o cenário da área central da capital paraibana, a exemplo dos que ainda podemos ver pertinho dali, na Av.  Presidente Getúlio Vargas.







Acredito que, assim como eu, você que agora está lendo este artigo, deve ter ouvido, em alguma ocasião, alguém dizer assim diante de certas peças de artesanato: "Isso é uma verdadeira obra de arte!". Os que são iniciados nas tramas da estética e da história da arte sabemos que existe, nesses meios, uma discussão que procura diferenciar o que é arte do que é artesanato ou mesmo o que é artesanato do que é arte popular, por vezes entremeando tais discursos avaliativos recordando o que o filósofo alemão Walter Benjamin anotou no conhecidíssimo ensaio "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica", no qual ele tratou da "perda de aura" das obras de arte, quando elas são reproduzidas. (6)







Num breve texto que escreveu para o catálogo bilíngue Artesanato e arte popular na Paraíba, o escritor, artista plástico, dramaturgo e professor de Estética, o inesquecível e saudoso mestre de mestres Ariano Suassuna disse assim:

O título escolhido para este catálogo é bom e preciso, porque, logo de começo, estabelece a indispensável distinção entre Artesanato, de um lado, e Arte popular, de outro: no primeiro, a utilidade do objeto tem que predominar sobre sua beleza; na segunda, acontece o contrário. Deve-se recordar, porém, que, às vezes, o mesmo objeto pertence aos dois campos. É o caso das cestas-de-mão tecidas e trançadas pelos brasileiros descendentes de índios: a atividade que cria a cesta, objeto útil, é um artesanato; mas a pintura abstrata ou figurativa que normalmente a decora, é uma arte [...]. (7)

Pode-se concordar ou não com as apreciações feitas por Ariano Suassuna e por outros estudiosos e críticos de arte. No entanto, o fato é que tais discussões não impedem que, para muita gente, artesanato seja visto como obra de arte.





Naquela luminosa manhã de janeiro eu fui recepcionado no Museu do Artesanato Paraibano Janete Costa por um muito simpático Ewerton Queiroz, que há vários anos trabalha como monitor naquele equipamento cultural que, além do prédio principal, abriga, na área que fica por trás do casarão, uma biblioteca, sala de exposições temporárias, lojinha, sala de reuniões e outras dependências que o tornam ainda mais atrativo.













Quando eu me vi imerso na primeira sala do museu, já ali eu me dei conta de que estava adentrando num espaço de preservação de memória muito bem cuidado. O encantamento dos meus olhos foi realmente tamanho. Eu fiquei impressionado, claro, com o rico e diverso acervo - peças feitas com os mais variados materiais, como madeira, tecido, argila, fibras, flandres, metais, etc. -, mas também - e muito - com o projeto museológico; com a disposição das peças; com as escolhas feitas no sentido de colocar tais e tais peças neste e não naquele espaço com o intuito de valorizá-las e melhorar a visualização delas; com a organização das obras ocupando harmonicamente as dependências do imóvel; com a luminosidade dos ambientes; e, sobretudo, com o muito bom estado geral de tudo que eu vi ali, porque, poucas vezes em minhas andanças por este país afora, visitando equipamentos culturais expositivos, eu me deparei com um museu onde o cuidado, o zelo e a competência para tornar o espaço não apenas atrativo e confortável como também enriquecedor como experiência cultural estivessem tão bem reunidos e alinhados. Simplesmente um primor.























Como eu costumo dizer quando conheço realidades exemplares de equipamentos culturais como o Museu do Artesanato Paraibano Janete Costa, nem tudo está perdido neste país que tantos acusam de não investir de modo apropriado e necessário para preservar e cuidar dos seus patrimônios artísticos e culturais e, por conseguinte, de não ter memória. O Museu do Artesanato Paraibano Janete Costa - eu quase ia usar aqui uma sigla: MAPJACO - é, de fato, uma feliz e imperdível atração para moradores e visitantes da capital paraibana.


Notas 


1- Eis a citação de Theodor Adorno extraída do ensaio "Valéry Proust Museum": "A palavra alemã museal [próprio de museu] traz à mente lembranças desagradáveis. Ela descreve objetos com os quais o observador já não mantém um relacionamento vital e que se encontram no processo de morte; devem a sua preservação mais ao respeito histórico que às necessidades do presente. Há mais do que uma ligação fonética entre museu e mausoléu. Os museus são jazigos de família das obras de arte". Apud Douglas Crimp. "Sobre as ruínas do museu". In Sobre as ruínas do museu, p. 41.

2 - Douglas Crimp. "Sobre as ruínas do museu". In Op. cit., p. 45.

3 - Renato Almeida. Inteligência do folclore, p. 260.

4 - José Reginaldo Santos Gonçalves. "Os museus e a cidade". In Regina Abreu e Mário Chagas (orgs.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos, p. 182. E completou: "Isso não quer dizer que os profissionais de museus não trabalhem com estruturas conceituais - o que seria um absurdo -, mas sim que a relação que o diferencia dos demais profissionais é essa relação sensível com os objetos".

