3 de fevereiro de 2012

Flanar é preciso

Por Clênio Sierra de Alcântara


"Este campo
vasto e cinzento
não tem começo nem fim,
nem de leve desconfia
das coisas que vão em mim"

Memórias do Boi Serapião. Carlos Pena Filho





Fotos: Ernani Neves                               Rio Capibaribe visto da Rua da Aurora

Anteontem me dei o prazer de andar pelo Recife ao sabor do desejo de ir e vir. Somente isso. Andei mais do que a má notícia. É bem verdade que eu fora à capital - ainda hoje por aqui é comum dizer-se "eu vou à cidade", quando se quer dizer que se está indo à capital - com um plano bem definido: uma reunião de trabalho + almoço + pesquisa na Biblioteca Pública. Mas a boa companhia de um querido amigo fez com que eu acrescentasse mais ruas à minha jornada.


Aspecto da Rua da Aurora


Andamos de lá para cá e de cá para lá num circuito que compreendeu os bairros de Santo Amaro, Boa Vista, Santo Antônio e São José. Foram horas de sossego - apesar do meu cansaço.

Atravessando a Ponte da Boa Vista, em direção à Praça Joaquim Nabuco, fui surpreendido por uma cantada ao pé do meu ouvido direito: "Gato!". Olhei para trás, depois de alguns passos, ainda com tempo de ver a criatura. E ri. Ri o bom riso dos que estão de bem com a vida, apesar dos pesares. Viver é tão bom, não é?!

A esta altura já havíamos almoçado. E o nosso destino eram as ruas-formigueiro do vetusto bairro de São José. Entramos num sem-número de lojas à procura de bolsas e chapéus. Comemos passa de caju. Visitamos o Mercado de São José, onde o  meu amigo adquiriu uns chinelos de couro: "Isso é couro legítimo", nos garantiu o vendedor.

À medida que andávamos íamos pondo toda a conversa em dia. De um lado e de outro desenhávamos no ar projeções de futuro. E tudo de nós aquelas ruas ouviam. Ruas barulhentas. Ruas em preparativo para o Carnaval. Ruas de comidinhas vendidas em suas esquinas. Ruas de  gente apressada. Ruas de esmoleres. Ruas de vendedores formais e informais. Ruas de calçadas sujas. Ruas testemunhas de tantos acontecimentos.


Mercado de São José



Parece que o flanar nos fornece um aguçamento do olhar. E a partir de então os olhos captam minúcias que o andar ligeiro não os possibilita enxergar. Vejo o Recife de muitos ângulos e procuro sempre e sempre compreender os seus signos. Eu, que me vou de um subúrbio distante para lá, por vezes procuro flagrar algo que tatue em minha memória a circunstância do tempo. O Recife já me viu muito triste. E muito alegre também. Porém, anteontem, eu não estava nem alegre nem triste. Eu que sou muito dado à introspecção, naquele dia falava e falava e falava.

Senti uma vontade enorme  de tomar o suco de uva da Mate Brasília. E então rumamos para lá. Em seguida, percorremos os sebos da Rua da Roda. Sentamos num banco bem defronte ao Sebo do Augusto - próximos à estátua do Mauro Mota -, de onde fiquei a namorar o Barléus de R$ 750,00 exposto na vitrine.

Meu amigo ainda ia pegar no batente. Não tínhamos mais tanto tempo para flanar. Entramos numa loja de discos. E eu fiz questão de nos presentear com uma coletânea da Diana King, na qual ela canta "I say a little prayer".

Atravessamos a Ponte Princesa Isabel levando no rosto o que restava de claridade daquele dia.

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