3 de junho de 2015

Ouçam o que dizem os sinos das igrejas de Olinda

Por Clênio Sierra de Alcântara





Fotos: do autor    Seminário de Olinda e Igreja de Nossa Senhora da Graça. Caso as obras emergenciais para o restabelecimento dessas construções não sejam efetuadas, o sítio histórico olindense corre o sério risco de perder tais monumentos


Vigora desde sempre no Brasil o que chamo de “Lei da presentificação”, que estabelece que o passado não é fonte de aprendizado algum e que, por isso, deve ser sistematicamente ignorado, bastando que nos ocupemos tão somente com o presente e com as coisas do futuro. Muito embora remonte a um tempo anterior, convencionou-se como o marco fundador e instituidor da tal lei a ação insana do ilustre senhor Rui Barbosa que mandou queimar um sem-número de documentos referentes ao regime escravocrata, talvez, pensando que, ao queimá-los, estaria pondo fim à história da escravidão neste país.


Esse apego ao presente, mais do que uma “lei”, se tornou, no Brasil, como que uma determinação da própria existência. Num país do qual se diz que “leis não pegam”, eis que essa tal “Lei da presentificação” rapidamente angariou apoio e aclamação popular. Trata-se o passado como sinônimo de atraso, como algo que deve ser completamente esquecido, deixado para lá ou ser reduzido a cinzas, como quis o autor de Oração aos moços.








No último dia 28 de maio o rigor com que a famigerada “Lei da presentificação” é aplicada nestas plagas mostrou novamente quanto eficiente ela é. Naquele dia a Defesa Civil olindense determinou a interdição do Seminário de Olinda e da Igreja de Nossa Senhora da Graça, que dele faz parte, porque ambos apresentam graves problemas na estrutura – madeiramento do telhado corroído e podendo desabar a qualquer momento; o piso da nave da igreja apresentando elevações; paredes sofrendo com infiltrações; e rachaduras tomando a fachada voltada para mar – e correm o risco de ruírem. Localizados no Alto da Sé, um dos pontos mais visitados de um sítio histórico que foi reconhecido em 1982 pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade, esses monumentos não são os únicos que estão necessitando de urgentes reparos, o que evidencia quão ruinosa está sendo para Olinda a vigência de uma política de descaso para com a preservação do patrimônio histórico edificado da cidade.



Em 2012 – ocasião em que a cidade deveria comemorar os trinta anos da obtenção do título de Patrimônio Cultural da Humanidade – a Igreja do Bom Jesus do Bonfim foi interditada devido a rachaduras na torre que, desde aquele ano, continua em iminência de desabar, porque nenhuma intervenção foi feita até agora visando ao restabelecimento do edifício eclesiástico. Recentemente parte do seu forro desabou e danificou o altar.



Igreja do Bom Jesus do Bonfim: desde 2012 esse templo está interditado e com sua torre apresentando rachaduras enormes, ameaçando desabar sobre a casa ao lado






Dom Fernando Saburido, arcebispo da Arquidiocese de Olinda e Recife, solicitou à Defesa Civil, ainda naquela semana, que fosse feita uma vistoria na Igreja de São Pedro Mártir, cujo telhado cedeu e, por questão de segurança, o seu sino deixou de ser tocado.






Igreja de São Pedro Mártir: as igrejas de Olinda clamam por socorro








Sabe-se que alguns dos monumentos históricos de Olinda foram contemplados com verbas do PAC Cidades Históricas. Em depoimento publicado pelo Jornal do Commercio (Cleide Alves. “Um patrimônio prestes a virar pó”. Jornal do Commercio, Recife, 29 de maio de 2015, Cidades, p. 1), Frederico Almeida, superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), declarou o seguinte como justificativa para a demora do processo de liberação dos recursos: "Estamos encontrando dificuldades para atender as regras de controle orçamentário, que estão mais rigorosas". Ele citou como exemplo a contratação de um carpinteiro para obras de restauração, dizendo que "É um trabalho diferenciado e não está tabelado".

