18 de agosto de 2017

A vida reposta nos trilhos

Por Clênio Sierra de Alcântara


Foto: divulgação      O trem da vida segue o seu destino; e cada estação pode nos revelar por vezes mais de uma descoberta


Não se sabe se houve um anúncio de adeus ou se o desaparecimento ocorreu assim, sem ser avisado. O fato foi que a ausência daquele homem deixou um profundo e incômodo rastro de tristeza naquela casa. E não apenas uma tristeza, também uma inquietação sem-par na cabeça de um jovem tão completamente preso às lembranças de um pai carinhoso e companheiro que, segundo haviam lhe contado, viajara para um outro país e, desde então, dele não se tivera mais notícias.

Entremeada por uma trilha sonora que é quase toda ela um formidável acalanto, a narrativa de O filme da minha vida, o mais recente longa-metragem dirigido por Selton Mello é realmente encantadora do princípio ao fim; e revela que o reconhecido talento de Selton como ator está se derramando em igual medida para o seu lado de diretor.

É O filme da minha vida o caso de uma produção brasileira que não parece ser produto da cinematografia nacional. Sim, estão lá a belíssima fotografia de Walter Carvalho e o idioma a denunciar que se trata de um filme brasileiro; mas a mim me pareceu que todo o resto pode levar o espectador a pensar que está diante de algo que não é daqui, como se fosse um olhar de fora a fazer uso de nossos atores – ah, tem o Vincent Cassel, francês – e de nossas paisagens para contar uma estória que, seja dito, é baseada no livro Um pai de cinema, do chileno Antonio Skármeta, o mesmo autor de O carteiro e o poeta. A própria trilha sonora, é verdade, contribui para que se pense, no mínimo, que o diretor pode até ser brasileiro, mas o longa-metragem por ele dirigido não.

Muito do brilho de O filme da minha vida se deve a atuações por demais convincentes e eu quase dizia arrebatadoramente contidas de Johnny Massaro e do próprio Selton Mello. Mas tem mais: a narrativa se destaca ainda por sua beleza visual, pela densidade da estória, pela montagem, pela direção de arte e pelo alto teor de sensibilidade pontuada em boa dosagem por uma comicidade pueril.

Tony Terranova, o personagem interpretado com bastante propriedade por Massaro, atravessa um bom tempo carregando indagações a respeito do paradeiro do pai. Não bastasse o fato de ele se ver perturbado com toda a situação, o assunto da ausência paterna é algo que causa grande desconforto em sua mãe porque, talvez, o marido ausente faça muito mais falta a ela do que ao filho e isso a desestrutura emocionalmente. Paco, vivido por Selton, parece querer se manter como uma viga mestra para a família como um todo e para Tony em particular. Mas como conter uma alma e um coração que estão transbordando de saudade?

A bem da verdade, o viver não é um presente contínuo; e não adianta querer ignorar o passado porque feliz ou infelizmente ele está bem ali permitindo o tempo todo que nós lancemos o olhar sobre ele. A poesia, os livros, o cinema, o desejo sexual, as monótonas obrigações do dia a dia, enfim, não conseguem preencher o vazio deixado pelo pai que se foi. Talvez se possa querer dizer que todos nós sejamos feitos de pequenos fragmentos de alegria e de dor; e que o fundamentalmente nos move e nos mantém de pé seja a vontade de estarmos na vida buscando manter um equilíbrio necessário entre tudo aquilo que nos é pungente e o que nos anima e revigora. Ali na fronteira, onde tudo é pulsante e vivo, uma descoberta, ou melhor, um reencontro fará com que Tony reveja várias circunstâncias e redimensione a extensão do que era dor, do que era incompreensão e do que era esperança.

De repente o acaso porá o pai de Tony frente a frente com uma realidade que ele não poderá manipular. Não se pode calar - e nem se consegue – a respeito de tudo. Quando o trem passar novamente por aquele lugar, a mãe de Tony irá se agarrar à possibilidade de reencontrar o encanto de sua vida a fim de restabelecer a sua paz interior. Un, deux, trois, quatre... é a lição do dia escrita na lousa, como a querer nos dizer que são inúmeras as vezes que podemos recomeçar e/ou rearrumar a nossa vida.

A vontade de que tudo possa ser novamente posto nos trilhos sempre nos eleva a um patamar de grandeza. Não pelo destino, porque nem todos creem nele, e sim pelas vicissitudes inexoráveis que não conseguimos deter, a vida segue seu rumo. O trem da vida, claro, faz parada em várias estações, porque é assim que tem de ser. E o outro tanto dessa estória eu não posso contar.

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