5 - O museu foi inaugurado em 2005, pensado e ambientado pela arquiteta pernambucana Janete Costa. Após o falecimento da curadora, em 2008, o seu nome foi acrescentado ao da instituição, numa justa e merecida homenagem àquela que muito contribuiu para que o equipamento cultural se tornasse uma realidade. Tais informações constam no bonito folder do museu que é distribuído aos visitantes. Outra informação importante é que houve um tempo em que a instituição era denominada de Casa do Artista Popular.

6 - Walter Benjamin. "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica". In Magia e técnica, arte e política. Disse-nos ele: "Em suma, o que é a aura? É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja" (p. 170). A unicidade da obra de arte, ele destacou, é a sua aura (p. 171).

7 - Ariano Suassuna. Texto sem título. In Silvia Almeida de Oliveira Cunha Lima (coord.). Artesanato e arte popular na Paraíba, p. 9.


Referências e bibliografia


ABREU, Regina e CHAGAS, Mário (orgs.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009.

ALMEIDA, Renato. Inteligência do folclore. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Americana; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1974.

BEJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da arte. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

CRIMP, Douglas. Sobre as ruínas do museu. Trad. Fernando Santos. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

GONÇALVES, José Reginaldo dos Santos. "Os museus e a cidade" In ABREU, Regina e CHAGAS, Mário (orgs.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. pp. 171-186.

LIMA, Silvia Almeida de Oliveira Cunha (coord.). Artesanato e arte popular na Paraíba. João Pessoa: Fundação Casa de Pedro Américo/Gráfica Lyceu, 2007.

Museu do Artesanato Paraibano Janete Costa (folder).

SUASSUNA, Ariano. Texto sem título. In LIMA, Silvia Almeida de Oliveira Cunha (coord.). Artesanato e arte popular na Paraíba. João Pessoa: Fundação Casa de Pedro Américo/Gráfica Lyceu, 2007. p. 9.

31 de maio de 2025

Personas urbanas (34)

 Por Sierra


Vaca profana põe teus cornos

pra fora e acima da manada [...]

Dona das divinas tetas

derrama o leite bom na  minha cara

e o leite mau na cara dos caretas.

                                                             Vaca profana. Caetano Veloso



Saia do meio da manada. Nesta semana um episódio ocorrido numa reunião de uma comissão do Senado expôs, mais uma vez, o nível e o grau elevadíssimo de misoginia que imperam não só ali, mas no Congresso Nacional quase como um todo, que tem em sua maioria parlamentares do sexo masculino. Na terça-feira, a mais do que admirável ministra do Meio Ambiente Marina Silva sofreu ataques desrespeitosos, cruéis e covardes que partiram de homens ditos cidadãos de bem; os indivíduos que a atacaram proferiram coisas repulsivas como "ponha-se no seu lugar" e "eu não respeito a senhora" - o autor desta última fala, inclusive, já havia dito, noutra ocasião, que "sentia vontade de enforcar" a ministra.

Por mais execrável, repulsivo e reprovável que tenha sido o episódio de total desrespeito à ministra Marina Silva, algo ali também saltou aos olhos, só que de modo completamente louvável e entusisasmador: sem demonstrar fraqueza e nem baixar a cabeça diante do rebanho feroz que a cercava, Marina Silva disse umas poucas e boas aos energúmenos senadores que a atacavam, recolheu os seus pertences e saiu dali, deixando aqueles indivíduos presos na lata do lixo da História do Congresso Nacional.

Ainda na noite daquela terça-feira eu divulguei um vídeo em minhas redes sociais reprovando os ataques dos touros em peles de homens e, também, louvando a coragem, a valentia e a pronta determinação da ministra Marina Silva para dizer aos trogloditas o que era preciso ser dito, porque, como ela mesma destacou, ela não é uma "mulher submissa".

A condição ou as condições do que se é, do que se sente e do que se pensa estão a todo momento guiando os caminhos que estamos a percorrer no nosso cotidiano. Diuturnamente indivíduos das chamadas minorias enfrentam os diversos males que uma cultura machista, patriarcal, misógina, homofóbica e intolerante dissemina por aí, inclusive, a partir dos salões refrigerados do Congresso Nacional; males esses que alimentam uma cultura de ódio e de intolerâcnia que está no âmago da prática diária de crimes que colocam cidadãos negros como o maior quantitativo do número de indivíduos mortos em ações policiais, elevam os casos de feminicído e deixam este país no topo do ranking entre as nações que mais matam pessoas LGBT.

Lidar diariamente com tamanha sanha intimidatória e ameaçadora disseminada pelas chamadas redes sociais e até, como vimos, por representantes do Congresso Nacional, exige que nós, que integramos essas ditas minorias contantemente tão perseguidas, humilhadas e assassinadas, coragem, valentia, detrminação, força, resiliência e habilidade para fazer dessa resistência uma constante pauta de luta e de reivindicação por respeito e proteção.

Quantas vezes você não ouviu por aí, por exemplo, alguém dizer coisas do tipo: "Eu não tenho nada contra os homossexuaus, mas eu não concordo que eles tenham esses direitos que eles passaram a ter"? Ou esta pérola do machismo e da cultura patriarcal: "Mulher só serve pra fazer filho e cuidar da casa"?

