5 de setembro de 2010

Crônicas da cidade

Por Clênio Sierra de Alcântara

Imagem: Internet


Em minhas andanças de diletante pesquisador da história do desenvolvimento urbano do Recife - e de inquieto bibliófilo -, vi chegar às minhas mãos um exemplar caindo aos pedaços de 208 Crônicas da Cidade, livro do Valdemar de Oliveira lançado nesta província mui amada em 1971.(Que glória: a edição, apesar do estado deplorável, traz um autógrafo do mestre). A obra reúne textos pulbicados de 1959 a 1970 pela coluna Crônica da Cidade, que existia no Jornal do Commercio; coluna esta que Valdemar passou a preencher com seu talento mordaz em substituição à outra figura notável - o grande geógrafo, escritor e jornalista Mário Melo, que falecera.



Fotos: Ernani Neves
 
A quem interessar possa, a leitura de tais textos, irá verificar que nada ou quase nada escapou ao olhar aquilino do cronista. Valdemar sabia reclamar. E como Valdemar reclamava! Com ele não havia meio-termo não. Certo era certo. Errado era errado. E ponto. Pelo menos sob o seu ponto de vista. Em suas crônicas o Recife aparece como que deitado em leito de instituto de medicina legal, exposto, dissecado, com suas vísceras à mostra: a cidade com os seus problemas, as suas aflições, os seus anseios e as suas "coisas belas e dignas". O Valdemar que expôs seu encanto de ter visto uma procissão de Santo Antônio percorrer um dos lados da Av. Guararapes, em junho de 1962, é o mesmo que, um ano antes, descrevera o drama da fome que vicejava entre a mucambaria imensa da capital pernambucana, não esquecendo de lembrar, naqueles dias suspeitosos, que a fome era "excelente cabo eleitoral"; e que ela "só dá comunismo". O Valdemar que comoventemente nos fala de um certo Dia de Finados, é o mesmo que não esconde sua aversão aos homossexuais numa crônica que dificilmente veríamos publicada nos dias atuais, por aquele periódico, dado o seu forte teor iracundo e homofóbico.

Pelo o que até aqui expus, ficou claro que a tal coluna ocupada pelo Valdemar de Oliveira não se limitava a examinar os aspectos do urbanismo propriamente dito; não se restringia a apontar, aqui e ali, o desleixo para com a coleta de lixo e a limpeza dos canais; e o desprezo da Municipalidade no que diz respeito aos monumentos históricos e à falta de calçamento nas ruas. Seu olhar era, de fato, bastante apurado. Certa feita ele registrou que o comentarista diário "é, acima de tudo, um colaborador da administração pública", que "Focaliza problemas, desperta atenções, aponta desacertos". Noutra ocasião disse que  "segredos íntimos da memória não são, é claro, assunto para uma crônica da cidade", mas, é evidente que, em certas ocasiões... É por isso que, de tudo um pouco, ocupou a pauta da coluna: a falta de emprego; a ação da bandidagem; a proliferação das muriçocas; a desonestidade do povo - "O brasileiro é um homem que rouba", escreveu ele -; os desatinos do burgomestre Augusto Lucena; a grande enchente do Capibaribe de 1966; o uso do monobiquíni; os mictórios a céu aberto nas esquinas do Recife...




Muito embora tenha se declarado "alérgico à política, no bom ou no mau sentido", Valdemar de Oliveira, me parece, foi um dos entusiastas de primeira hora da ordem governamental que tomou de assalto o país em 31 de março de 1964. Em mais de uma crônica ele defendeu, como patrono da moral e dos bons costumes que procurava demonstrar que era, a ação dirigente dos militares que veio contra os comunistas, os encapuzados, os chefões e chefetes e, principalmente, os ladrões - os grandes carrapatos sugadores das riquezas do país. "Viva a Revolução!", ele proclamou. E tome críticas ao "progressismo" da Igreja Católica. E tome puxões nas orelhas de Dom Helder Câmara: "Não seria eu que iria arrancar da pele grossa de dom Helder Câmara o espevitado que lhe arranjou Gilberto Freyre. O que me punge é sabê-lo cravado num arcebispo da minha Igreja - a Igreja em que cresci e me fiz homem e quase não reconheço mais", ressaltou ele em 10 de novembro de 1968. Meses depois, declarou-se "fiel ao passado, orgulhoso do presente e confiante no futuro" do seu país; e, num arroubo de insuspeitável ufanismo, bradou o seguinte, na véspera do Dia da Independência de 1970: "Conta comigo, Brasil; contra os patifes que vivem à tua custa, os ladrões que te sugam as energias, os corrutos que te enodoam e os subversivos que não te amam (mas não te deixam), os céticos que ainda não acreditam em ti, os falsos apóstolos que te difamam, sim, contra tudo o que tolhe teus passos, perturba tua caminhada, impede teu progresso".

No prefácio que escreveu para o livro do amigo, Nilo Pereira destacou que Valdemar de Olveira, como cronista-escritor, era, para uma cidade ameaçada como o Recife, "uma virgília d'armas numa praça em perigo". Acertou em cheio. Só faltou acrescentar que os verdadeiros inimigos da cidade estavam mais à direita naqueles chamados Anos de Chumbo. Ou seja, ao lado do Valdemar.


2 comentários:

  1. Caro amigo Clênio, lhe confesso que não conheço a fundo a história de Recife, esse blog é um primor para a construção da imagética local. São pequenas mídias e textos como o seu que, mesmo não tendo apoio da massa midiática, consegue mostrar, sem inclinações mercadológicas o poder que nossas cidades possuem. De fato, hoje, qualquer tipo de opinião, considerada homofóbica seria recharçada imediatamente, apesar dessas ressalvas, parece-me que Valdemar foi um homem bastante interessado nos assuntos da cidade e antenado aos problemas locais. Não sei se ainda possui as crônicas desse senhor, caso possua poderia publicá-las fotoescaneadas nesse espaço, ou mesmo digitá-las. Enfim, não quero fazê-lo perder mais tempo. Meus parabéns pelo seu blogue e pelo seu achado, caso tenha interesse, lhe convido a ler alguns textos que escrevo no blog: cronicas-da-cidade.blogspot.com abraço

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  2. Caro Fenelon, é sempre muito bom quando interagem com o blog, porque eu sei - e apesar disso insisto - que muita gente quer o texto-legenda, que é aquele de poucas linhas tipo twitter e eu continuo a manter minhas pesquisas porque acredito demais no que faço. Obrigado pelo incentivo

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