6 de dezembro de 2011

Como se chega aos 90 anos?

Por Clênio Sierra de Alcântara


"A vida segue um curso muito preciso e a natureza
dota cada idade de qualidades próprias. Por isso
a fraqueza das crianças, o ímpeto dos jovens, a seriedade
dos adultos, a maturidade da velhice são coisas
naturais que devemos apreciar cada uma em seu tempo".

                                                          Saber envelhecer. Cícero, 103-43 a.C.

Fotos: Ernani Neves e do autor do texto

Alguém já disse que viver é uma grande aventura. Todas as vezes que eu sento ao lado de Edson Nery da Fonseca para ouvi-lo discorrer sobre o seu tempo vivido, a dimensão do significado dessa "grande aventura" ganha contornos de uma quase epopeia.


Eu junto com o meu velho Edson


À medida que vai me revelando vivências Edson me dá lições não de partir, como aquela visão que um certo aeroporto dava ao seu poeta mais querido, Manuel Bandeira; mas, sim, lições que me conferem aprendizados diários de um compromisso efetivo de sempre buscar enriquecer a bagagem interior - o aprimoramento intelectual - com vistas a tornar essa "aventura", que é a existência, ainda mais desafiadora e revigorante, porque, lado a lado, na vida, seguem a alegria e a tristeza, as conquistas e os malogros, os prazeres e os dissabores, as realizações e as decepções; e é a vida interior, que porventura cultivamos, que faz com possamos compreender, em larga medida, o que vai muito além de nós.


 

Edson Nery da Fonseca. Nunca pensei que algum dia eu iria ter com esse grande intelectual brasileiro encontros vários. Encontros esses nem sempre amistosos, é bom que se diga, a bem da verdade. Uma e outra vez ouvi dele palavras de repreensão e reprovação; mas sempre nos reconciliamos, porque, pelo menos de minha parte, existe um querer bem e uma admiração danada com relação à sua pessoa. Apesar dos "puxões de orelha" que me dá, não sei realmente qual é o juízo que ele faz de mim. E, embora nos conheçamos há tão pouco tempo - para um historiador o espaço de doze meses é uma fração de centésimos de segundos -, sinto que é como se eu o tivesse ao meu lado por dias infindos, dado o mergulho de cabeça que ele permitiu que eu desse nas confissões que me faz nos momentos em que a sua velhice e a minha juventude dão-se as mãos.


Dr. Edgar Victor, cardiologista que acompanha Edson há muitos anos




Acostumei-me com o seu ar risonho e, principalmente, com o seu semblante apreensivo em virtude de lhe escapar as condições para remediar os males do mundo - ou pelo menos daqueles que gravitam  em derredor de sua por vezes inconsequente solaridade, digo, solidariedade.






As paixões físicas. As paixões espirituais. A ordem unida no Exército. A gata Daminha dormindo profundamente no seu colo. Os quadros demarcando territórios nas paredes. A missa de todo dia assistida através da TV.  Os livros que já foram tantos e que agora são tão poucos. Os papéis datilografados e manuscritos de décadas passadas. As fotografias testemunhadoras das muitas andanças. As visitas que chegam a qualquer hora como que para pedir a bênção. As centenas de recortes de jornais. O Irmão Gregório levando a comunhão. Os telefonemas dos amigos distantes. As recordações de toda uma vida vivida muito intensamente. As inimizades angariadas nos tempos de cólera. O brigão indomável. O galanteador incorrigível. O caturrão. Os achaques vindos com o acúmulo dos anos. As limitações físicas. O Lasix, o Metamucil, o Dormonid, o Alprazolam. A dor severa que vem no instante da micção. As ausências reclamadas. A saudade dos banhos de mar. Rua de São Bento nº 90 - sobe-se uma ladeira enorme para chegar lá. As conferências muito aplaudidas ao término da declamação - não, ele não declama, ele diz - de longos poemas. O lançamento de mais um livro. Lúcia Nery da Fonseca, Gilda Verri, Marianne Peretti, Jannice Monte-Mor, Gilka Weber, Cordélia Robalinho Cavalcanti, Lúcia Gaspar, Aida Nery da Fonseca, Lydia de Queiroz Sambaquy. O requinte confundido com vaidade e vice-versa. A enumeração dos medíocres e subliteratos. A dificuldade em aceitar os bons sentimentos dos outros. A religiosidade imensa. O medo da morte e as instruções para quando morrer. As narrativas licenciosas contadas de modo empolgante. Gilberto Freyre, Odilon Ribeiro Coutinho, Manuel Bandeira, Aníso Teixeira, Álvaro Lins, Wilson Martins, José Lins do Rego, Murilo Mendes, Darcy Ribeiro, Rubens Borba de Moraes, Cassiano Nunes, José Césio Regueira Costa, Jaci Bezerra, Mauro Mota, Otto Maria Carpeaux. O grande sedutor, Estão todos dormindo, Vão-se os dias e eu fico, Introdução à Biblioteconomia, Problemas brasileiros de documentação. As comidas maravilhosas do Restaurante Leite. O tempero do Tia Dulce. O lanche gostoso do McDonald's. A bengala de Davi Mourão-Ferreira. Rua do Progresso, Rua da União, Rua Dois Irmãos: o mundo é uma vastidão de caminhos.  A generosidade desmedida. Dr. Edgar Victor: um amigo cordial. A felina coleção de bibelôs. A proximidade do Mosteiro de São Bento: a vida que poderia ter sido e que não foi. Faculdade de Direito do Recife, Câmara dos Deputados, Universidade de Brasília, Fundação Joaquim Nabuco. "O homem mais alto do mundo" cantando "Perfume de mulher bonita", do repertório de Carlos Galhardo. Thomas Merton, Arthur Rimbaud, Pablo Picasso, Lawrence da Arábia, William Shakespeare, Fernando Pessoa. O badalar dos sinos. A hora do Ângelus. Ricardo Brennand, Anco Márcio Tenório Vieira, José Paulo Cavalcanti Filho, Holmes do Rego Barros: amigos mais que amigos. Lúcia Maria: salve, salve tamanha coragem e obstinação! Os Galaxy e as estradas sem fim. O segredo de Brokeback Mountain, Morango e chocolate, A lei do desejo. Liszt, Mozart, Schubert, Brahms. A câmera reveladora de Nelson Pereira dos Santos. Recife, Rio de Janeiro, Brasília, Pirenópolis, Natal, Penedo, Nova York, Olinda, Lisboa, João Pessoa, Paraty. As mãos de João Paulo II. A medalha de São Bento pendurada no pesçoco. A brisa do mar de Olinda. Márcio, Jorge, Seu Vino, Zeca, David . A vida é, também, sonhar.


