Por Clênio Sierra de Alcântara
Foto: divulgação O trem da vida segue o seu destino; e cada estação pode nos revelar por vezes mais de uma descoberta |
Não se sabe se houve um
anúncio de adeus ou se o desaparecimento ocorreu assim, sem ser avisado. O fato
foi que a ausência daquele homem deixou um profundo e incômodo rastro de
tristeza naquela casa. E não apenas uma tristeza, também uma inquietação
sem-par na cabeça de um jovem tão completamente preso às lembranças de um pai
carinhoso e companheiro que, segundo haviam lhe contado, viajara para um outro
país e, desde então, dele não se tivera mais notícias.
Entremeada por uma trilha
sonora que é quase toda ela um formidável acalanto, a narrativa de O filme da minha vida, o mais recente
longa-metragem dirigido por Selton Mello é realmente encantadora do princípio
ao fim; e revela que o reconhecido talento de Selton como ator está se
derramando em igual medida para o seu lado de diretor.
É O filme da minha vida o caso de uma produção brasileira que não
parece ser produto da cinematografia nacional. Sim, estão lá a belíssima
fotografia de Walter Carvalho e o idioma a denunciar que se trata de um filme
brasileiro; mas a mim me pareceu que todo o resto pode levar o espectador a pensar que está diante de algo que não é daqui, como se fosse um olhar de fora
a fazer uso de nossos atores – ah, tem o Vincent Cassel, francês – e de nossas
paisagens para contar uma estória que, seja dito, é baseada no livro Um pai de cinema, do chileno Antonio Skármeta,
o mesmo autor de O carteiro e o poeta. A própria trilha sonora, é verdade,
contribui para que se pense, no mínimo, que o diretor pode até ser brasileiro,
mas o longa-metragem por ele dirigido não.
Muito do brilho de O filme da minha vida se deve a atuações
por demais convincentes e eu quase dizia arrebatadoramente contidas de Johnny
Massaro e do próprio Selton Mello. Mas tem mais: a narrativa se destaca ainda
por sua beleza visual, pela densidade da estória, pela montagem, pela direção
de arte e pelo alto teor de sensibilidade pontuada em boa dosagem por uma
comicidade pueril.
Tony Terranova, o personagem
interpretado com bastante propriedade por Massaro, atravessa um bom tempo carregando
indagações a respeito do paradeiro do pai. Não bastasse o fato de ele se ver
perturbado com toda a situação, o assunto da ausência paterna é algo que causa
grande desconforto em sua mãe porque, talvez, o marido ausente faça muito mais
falta a ela do que ao filho e isso a desestrutura emocionalmente. Paco, vivido
por Selton, parece querer se manter como uma viga mestra para a família como um
todo e para Tony em particular. Mas como conter uma alma e um coração que estão
transbordando de saudade?
A bem da verdade, o viver
não é um presente contínuo; e não adianta querer ignorar o passado porque feliz
ou infelizmente ele está bem ali permitindo o tempo todo que nós lancemos o
olhar sobre ele. A poesia, os livros, o cinema, o desejo sexual, as monótonas
obrigações do dia a dia, enfim, não conseguem preencher o vazio deixado pelo
pai que se foi. Talvez se possa querer dizer que todos nós sejamos feitos de
pequenos fragmentos de alegria e de dor; e que o fundamentalmente nos move e
nos mantém de pé seja a vontade de estarmos na vida buscando manter um
equilíbrio necessário entre tudo aquilo que nos é pungente e o que nos anima e
revigora. Ali na fronteira, onde tudo é pulsante e vivo, uma descoberta, ou
melhor, um reencontro fará com que Tony reveja várias circunstâncias e
redimensione a extensão do que era dor, do que era incompreensão e do que era
esperança.
De repente o acaso porá o pai de Tony frente a frente com uma realidade que ele não poderá manipular. Não se
pode calar - e nem se consegue – a respeito de tudo. Quando o trem passar
novamente por aquele lugar, a mãe de Tony irá se agarrar à possibilidade de
reencontrar o encanto de sua vida a fim de restabelecer a sua paz interior. Un, deux, trois, quatre... é a lição do
dia escrita na lousa, como a querer nos dizer que são inúmeras as vezes que
podemos recomeçar e/ou rearrumar a nossa vida.
A vontade de que tudo possa
ser novamente posto nos trilhos sempre nos eleva a um patamar de grandeza. Não pelo
destino, porque nem todos creem nele, e sim pelas vicissitudes inexoráveis que
não conseguimos deter, a vida segue seu rumo. O trem da vida, claro, faz parada
em várias estações, porque é assim que tem de ser. E o outro tanto dessa estória eu não
posso contar.
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