31 de outubro de 2011

Gilberto Freyre: a consciência do Brasil

Por Clênio Sierra de Alcântara




Imagem Internet


Localizada no aprazível bairro recifense de Apipucos, a Vivenda de Santo Antônio guarda em cada canto de seus cômodos e na imensidão verde do seu entorno, a presença magnífica do seu antigo morador: Gilberto Freyre. Nunca vou esquecer da forte emoção que foi tomando inteiramente o meu corpo, na tarde em que eu deixei a minha Ilha de Itamaracá, para ir percorrer as dependências da casa do meu mestre maior, a casa daquele que eu tenho como meu "pai intelectual".
Imerso naquele mundo eu fui me dando conta do quanto era imperioso em mim o sentimento de admiração por Gilberto; e de como sua obra estava, de alguma maneira, guiando os meus passos de aprendiz de intelectual. Vendo todos aqueles livros e quadros, todos aqueles objetos de decoração e móveis, por um instante eu imaginei o andar desse homem por entre suas coisas; e me senti deveras privilegiado por me encontrar inserido naquela atmosfera que emanava tanto sopro de uma grandiosa criação. E tal qual a árvore que voa no pássaro que a deixa, como dizem os versos de Ferreira Gullar, aquela casa ficou em mim quando eu tive de deixá-la.
A evocação da morada de Gilberto Freyre se deu aqui também como pretexto para falar do que está indo nas minhas ocupações intelectuais nesses últimos meses. Depois de eu ter organizado o livro O grande sedutor - escritos sobre Gilberto Freyre de 1945 a 2010, com textos do iluminado Edson Nery da Fonseca, que foi seu amigo e confidente; e de ter prefaciado Caminhos do açúcar - Ecologia, gastronomia, moda e roteiros turísticos a partir de Gilberto Freyre, do antropólogo Raul Lody, alguém também admirável, me lancei com empenho em outro trabalho árduo: reunir entrevistas que o Mestre de Apipucos concedeu aos mais diversos órgãos da imprensa brasileira e estrangeira, a fim de que elas venham a constituir um livro. Esse trabalho está em andamento.
Chamado por Julián Marías de "brasileiro universal", Gilberto Freyre foi um dos maiores intelectuais deste país. Autor de clássicos como Sobrados e mucambos, Nordeste e Ordem e progresso, Gilberto viveu intensamente sua vida pública como um dos pensadores mais lúcidos que perscrutavam a sociedade brasileira; e no meio de uma intelligentsia que, em parte, o repudiava e/ou o evitava por causa de certas ideias e posicionamentos por ele assumidos, como o apoio à Ditadura Militar e a acusação de que romanceou o regime escravocrata que existiu no Brasil.
Fosse por conta do que discutia em seus livros, fosse em virtude de sua personalidade tida por muitos como luminosa, Gilberto atraía para a sua morada, quase que à maneira de uma peregrinação religiosa, uma multidão que o buscava desejosa de vê-lo e de, principalmente, ouvi-lo - e, se possível, receber dele a honra de provar do seu famigerado conhaque de pitanga que, entre os ingredientes, contava com um licor de violetas feito por mãos de "freiras virgens e místicas" do Convento do Bom Pastor, daqui de Garanhuns.
Mas o que é que tanto Gilberto Freyre tinha a dizer? Ou perguntando de outro modo: o que é que as pessoas buscavam na Vivenda de Santo Antônio de Apipucos? Bom, acompanhando as entrevistas que até agora encontrei, vê-se que ele era um personagem com o qual todo curioso gostaria de conversar. Freyre não se furtava a responder nem mesmo às perguntas mais cabeludas, sobretudo as de foro íntimo. O que suas falas deixam ver é que ele gostava muitíssimo de conceder entrevistas; porque, através delas, ele também procurava elucidar ideias suas - que as pessoas não difundiam, seja porque buscavam ocultá-las, uma vez que, para muitos esquerdistas, Gilberto era persona non grata, seja porque as ignoravam de fato e/ou não as compreendiam -, além, claro, de rebater as críticas que recebia e exaltar a sua já folclórica vaidade intelectual.
A presença pétrea de Gilberto Freyre demarcou um território amplo no campo das ideias no Brasil - e no mundo - desde que veio a lume Casa-grande e senzala, em 1933. Seu pensamento-guia lançou luz sobre diversos conceitos que aparentavam ser inabaláveis, o que fez que com que, desde então, ele passasse a ser considerado por muitos como um gênio da raça. Gilberto Freyre passou a ser ouvido como uma das vozes mais conscientes do país, mesmo quando a sua fala destoava do discurso dominante e nela se percebia o relevo de uma personalidade por vezes tão paradoxal, ou contraditória, como ele preferia dizer - "Confesso-me o mais contraditório dos homens", ele afirmou, talvez, influenciado pelo poeta norte-americano Walt Whitman, que certa feita declarou: "Você diz que eu me contradigo. Sim, eu me contradigo mesmo".
Não era, portanto, a simples passeio que tantas personalidades - cientistas, artistas, políticos - e jornalistas afluíam para a Vivenda de Santo Antônio de Apipucos. A verdade inegável é que, ali, naquela casa, durante mais de quarenta anos, residiu a consciência do Brasil.

(Artigo publicado também in: O Monitor [Garanhuns], outubro de 2011, Opinião, p. 02).                            

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