21 de maio de 2015

Avoa, avoa, avoa, Dona Selma!

Por Clênio Sierra de Alcântara



Quando, na segunda metade da década de 90 do século passado, o Recife e a vizinha Olinda fervilhavam com o Movimento Manguebeat, que, além de promover um, podemos dizer, reprocessamento de ritmos genuinamente nordestinos – maracatu, coco, ciranda e embolada contribuíram para encorpar o apetecedor caldo cultural – com grupos como Chico Science e Nação Zumbi e Mundo Livre S/A, se estendeu para outras frentes como moda e arte cinematográfica, propondo não apenas uma redescoberta de valores culturais, mas também uma discussão e /ou entendimento da realidade que marcava aquele momento de transição secular, no qual palafitas, mocambos e favelas mostravam que homens-caranguejos e homens-gabirus continuavam proliferando nos mangues, subterrâneos e arredores da capital, figuras como Mestre Salustiano, Lia de Itamaracá e Selma do Coco, guardiões e ícones de folguedos enquadrados no que se convencionou chamar de “cultura popular”, ganharam uma projeção nunca antes vista.

Selma Ferreira da Silva, pernambucana de Vitória de Santo Antão, onde nasceu em 1929, foi uma dessas criaturas às quais a vida impõe duras penas e, talvez, como compensação, lhes confere um talento artístico que faz delas como que espécies de totens aos quais as reverências são parte de um rito mais do que merecido. Repetindo um movimento de tantos que saem de seus lugares de origem e rumam para a capital em busca de melhoria de vida, Selma amargou a dura realidade de ser mulher, negra, pobre e analfabeta numa metrópole que nunca deixou de ser excludente – como, aliás, o são todas as grandes cidades. Conciliando seu cotidiano de necessidades com a venda de tapioca em Olinda, para onde se mudou depois de deixar o Recife, e o envolvimento com o folguedo coco, Selma, que ficaria conhecida como Dona Selma do Coco, viu a sua rotina diária virar um rebuliço dos bons em meio à agitação que sacudia a Manguetown nos anos 90.

Ciceroneada pelo produtor Beto Hees, Selma do Coco realizou diversas apresentações na Alemanha e gravou um disco na cidade de Berlim, que foi programado para ser lançado aqui no Brasil. De volta à terra natal e já gozando de certa fama – nunca esqueci de uma narrativa publicada pela revista Marie Claire na qual ela contava da satisfação de ter virado pop star já então com mais de sessenta anos de idade; também não esqueço que assisti à sua apresentação no Domingão do Faustão, performance esta que foi prejudicada pela habitual truculência do abobalhado Fausto Silva -, Dona Selma foi assediada pela gravadora Paradoxx Music, que queria aproveitar o boom que a música pernambucana atravessava e a notoriedade que essa artista alcançara. Desta forma, sem nem sequer comunicar o fato àquele produtor, a coquista assinou contrato com a gravadora. “É claro que pesou o fato de ela ser uma artista que deve ter sido muito enganada na vida e tal. Sem contar que certamente ela estava deslumbrada com a situação. Seja como for, eu fiquei muito triste quando soube que ela tinha feito isso”, me falou em tom de desabafo Beto Hees. Beto me disse ainda que esse dissabor não os afastou de maneira alguma; e que eles firmaram parceria em outros projetos.

Foi com a música “A rolinha”, que ela própria compôs, que Dona Selma do Coco caiu na boca do povo. Não bastassem os versos que carregam um lascivo duplo sentido, afinal, rola é, também, um dos nomes do pênis – diz o coro: “Oi corre, corre, corre/ Pega, pega minha rola/ Avoa, avoa, avoa/ Pega, pega minha rola” -, o modo escrachado, a greia, a marcação “Rá-rá, Rá-rá” e a descontração esfuziante de Dona Selma contagiavam a plateia. Quem alguma vez a acompanhou durante um show decerto que sentiu uma vontade danada de seguir a assistência e mexer o corpo no ritmo do coco.

Em decorrência de uma queda nas dependências de sua casa, em Olinda, Dona Selma fraturou o fêmur direito e ficou hospitalizada durante quase um mês no Hospital Miguel Arraes, em Paulista, onde faleceu no último dia 9 de maio. Muito embora tenha feito a cobertura do festivo velório da artista, que foi sepultada no cemitério de Guadalupe, em Olinda, a grande imprensa do estado não fez saber ao público que a carismática cantora, uma senhora de 85 anos de idade, que era por lei reconhecida como Patrimônio Vivo de Pernambuco e que se encontrava há tantos dias internada num leito hospitalar, morreu sem ter chegado a receber uns cachês que a Prefeitura do Recife lhe devia de apresentações ocorridas no Carnaval passado.

De maneira bastante crítica e esclarecedora Roberto Benjamin, a certa altura do seu livro Folguedos e danças de Pernambuco (2ª ed. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1989, p. 32), nos diz que, em determinadas circunstâncias, “as manifestações culturais foram subordinadas aos interesses do atendimento turístico, sem nenhuma preocupação com a desagregação e perda de autenticidade do folclore”. Quem acompanha a luta que inúmeros artistas da quase sempre maltratada cultura popular enfrentam para manter seus folguedos com alguma dignidade, compreende que o que escreveu Roberto Benjamin continua na ordem do dia. Embora em um momento tenha, digamos, feito parte do mainstream, ao ter um disco lançado por uma gravadora de renome nacional, Dona Selma do Coco era uma artista popular que se apresentava basicamente nos eventos promovidos pelos governos estaduais e municipais que, como se sabe, costumam contratar artistas como ela tratando-os como sub-artistas, com cachês por vezes irrisórios que quase sempre demoram meses para serem pagos. Tratados como meros personagens folclóricos e atrações de segunda categoria esses artistas preenchem os espaços que sobram nas grades de programação oficiais como elementos exóticos a serem apreciados por turistas. E só.

Com a morte de Dona Selma do Coco – também recentemente faleceu Mestre Camarão – a cultura pernambucana perdeu uma de suas figuras de proa. Selma esbanjava alegria e talento e, com o perdão do clichê, vai realmente fazer falta.

(Artigo publicado também in O Monitor [Garanhuns], nº 174, maio de 2015, Opinião, p. 2)


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