As demonstrações de intolerâncias e perseguições podem ser vistas e acompanhadas em todas as esferas sociais, inclusive, em igrejas. Há, no seio da nossa sociedade, uma "empresa" sem registro nos canais devidos, sem CNPJ nem nada, cuja razão de existir é a promoção do que eu chamo de "faxina social"; tal "empresa" reúne patrões e empregados que são, todos eles, misóginos, homofóbicos, racistas, intolerantes e preconceituosos; e, para conseguir espalhar e distribuir massivamente o que ela produz, essa "empresa" está sempre e sempre disposta a tudo, inclusive, a assassinar aqueles que ela persegue, rejeita e abomina.

Não nos deve faltar coragem e determinação para lutar contra tais espécimes. Não abaixemos a cabeça para eles. Não aceitemos que a fúria desmedida que os move nos intimide. Não nos calemos diante de insultos. Não recuemos diante desses indivíduos covardes, cruéis e desumanos. Lutemos com todas as armas que nós dispomos, porque, se nos rebaixarmos, eles fatalmente nos derrotarão.

24 de maio de 2025

Troque o seu bebê reborn por uma criança pobre

 Por Sierra


Imagem: Ateliê Encanto Reborn
Seja o que isso for, o caso desses bebês reborn inevitavelmente me trouxe à lembrança uma canção composta pelo Léo Jaime que foi lançada pelo Eduardo Dusek, em 1982, chamada "Rock das cachorras", cujos versos "Troque seu cachorro por uma criança pobre/Sem parente, sem carinho, sem rango, sem cobre/Deixe na história de sua vida uma notícia nobre" permanecem tão contundentes e atuais numa sociedade que, ao mesmo tempo que exacerbou sua relação com animais de estimação, ao ponto de tentar humanizá-los


Não tem dado para escapar do assunto. Quem acompanha o noticiário ou vive conectado ao universo das várias redes sociais certamente deve estar a par de um, vá lá, fenômeno social e comportamental que atende pelo nome de bebê reborn. Bebês reborn são bonecos muito, muito bem feitos, bonecos hiper-realistas que impressionam e confundem pessoas que chegam mesmo a pensar que eles são bebês humanos.

E por que tais bebês reborn têm confundido e chamado a atenção de tantas pessoas? Porque, ainda que sejam bonecos e, portanto, como tais, supõe-se que eles deveriam aparecer somente nos braços de crianças, como brinquedos, porque bonecos e bonecas fazem parte, há centenas de anos, da experiência do lúdico no universo infantil de diversas sociedades ao redor do mundo, não é o que tem sido visto por aí. Os hiper-realistas bebês reborn e o lidar com eles não têm sido vistos na esfera de um ludicidade infantil e, sim, como elementos integrantes da vida de mulheres adultas.

Considerados como membros da família, bebês reborn vêm ganhando status de seres humanos; e, se eles são tidos como bebês de carne e osso por suas mamães adotivas, é claro que eles merecem receber os mesmos cuidados, a mesma atenção e os mesmos carinho e amor que os pais comumente destinam aos seus filhos. Daí por que proliferaram nas redes sociais e até na TV imagens em que aparecem mulheres cuidando de seus filhinhos nas mais diversas situações: trocando fraldas; passeando com carrinhos; e desfrutando essa maternidade reborn em muito bem montados e lindamente decorados quartos nos quais, é evidente, não poderiam faltar um confortável bercinho. Tudo seguindo à risca o que se faz com os bebês humanos, inclusive, embalando eles nos braços e entoando canções de ninar para que eles adormeçam e as tão dedicadas e afetuosas mãezonas possam, enfim, descansar depois de um dia tão estafante.

Não sou especialista em comportamento humano. O que está sendo dito aqui não são nada mais do que observações primárias de um espectador do cotidiano que o envolve. Quando eu comecei a ver o comportamento de mulheres com os tais bebês reborn, tanto nas redes sociais como nos sites de notícias, eu, a princípio, tomei isso como mais uma peça de marketing para a divulgação de um produto - que, diga-se de passagem, não é barato - e como mais uma das chamadas trends, tendências que de vez em quando surgem nas redes sociais e às quais muitos de seus usuários aderem e copiam com o intuito de ficarem na crista da onda e, por conseguinte, ganharem um montão de likes, curtidas e comentários e, assim, fazer a engrenagem da fortuna girar e a felicidade monetária brilhar intensa e duradouramente.

Acontece que, não demorou muito, eu comecei a duvidar que a suposta tendência e onda bebê reborn fosse somente uma peça de marketing de um lucrativo comércio; e eu disse assim de mim para mim: "Se isso forem meras peças de propaganda, essas mulheres que atuam nelas são muito boas atrizes". Foi a partir desse momento e dada a relevância com que esse negócio começou a ser tratado por veículos noticiosos e de entretenimento, que outras questões me chegaram. A saber: será que essas mães de bebês reborn estão sofrendo de algum problema psicológico ou distúrbio psiquiátrico? Será que elas são mulheres que tiveram algum trauma sexual, que perderam seus filhos ou não querem ou não podem engravidar? Será que elas sofreram desilusões amorosas e/ou agressões físicas de seus maridos, namorados e companheiros numa sociedade tão misógina e feminicida como é a nossa e abdicaram da possibilidade de uma maternidade, digamos, natural? Será que essas mulheres estão somente brincando de bonecas e colecionando tais brinquedos caros - existem inúmeros colecionadores, homens e mulheres, de bonecas Barbie, por exemplo -? Ou será, simplesmente, que os bebês reborn não passam de mais um modismo como aqueles famigerados tamagotchis - uma espécie de animaizinhos virtuais que deveriam ser bem cuidados e alimentados, se não eles morriam - que fizeram um tremendo sucesso na segunda metade da década de 1990?

