17 de junho de 2015

Cultura popular no cabresto

Por Clênio Sierra de Alcântara
 

Fotos: do autor    Em audiência pública bastante concorrida, artistas e produtores culturais protestaram contra a Lei nº 15.516. A ação do deputado Ricardo Costa foi um desses episódios que ninguém tolera mais. Basta de tirania!



Como tantos outros já fizeram eu vou aqui parafrasear o William Shakespeare do Hamlet dizendo que: há algo de podre na nação multicultural chamada Pernambuco. E esse podre tem a ver com o apego desmedido que algumas autoridades mantêm para com as entranhas do autoritarismo e se servem desse ranço autoritário para ajustar medidas pretensamente benfeitoras que, na realidade, não passam de ações deliberadas, feitas às ocultas, e com um indisfarçável propósito coercitivo: a análise do discurso deixa muitíssimo claro que os pretensos benfeitores se julgam no direito de impor obediência aos seus desmandos.


Na manhã da quarta-feira da semana passada – dia 10 de junho – eu acompanhei a cirandeira Lia de Itamaracá e o seu produtor Beto Hees até o auditório da Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe) a fim de tomarmos parte na audiência pública marcada para que fosse discutida a Lei nº 15.516, sancionada pelo governador Paulo Câmara no último dia 27 de maio a partir de um projeto de autoria do deputado Ricardo Costa, do PMDB. A plateia que praticamente lotou a sala era basicamente composta por artistas e produtores culturais. Entre outros marcaram presença os cantores Josildo Sá, Novinho da Paraíba, George Luiz e Maciel Salustiano, o maestro Ademir Araújo e membros do Movimento de Teatro Popular de Pernambuco (MTP), da Associação de Teatro de Olinda (ATO), do Movimento de Arte na Rua (MAR) e do Bloco Lírico Eu Quero Mais. Todos nós estávamos lá para mostrarmos nosso repúdio e indignação contra a tal lei que, segundo a relatoria, “dispõe sobre a apresentação de artistas de rua nos logradouros públicos e a comercialização de produtos de sua autoria”, e que, na verdade, é um instrumento pensado para, mais do que “disciplinar”, pôr amarras e mesmo coibir atividades artísticas e culturais nos espaços públicos.



Maciel Salu lembrou aos nobres deputados que os folguedos precisam ser transmitidos de geração para geração



O texto da lei é bastante sucinto e revelador de como representantes do Estado, em que pese o conteúdo da Constituição que estabelece a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença, se articulam de modo sub-reptício – se não foi gestada às escondidas por que, então, que não se procurou promover audiências públicas quando da elaboração do projeto de lei? - e na contramão do que se compreende como um verdadeiro regime democrático, e instituem uma lei discriminatória, estúpida e retrógrada com a intenção de porem no cabresto as manifestações culturais, como se eles estivessem lidando com meros objetos, com seres inanimados que se carrega de um lugar para outro e não com pessoas que exercem seus ofícios, com brincantes e fazedores de artes que precisam ter plena liberdade para que possam criar, recriar e se expressar. As “artes do fazer” – para usar uma expressão do pensador francês Michel de Certeau – não são estanques; elas não podem ser postas em escaninhos e nem em celas limitadoras de movimentos, porque é da essência das expressões artísticas e culturais ter o campo livre para os voos de descobertas, experimentações, representações e realizações.




Lia de Itamaracá também marcou presença na audiência


As determinações, a repressividade e a vigilância impostas pela execrada Lei nº 15.516 – e de novo eu trago a este artigo a lembrança de outro estudioso francês, o Michel Foucault de Vigiar e punir e da Microfísica do poder – às manifestações artísticas e culturais vêm, aqui em Pernambuco, na mesma esteira daquele episódio igualmente lamentável em que se intentou, em fevereiro do ano passado, impor um limite de horário para a realização de sambadas de maracatu no Engenho Cumbe, em Nazaré da Mata, uma tradição de quase cem anos que entra pela noite e vai até o raiar do dia. A lei proposta pelo deputado Ricardo Costa insere-se no âmbito que pretende uma cidade disciplinada e saneada na qual as sociabilidades devem seguir regras rígidas, sobretudo as interações sociais que são entremeadas por tudo aquilo que se convencionou chamar de cultura popular que, historicamente, sempre foi alvo de algum tipo de preconceito, por ser considerada uma cultura marginal, uma manifestação de pessoas que têm baixo ou mesmo nenhum nível de instrução escolar – daí por que seu contraponto é justamente uma arte e uma cultura erudita. É sob essa ótica dicotômica que deve ser visto também o combativo e preconceituoso artigo “Supremo Tribunal Cultural” do habitualmente sensato José Roberto Guzzo (Revista Veja: São Paulo: 25 de fevereiro de 2015, p. 98), no qual ele reclama, com razão, do fato de que patrimônios nacionais como o Museu do Ipiranga e a Biblioteca Nacional andam sofrendo com a falta de recursos que os mantenham em pleno funcionamento, e, por outro lado, erra a mão e o julgamento quando diz que a política cultural do atual Governo federal tem privilegiado a “cultura popular” que, segundo o renomado articulista, “trata-se de um conjunto de atividades exercidas por pessoas que não sabem pintar, escrever, compor uma melodia, fazer um filme ou montar uma peça de teatro capazes de interessar a alguém”.
 