Não se pode pensar que uma nação caminha para o pleno desenvolvimento socioeconômico quando se verifica que não apenas os seus governantes mas também o seu povo trilham esse caminho ignorando o legado de gerações passadas, como se tudo tivesse sido concebido exatamente agora e nada devêssemos aos tempos pretéritos. Empreender esforços de salvaguarda  e conservação de monumentos históricos, artísticos e culturais, destinando recursos financeiros para que essas ações se efetivem não é jogar dinheiro fora, como tantos dizem: é preservar fundamentalmente a memória do país. O presente que delineia o futuro se alimentou do passado, pois o presente não existe por si mesmo. No breve e lúcido prefácio que escreveu para o livro Relíquias de Pernambuco: guia aos monumentos históricos de Olinda e Recife, do Padre Antonio Barbosa (São Paulo: Editora Fundo Educativo Brasileiro, 1983, p. ix), Gilberto Freyre destacou que falar do que é relíquia – no caso em particular, do patrimônio edificado – não é rejeitar o que é moderno ou futuro na vida e na cultura de uma nação, e, sim, apreço pela memória nacional. E completou dizendo que: “À imaginação voltada para o futuro é preciso que se junte o zelo pelas sobrevivências de passados que recordem, em obras de expressão artística, esforços de gerações de ânimo construtivo”.

Quem conhece de perto o sítio histórico de Olinda sabe muito bem como ali convivem lado a lado a beleza e o abandono, a suntuosidade e o descaso. Como se não corresse o risco real de perder o título de Patrimônio Cultural da Humanidade que lhe foi outorgado pela Unesco, Olinda vem sofrendo há anos com a inércia dos órgãos responsáveis pela conservação do seu patrimônio edificado e de sua paisagem natural – lembre-se que a Unesco atribuiu àquele título pelo conjunto formado pelas edificações e pelo cenário da natureza. Além do seminário, das igrejas de Nossa Senhora da Graça, do Bom Jesus do Bonfim e de São Pedro Mártir, também o Largo do Varadouro com o Mercado Eufrásio Barbosa estão carecendo de restauração e revitalização. Na Praça do Carmo um imponente casarão está há anos abandonado. Afora isso, permanece em toda a área tombada uma ocupação maciça de veículos, como se a presença deles não fosse algo daninho, como se a trepidação por eles causada não pudesse comprometer as estruturas, por demais antigas, das edificações.

Compreendo que o discurso da preservação do patrimônio histórico não pode ser dissociado da promoção permanente da chamada Educação patrimonial nas escolas de todo o país, nas associações de moradores e onde mais se possa disseminar esse tipo de conhecimento como forma de a comunidade reconhecê-lo como tal e se envolver com a sua salvaguarda e preservação. Já nos anos 30 – recorde-se que foi em 1937 que foi criado o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional -, numa carta dirigida ao jornalista e então deputado Paulo Duarte, parabenizando-o pela sua campanha em defesa de um maior zelo pelas capelinhas toscas e casarões bandeiristas de São Paulo, o escritor Mario de Andrade escreveu que “Defender o nosso patrimônio histórico é alfabetização”. Sou da opinião de que todos os livros didáticos de História editados no Brasil deveriam estampar em letras graúdas essa assertiva marioandradiana na folha de rosto. Por outro lado continuo mantendo a firme posição de que ao Iphan deveriam ser destinados mais recursos financeiros para que as ações de salvaguarda e manutenção do patrimônio fossem conduzidas a contento; e que o seu quadro de funcionários comportasse mão de obra especializada em técnicas de restauro que pudesse tocar o trabalho, de modo que o órgão não precisasse recorrer à contratação de firmas particulares. Em que pese o honroso esforço do Iphan para proteger os bens que lhe cabe defender, ele continua refém de uma estrutura defasada que não consegue dar conta do tanto que há por fazer, como provam os monumentos deteriorados de Olinda que são, como se sabe, uma pequena parcela de um universo bastante vasto.


Os sinos das igrejas de Olinda estão tocando neste momento; e não é para anunciarem missas, procissões, quermesses e muito menos incêndios, como outrora faziam: é para pedirem socorro para os templos que os abrigam.

(Artigo publicado também in O Monitor [Garanhuns],  Numero 175, junho de 2015, Opiniao, p. 2).



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