Seja o que isso for, o caso desses bebês reborn inevitavelmente me trouxe à lembrança uma canção composta pelo Léo Jaime que foi lançada pelo Eduardo Dusek, em 1982, chamada "Rock das cachorras", cujos versos "Troque seu cachorro por uma criança pobre/Sem parente, sem carinho, sem rango, sem cobre/Deixe na história de sua vida uma notícia nobre" permanecem tão contundentes e atuais numa sociedade que, ao mesmo tempo que exacerbou sua relação com animais de estimação, ao ponto de tentar humanizá-los, colocando roupas neles e fazendo até festinhas de aniversário  para eles, por outro lado, condena e persegue pessoas, como o Padre Júlio Lancellotti, que saem às ruas para cuidar de "bichos humanos", como o do poema "O bicho", de Manuel Bandeira,  que ele viu "Na imundície do pátio catando comida entre os detritos" e que parte da sociedade ignora e/ou faz de conta que não existem.

Talvez os bebês reborn e as suas tão dedicadas, zelosas e amorosas mães sejam muito mais do que peças integrantes de um negócio muito lucrativo. Daquilo que eu sei - repetindo os versos da bela canção do Ivan Lins e do Vítor Martins - nem tudo me deu certeza, mas me levou a acreditar que, para enfrentar os desafios cotidianos e suportar os fardos da vida, há quem recorra a variadas drogas e múltiplos remédios, mesmo sabendo, de antemão, de seus potenciais destrutivos e/ou de seus efeitos placebo.

17 de maio de 2025

Você realmente ama a sua cidade?

 Por Sierra


Fotos: Arquivo do Autor
A placa instalada no sopé de um morro do bairro do Fosfato, às margens da BR 101, a rodovia que mutilou a área central de Abreu e Lima de ponta a ponta


Quem acompanha o que eu venho escrevendo aqui ao longo de todos esses anos certamente se deparou com um texto em que eu disse que essas placas que se espalharam não só por este país mas também pelo mundo afora e que dizem "eu amo tal lugar" - no lugar da palavra "amo" normalmente colocam um coração - são, para mim, um exemplo do mau gosto do mau gosto. E por quê? Porque além de elas, no mais das vezes, ocuparem espaços dos quais ofuscam a paisagem e/ou atrapalham a vista, penso eu que boa parte das pessoas que posam para fotografias ao lado e diante delas são as mesmas pessoas que jogam lixo nas ruas e nos bueiros, que não respeitam as leis de trânsito, etc., ou seja, são pessoas que, na realidade, não amam a cidade coisíssima nenhuma - nem a cidade e muito menos os seus habitantes. E ainda tem o outro lado da moeda: um prefeito que instala uma ou mais placas desse tipo em alguns pontos da cidade e, ao mesmo tempo, não cuida e nem consegue dar conta das demandas de infraestrutura urbana, definitivamente esse prefeito não ama a cidade que ele administra e nem os seus munícipes; ele faz, na verdade, uma espécie de propaganda enganosa.

Quando, no ano passado, eu vi que a Prefeitura Municipal de Abreu e Lima, minha cidade natal e meu lugar de trabalho, instalara uma dessas placas bem na entrada da Praça Antônio Vitalino, um cenário urbano que me é muito caro porque faz parte de minha memória afetiva, eu senti um misto de provocação e ironia. E por quê? Ora, a Praça Antônio Vitalino foi, durante décadas, um espaço ocupado semanalmente por uma das maiores feiras livres da Região Metropolitana do Recife e, muito provavelmente, de todo o estado de Pernambuco. Era uma feira livre realmente muito grande que ocupava toda a Praça Antônio Vitalino e se derramava por algumas das ruas que para ela afluem. Era, sem sombra de dúvidas, o maior e mais significativo acontecimento socioeconômico da cidade que era vivenciado não apenas por seus moradores como também por residentes em cidades vizinhas.




Eu, que frequentei essa pujante feira livre de minha infância até a vida adulta como consumidor e , também, como feirante, porque, durante algum tempo de minha adolescência, eu trabalhei num banco de venda de miúdos de porco com Seu Déda, o segundo marido da minha avó Maria da Conceição, comecei a lamentar a desfiguração da feira ainda na década de 1990, quando a Municipalidade fechou os olhos para o fato de que, em vez de ser uma tradicional feira livre nordestina, que ocorria uma vez por semana, sendo montada e desmontada, o que significava deixar a praça livre para outros eventos, vários dos feirantes começaram a se manter ali de modo fixo, passaram a negociar os seus produtos ao longo de toda a semana. E isso eu considero que foi o princípio do fim da famosa e muito importante feira livre de outrora. E então, devido às pressões do tráfego de veículos - e da consequente necessidade de espaços que servissem de estacionamentos para eles; necessidade essa que, historicamente, promoveu a mutilação de muitas cidades, inclusive, pondo abaixo prédios e monumentos históricos para que fossem abertas e/ou alargadas ruas e avenidas para "uma boa fluência do trânsito" -, removeram completamente a feira livre dali para transformar a praça em um enorme estacionamento. Ou seja, em vez de promover uma revitalização da feira livre e do mercado público que existiam ali, escolheram acabar com tudo o que um dia foi motivo de muito orgulho para aquela cidade. Apagaram uma memória urbana. Sepultaram uma memória social. E ignoraram que aquela feira livre era algo por demais importante para a história do município - ironicamente, na tal placa de "Eu amo Abreu e Lima", fizeram uma alusão às ruínas da Igreja de São Bento.