 
Sem pressão da classe artística não haveria revogação da maldita lei. 




No auditório da Alepe a mesa foi composta – além do nobre deputado Ricardo Costa, que se portou o tempo todo posudo, como se o burburinho dos protestos naquele espaço não estivesse sendo direcionado a ele – pelos deputados Raquel Lyra (PSB), Teresa Leitão (PT), Edilson Silva (PSOL), Joaquim Lira (PSD) e Antônio Moraes (PSDB), por Marcelino Granja, secretário de Cultura do Estado, e por Márcia Souto, diretora-presidente da Fundarpe. A mise-en-scène foi marcada por um discurso absolutamente piegas do senhor Ricardo Costa que teve o desplante de dizer que não pretendia restringir as manifestações artísticas e culturais e, sim, “dar mais reconhecimento e valorização aos artistas de rua”. A assistência deveria tê-lo vaiado nesse momento. E, para completar o seu discurso – querendo posar de Madalena arrependida -, ele anunciou que deu entrada noutro projeto, agora para revogar a maldita lei.


Embora uns e outros tenham dirigido absurdos “parabéns” ao deputado, como se tivesse ele de espontânea vontade e não por pressão da classe artística, decidido anular a Lei nº 15.516, parte considerável da plateia permaneceu inquieta e raivosa contra a atitude primeira do parlamentar. E bastou que o microfone fosse aberto ao público para que algumas verdades inconvenientes fossem ditas sem quaisquer beija-mãos e congratulações imerecidas. A lei determinava que as apresentações artísticas deveriam acontecer entre as 10:00h e as 22:00h; então alguém da plateia fez saber aos muito proficientes deputados que, caso eles legislassem tendo pleno conhecimento da matéria, saberiam que algumas representações, como as sambadas de maracatus e os cavalos marinhos demandam horas e varam as noites. A lei estabelecia que as apresentações artísticas não poderiam contar com patrocínio privado; então alguém da plateia perguntou aos honrados deputados se suas campanhas de eleição não contaram com recursos de empresas particulares. A lei proibia terminantemente a presença de crianças de zero a catorze anos de idade em tais eventos; então alguém da plateia lembrou aos corretos deputados que, além de ferir o Estatuto da Criança e do Adolescente que em um dos seus princípios esclarece que toda criança e adolescente tem direito à educação, à cultura e ao lazer, esse ponto da lei impediria que esse público tomasse conhecimento da existência das manifestações artísticas e culturais, e, por conseguinte, não haveria como transmiti-las para as futuras gerações.

Maestro Ademir Araújo também deu o seu recado: os artistas pernambucanos exigem respeito






De maneira muito incisiva foi dirigido aos parlamentares um pedido para que eles legislassem a favor e não contra as manifestações artísticas e culturais; e que eles, por exemplo, tratassem de estabelecer um parâmetro que garantisse aos artistas locais, nos eventos bancados com dinheiro público, um pagamento decente para que não se perpetue o quadro atual onde a tabela de equivalência é de que um artista nacional vale trinta, quarenta e até mais vezes que um artista da terra que, além de ter seu trabalho desvalorizado, fica meses e mesmo anos esperando o dinheiro: em sua fala George Luiz declarou que já ficou dois anos à espera do pagamento de um cachê; por seu turno Novinho da Paraíba foi tão contundente quanto: disse que “os artistas não têm que ficar pedindo esmolas”.
 
Josildo Sá disse aos deputados que não tem outro sustento além de seus shows

A decretação da Lei nº 15.516 foi mais uma demonstração inequívoca de como agentes do Estado podem legislar contra o cidadão comum sob a justificativa de que agem de tal maneira visando a sua proteção, como se o cidadão precisasse de um tutor. Nós que fazemos arte sabemos bem que, mesmo em regimes ditatoriais, as manifestações artísticas e culturais conseguem subsistir porque é da sua natureza se contraporem a tudo que tenta enquadrá-las, aprisioná-las, reprimi-las, sufocá-las. Tempos muito sombrios estes que estamos vivendo, nos quais, em pleno estado democrático de direito, um parlamento se articula para determinar de que forma os artistas devem exercer seus ofícios. Tempos muito nefastos estes nos quais se busca lançar as manifestações da chamada cultura popular na lata do lixo da história.


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