Edson Nery da Fonseca. Nunca pensei que algum dia eu abraçaria esse homem transmitindo-lhe parte de tudo que há  de bom em mim.


Durante  a cerimônia na qual Edson recebeu o Doutor Honoris Causa


Ainda ontem, à tarde, no Auditório Gilda Lins, da Editora Universitária da Universidade Federal de Pernambuco, Edson foi agraciado com o título de Doutor Honoris Causa, que agora ele soma ao de Professor Emérito da Universidade de Brasília e ao de Pesquisador Emérito da Fundação Joaquim Nabuco.



 Foi um mais que justo reconhecimento a uma personalidade que dedicou toda a sua vida à difusão dos conhecimentos biblioteconômicos, à formação de profissionais de Biblioteconomia, à instituição de bibliotecas e, principalmente, à promoção do livro como gênero de primeira necessidade para o engrandecimento de todo e qualquer cidadão. Aclamado por autoridades, parentes, amigos e admiradores, em seu discurso Edson Nery da Fonseca fez o "elogio ao método":

 
" Há quem deteste o método e a metodologia. Um insigne filósofo alemão de nossos dias é autor de um livro intitulado Contra o método. Esses inimigos do método e da metodologia são românticos à outrance; para eles as normas bloqueariam a criatividade. Como falar - argumentam - em organização de algo tão intangível como o trabalho intelectual? Prefiro ficar com outro alemão que era, além de filósofo, matemático. Refiro-me a Leibniz, para quem mais importante do que a ciência é o método que torna possível adquiri-la".


Eu não poderia perder esse momento










Aplausos, aplausos que o homem merece.


Edson, se não estava, pelo menos parecia estar feliz na cerimônia, que se prolongou por quase duas horas, o que não é pouco para uma pessoa com a idade dele e com os sérios problemas de saúde que enfrentou recentemente.Vê-lo, ali, ouvindo atento o panegírico escrito e lido por sua amiga Gilda Verri; e esforçando-se por concluir a leitura do seu discurso foi algo realmente emocionante. E eu não posso deixar de dizer que, novamente, de novo, mais uma vez, me senti deveras privilegiado por estar em meio a uma plateia que acompanhava mais um desempenho desse gigante.

Hoje, dia 6 de dezembro, Edson Nery da Fonseca está completando 90 anos de idade. Logo cedo - às 08:50 h - eu cheguei à sua casa a fim de acompanhá-lo até o Instituto Ricardo Brennand, onde a data foi comemorada com uma missa celebrada pelos padres Marcelo e Bruno, seguida de um almoço oferecido ali mesmo, naquele lugar fabuloso. E, como ele detesta "Parabéns a você", por considerá-la uma "americanalhalização", todos nós o saudamos com o "Feliz aniversário" da parceria Manuel Bandeira/Heitor Villa-Lobos, cujos versos dizem assim:


Gilda Verri durante a leitura do panegírico


"Saudamos o grande dia
Que tu hoje comemoras
Seja a casa onde moras
A morada da alegria
O refúgio da ventura

Feliz aniversário!"

                                                       Discurso de Edson Nery da Fonseca resumido 



Edson Nery da Fonseca. Nunca pensei que algum dia eu iria encontrar na pessoa de um velho o maior revigoramento de minha vida até aqui.

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