Olhando para aquela placa fixada bem na entrada da Praça Antônio Vitalino eu disse assim de mim para mim: "Puxa, que coisa: a Prefeitura botou uma placa dessa diante de um espaço que as pessoas, em geral, nem veem como uma praça e sim como um grande estacionamento". E me dói pensar que foi uma administração municipal que pôs fim ao grande atrativo que semanalmente levava milhares de pessoas para aquele espaço urbano. De modo que, muito mais do que como celebração, aquela placa posta naquele lugar figurou, a meu ver, como uma ironia e uma provocação.

Dias depois, eis que, a cerca de 1 km de distância da entrada da Praça Antônio Vitalino e, também, às margens da BR 101, a Prefeitura Municipal instalou outra placa como aquela, só que, agora, no sopé de um morro do bairro do Fosfato, onde a Municipalidade realizara serviço de aplicação de geomanta na encosta para prevenir deslizamento de terra em épocas de chuva. Ao ver aquela placa ali, pela primeira vez eu avaliei que uma placa dessa natureza que, normalmente, é instalada em pontos considerados atrativos, turísticos e fotografáveis, ops, instagramáveis, fazia algum sentido, porque poderia levar alguns a acreditar que o poder executivo municipal "amava" realmente a cidade, visto que estava cuidando do bem-estar de parte dos seus moradores, uma das razões de sua existência como gestor público.




Não vou aqui discutir se eu acredito que, em tempos de exposição pessoal frenética nas chamadas redes sociais, que são tão dadas a exibir o que é bonito - inclusive, com o uso de filtros para mascarar a realidade -, alguém irá se dispor a fazer selfies diante de uma placa cujo pano de fundo é o sopé de um morro coberto com geomanta. O que para mim importa dizer é que a Municipalidade acertou duplamente: acertou quando fez a obra de proteção ao morro; e acertou quando mandou instalar a tal placa ali.

Particularmente eu amo Abreu e Lima, minha cidade natal, por uma série de razões que eu buscarei tratar noutro momento.

10 de maio de 2025

Não desprezem os prefácios

 Por Sierra


Imagem: kuzyuberdin/Freepik
Há prefaciadores que não se limitam a simplesmente, digamos, fazer um resumo da obra e/ou apresentá-la em algumas poucas linhas; e, normalmente, são eles que escrevem prefácios tão instigantes e sedutores que fazem com que os leitores fiquem excitados para começarem a ler o livro em si


Eu me encontrava fazendo uma série de leituras com vistas a subsidiar a elaboração de um prefácio para um livro de um amigo meu e, durante esse exercício intelectual de pesquisa, eu cheguei a comentar com uma colega de academia de musculação sobre a tarefa que eu estava empreendendo. Essa pessoa, que tem formação acadêmica e é uma professora concursada da rede estadual de ensino, ao ouvir o que eu disse, falou assim com a maior naturalidade e me deixando pasmo e sem acreditar no que eu acabara de escutar: "Eu nunca leio os prefácios".

A origem da palavra prefácio é latina: prae (antes) e efatios (ditos), significando, aqui, o que é dito antes da narrativa de um livro. É muito comum que autores recorram a outros escritores - principalmente a nomes renomados e com um duplo objetivo: tentar conseguir um testemunho de peso para a sua obra; e, claro, apostar que o tal prefaciador desperte a curiosidade e atraia leitores para o livro em si - para escrever o prefácio, mas o próprio autor pode escrevê-lo: Gilberto Freyre, por exemplo, foi um prolífico prefaciador de obras alheias e um celebrado prefaciador dos seus próprios estudos - vejam-se os dois volumes do Prefácios desgarrados, que foram organizados  por Edson Nery da Fonseca (Gilberto Freyre. Prefácios desgarrados. Rio de Janeiro: Livraria Editora Cátedra; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1978).

O professor Antonio Candido escreveu, no prefácio de um livro de Sergio Miceli (Intelectuais e classe dirigente no Brasil - 1920-1945. São Paulo: Difusão Editorial, 1979, p. IX), que o que "caracteriza a maioria dos prefácios é a falta de necessidade", porque ou "o prefaciador resume o livro, ou produz um ensaio marginal a partir dele", sabendo que, em ambos os casos, "pouco pode fazer pelo texto, que vale ou não por si mesmo".

Quem tem familiaridade com o universo dos livros e da leitura sabe, porque certamente já se deparou com diferentes casos, que, realmente, há prefácios - mesmo alguns escritos por um dos tais "autores" renomados" - que são completamente dispensáveis e irrelevantes, porque nada acrescentam ao que está por vir nas próximas páginas do autor da obra;  prefácios esses que chegam mesmo a dar a impressão de que foram escritos quase que por obrigação, só para agradar a pessoa que o pediu, quer tenha sido o próprio autor ou alguém da editora.

No entanto - e eis por que eu considerei totalmente absurda a fala da minha colega de malhação -, inúmeras vezes eu me deparei com prefácios que me fizeram quase babar de admiração pelo que eu acabara de ler, porque, além de apresentar o que eu iria ler logo mais, eles discorreram com enorme fundamento e se puseram como textos bastante esclarecedores sobre alguns pontos e abordagens da obra em questão que, talvez, sem o auxílio de tais prefácios, eu não chegasse a perceber e nem a compreender com maior amplitude e nem levantasse, sozinho, alguns questionamentos sobre a obra em si ao findar a sua leitura.

Há prefaciadores que não se limitam a simplesmente, digamos, fazer um resumo da obra e/ou apresentá-la em algumas poucas linhas - eu já li prefácio que ocupou uma única página, algo inteiramente espantoso para mim; e que me levou a pensar que ou o prefaciador estava com preguiça de escrever ou a obra não lhe despertou um grande interesse -; e, normalmente, são eles que escrevem prefácios tão instigantes e sedutores que fazem com que os leitores fiquem excitados para começarem a ler o livro em si.

Prefaciadores desse quilate costumam não só discorrer sobre o conteúdo da obra que o leitor tem em mãos e que está prestes a desbravar; eles tratam de, além disso, fazer apreciações críticas bastante pertinentes, anotando, inclusive, pontos abordados pelo autor com os quais eles não concordaram, dizendo o porquê das discordâncias; sugerem e indicam outros estudos que examinaram o mesmo assunto só que por outros vieses; etc. Enfim, grandes prefaciadores costumam ser luzes que se lançam sobre os textos que eles apreciam e discorrem.

Nunca, em nenhuma ocasião da minha vida de leitor até aqui, eu "pulei" as páginas dos prefácios dos livros que eu li. Concordo com o que disse o Elias Canetti a respeito de Thomas Hobbes,  que "Não se pode esperar de alguém que explique tudo" (Elias Canetti. "Leio como se fosse pela primeira vez". In Sobre os escritores. Trad. Kristina Michahelles. . Rio de Janeiro: José Olympio Editora. p. 103), mesmo porque - e agora a lição é de Schopenhauer - "Quando lemos, outra pessoa pensa por nós: só repetimos seu processo mental" (Arthur Schopenhauer. Sobre livros e leitura. Trad. Philippe Humblé e Walter Carlos Costa. Porto Alegre: Editora Paraula, 1993, p. 17); e é preciso que tenhamos também capacidade de pensar e de fazer as nossas próprias apreciações sobre o que lemos.

Então é isso: por favor, não desprezem os prefácios.

3 de maio de 2025

Por que roubam tanto o INSS?

 Por Sierra

Ilustração: Pngtree
O caso mais recente de roubalheira no INSS ilustra de maneira escancaradamente desavergonhada como a instituição é mal gerida e desprovida de mecanismos que, pelo menos, dificultem a ação dos meliantes

Economistas em âmbito mundial vêm há anos alertando para uma bomba que, segundo as avaliações e projeções deles, está prestes a explodir. Qual seja? Os sistemas de previdência social governamentais.

E, diante de cenário pintado com tintas tão assustadoras, o que é que os governos têm feito para que tal "profecia" não se cumpra? Muito pouco, como paliativas reformas da previdência que conservam privilégios de grupos profissionais que mensalmente embolsam salários e penduricalhos estratosféricos enquanto a massa trabalhadora, que sobrevive com salários mínimos que mal cobrem as suas despesas cotidianas, é de fato e na realidade penalizada com mais anos de contribuição previdenciária e, por conseguinte, com um tempo ainda maior para conseguir, quem sabe, se aposentar.

A bem da verdade - e reforçando as projeções catastróficas dos economistas e outros estudiosos - o que os governos mais têm feito é inchar a máquina pública e conceder remunerações aos servidores públicos, em geral, e aos do Judiciário, em particular, que chegam a ser acintosos para os pobres e massacrados sobreviventes assalariados. A farra e as regalias dos altos salários da chamada elite dos servidores públicos são pagas como se elas não fossem refletir no sistema previdenciário. Ou seja, no Brasil das desigualdades sociais aberrantes, os governos em âmbito municipal, estadual e federal continuam agindo como se não houvesse amanhã, como se o Estado fosse uma fonte inesgotável de dinheiro e como se coubesse ao grosso da população sustentar a concessão de tantos privilégios.

Nesta semana os incautos tomaram conhecimento de que mais um câncer financeiro vinha corroendo as entranhas do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) desde pelo menos 2019. Como eu disse noutra ocasião, essa roubalheira foi divulgada numa série de reportagens que o site de notícias Metróples começou a publicar em dezembro de 2023.

E no que consistia o tal câncer financeiro que atacava o INSS e enchia as burras de uns espertalhões? Com o aval de gente graúda do instituto, mais de dez associações ou algo que os valha começaram a receber, imaginem, mensalidades que eram descontadas, subtraídas, retiradas, roubadas do dinheirinho de aposentados e pensionistas à revelia deles, ou seja, as pessoas que tiveram parte de suas pensões e aposentadorias roubada nunca nem sequer ouviram falar da existência dessas associações que, segundo as investigações ainda em andamento da Polícia Federal (PF), movimentaram a cifra de mais de 6 bilhões de reais, isso mesmo: mais de 6 bilhões de reais.

Como eu também disse noutro momento, a minha mãe foi uma das vítimas desse esquema criminoso, acontecimento esse que eu denunciei em minhas redes sociais tão logo ela me mostrou o extrato de recebimento do seu benefício. Denunciei de pronto porque eu já tinha tomado conhecimento da roubalheira lendo as reportagens do Metrópoles.

De tempos em tempos uma grande ação criminosa é descoberta nas entranhas do INSS. E por que isso acontece sazonalmente, gente, e não se tomam providências e nem se criam mecanismos e protocolos que pelo menos tornem mais difícil que casos como esse de agora ocorram mais uma vez contando com a cooperação ativa e providencial de funcionários da instituição? Por que foi que, segundo o que foi divulgado pelos sites de notícias e pelas redes de televisão, ao tomarem conhecimento da roubalheira e da sangria de dinheiro que estavam ocorrendo ali, os seus dirigentes não trataram imediatamente de agir para combater o câncer financeiro e acionar a PF para investigar o caso? A quem interessava deixar que o negócio corresse solto como se fosse uma coisinhazinha de nada? Por que roubam tanto o INSS?

Ainda que, segundo as investigações em curso, a roubalheira de agora, que estava a pleno vapor e gerando na alta no INSS tenha sido iniciada em 2019,  a mim me parece que o governo do presidente Lula não escapará ileso de tal ação criminosa, porque é, no mínimo, intrigante o fato de que, sabendo que raposas estavam comendo as galinhas, o responsável por tomar contar delas não tenha atinado para pelo menos fechar a porta do galinheiro.

26 de abril de 2025

Pedro Herz: livros, livrarias e compromisso social

 Por Sierra



Foto: Divulgação
Pedro Herz e os pais Eva e Kurt em fotografia dos anos de 1990: paixão pelos livros e uma incomensurável crença na promoção de uma transformação social pela difusão do saber e do conhecimento. A Livraria Cultura do Paço Alfândega, no Recife, faz parte de um dos capítulos mais felizes e intensos da minha vida


Nasci e cresci numa cidade chamada Abreu e Lima, localizada na Região Metropolitana do Recife, que não dispunha de livrarias; e, a ideia do que era uma biblioteca, eu só vim a ter quando, aos 11 anos de idade, eu ingressei na antiga 5ª série do 1º Grau, em 1985, na Escola Polivalente do meu terrão natal. Pobre, suburbano, filho de uma mãe solteira que batalhava como podia pra criar dois filhos, à minha casa os livros só chegaram quando minha mãe comprou, a um prestanista que apareceu em nossa porta, um conjunto de três livros de estórias infantis e outros dois com perguntas e respostas sobre os assuntos os mais variados.

Mas os tais livros não fizeram de mim um leitor. Nem esses que minha mãe comprou, nem os que eu via na casa dos meus padrinhos Maria Lúcia e Aleixo Miranda e nem os da biblioteca da escola.

Muito embora Abreu e Lima não ficasse muito distante da capital, ir ao Recife não era algo comum para a gente que se encontrava no mesmo nível social que a minha família e nas condições nas quais nós vivíamos. 

Ir à capital, quando se ia, era um verdadeiro acontecimento; e tanto que ir ao Recife significava ir à "cidade", como se só o Recife fosse uma verdadeira cidade. Ninguém, pelo menos do meu círculo de convivência, dizia "eu vou ao Recife": a pessoa dizia "eu vou à cidade"; e, ouvindo isso, todos nós sabíamos que a pessoa estava indo à capital.

Não dispondo de uma verdadeira vida cultural quando criança e adolescente, eu só conheci e comecei a frequentar livrarias quando fiquei adulto e consegui um emprego, primeiro numa livraria de livros didáticos, depois, num cargo público. Acontece que as idas a algumas livrarias do Recife só começaram efetivamente quando eu ingressei no curso de bacharelado em História, na Universidade Federal de Pernambuco.

Por esse tempo, final da década de 1990, eu fui algumas vezes à icônica Livro 7, à Síntese, à Saraiva, à Cortez e a algumas unidades da Livraria Imperatriz. Eram ainda tempos bicudos para mim, porque, embora empregado, o meu salário era uma mixaria, de modo que eu, a bem da verdade, visitava mais livrarias para ver e folhear livros do que comprá-los.

A virada do século XX para o século XXI trouxe consigo uma novidade no mercado livreiro: o aparecimento das chamadas megastores: livrarias imensas que, além de livros, comercializavam cd's, dvd's e outras coisas mais; e com outros atrativos, como cafeterias; e várias delas foram abertas em shopping centers. O advento dessas megastores decretou o enfraquecimento e depois o fechamento de algumas livrarias do centro do Recife: a Síntese, que ficava na Rua do Riachuelo; a Livro 7, na Rua Sete de Setembro; e a Saraiva, que também ficava nessa mesma rua e que só fechou porque a própria rede aderiu ao formato megastore. Já a Livraria Imperatriz figurou como heroína da resistência, aguentando o tranco e o poder da forte concorrência mantendo as suas unidades nas ruas Sete de Setembro e da Imperatriz e abrindo unidades também em shoppings.

Quando o burburinho dando conta de que seria instalada uma filial da Livraria Cultura no Bairro do Recife, no Cais da Alfândega, uns e outros começaram a dizer que o empreendimento lançaria uma pá de cal nas livrarias menores. E assim foi: em 2005 a Livraria Cultura foi aberta dando início a um dos capítulos mais memóraveis do universo livreiro no Recife, que fora durante muitos anos dominado pela memorável Livro 7.


O livro do Pedro Herz


Ainda que a minha vida financeira tenha melhorado ao longo dos anos, nem sempre eu comprava em livrarias as obras que me interessavam; eu ia, como até hoje eu vou, a alguns dos vários sebos existentes no Recife; e também recorria, como ainda recorro, ao site Estante Virtual, surgido em 2005 - ele foi, doze anos depois, comprado pela Livraria Cultura, e, posteriormente, pelo Magazine Luiza -, e às lojas que vendem de quase tudo, como a Amazon, que provocou um solavanco enorme nas livrarias com sua política agressiva de preços, e a Americanas. Contudo, eu passei a frequentar também a Livraira Cultura, encantado que eu fiquei com aquele espaço; e fiz muitas compras lá, apegado ao seu programa de fidelidade.

Antes mesmo que eu começasse a ler O livreiro: como uma família começou alugando 10 livros na sala de casa construiu uma das principais livrarias do Brasil (São Paulo: Planeta do Brasil, 2017), escrito pelo Pedro Herz, eu já me vi tomado por uma forte emoção. Primeiro,porque me veio à lembrança do falecimento de seu autor, no ano passado; e, segundo, porque a Livraria Cultura, do Paço Alfândega, no Recife - a do Shopping RioMar eu pouco frequentei -, continua sendo a livraria mais importante da minha vida, porque foi nela que eu vivenciei alguns dos momentos mais felizes de minha existência até aqui. Foi lá que eu lancei os meus primeiros livros; foi lá que ocorreu o lançamento da obra O grande sedutor: escritos sobre Gilberto Freyre de 1945 até hoje, que eu organizei do meu saudoso amigo Edson Nery da Fonseca; foi lá que eu estive com um dos biógrafos de Clarice Lispector, o norte-americano Benjamin Moser; foi lá que eu aplaudi as cantoras Klébi Nori e Érica Maria nos pockets shows que aconteciam no auditório; foi lá que eu acompanhei o meu querido Cristiano Galvão no lançamento do seu A transformação do indivíduo em quase Estado; foi lá que eu estive com Anco Márcio Tenório Vieira, Leonardo Dantas Silva e Marco-Aurélio de Alcântara, grandes expressões do cenário intelectual pernmabucano; foi lá que eu estive várias vezes em companhia de Ernani Neves, num tempo em que caminhávamos muito juntos pelas estradas da vida; e foi  lá que, enfim, sozinho, eu percorria aquele espaço onde eu pegava a Revista da Cultura e enchia os meus olhos com tantos livros, cd's e dvd's que uns eu comprava de imediato e outros eu escrevia em minha lista de desejos, de forma que frequentar a Livraria Cultura era sempre um grande e prazeroso acontecimento para mim, porque permanecer lá dentro era como estar num outro mundo, muito diferente do mundo que ficava do lado de fora.

Não pense o leitor que esse O livreiro, do Pedro Herz, é apenas e somente um livro que narra a história da gênese da Livraria Cultura. É muito mais do que isso .O que você lerá nele não é só a respeito de judeus alemães que, perseguidos pelos nazistas, vieram tentar ganhar a vida no Brasil; você não entrará em contato apenas com os percalços e dificuldades enfrentados pela família Herz para fazer um empreendimento livreiro acontecer. Em O livreiro nós, leitores, entramos essencialmente em contato com pessoas que tanto quanto comprometidas com o comércio de livros estavam substancialmente irmanadas e empenhadas para que o saber e o conhecimento circulassem e chegassem ao maior número de pessoas que fosse possível; eram um compromisso e um empenho visando uma transformaçãoo social por meio da leitura e dos livros. Não era pouca coisa. Não era mesmo.

Lendo O livreiro eu enxerguei nos posicionamentos e questionamentos levantados por seu autor a dimensão profunda de um cidadão que tocava em frente o negócio de sua família sem deixar de lançar os seus olhos para os dramas cotidianos vivenciados por milhões de indivíduos numa sociedade economicamente tão desigual. Pedro Herz fala sobre o mercado livreiro e o universo dos livros, mas também nos diz sobre educação de filhos, economia, ações desabonadoras praticadas por uns e outros, etc. Tanto quanto uma narrativa memorialística, O livreiro é um ato de coragem de quem não se prendia ao passado porque se sentia também comprometido com o que estava por vir, com o futuro. É, em suma, um livro ao mesmo tempo emocionante, vibrante e entusiasmador.

Recentemente eu vi, num documentário sobre o historiador Sérgio Buarque de Holanda, o professor Antonio Candido dizer que os amantes dos livros às vezes cometem loucuras por causa deles. Eu confirmo tal assertiva porque, na minha vida, eu já cometi algumas loucuras para adquirir certos livros da minha biblioteca; e, algumas delas, eu cometi justametne na inesquecível Livraria Cultura do Paço Alfândega.