5 de agosto de 2017

Haverá a Rua da Glória de perder toda a sua glória?

Por Clênio Sierra de Alcântara

 Fotos: Arquivo do autor 
  Como deter a destruição avassaladora que acomete os prédios históricos do Recife? Os incêndios, as obras clandestinas, o abandono... Tudo contribui para que pouco a pouco a cidade perca os elementos constituintes de sua memória urbana



Passava da meia-noite do último dia 30 de julho, quando o Corpo de Bombeiros foi acionado para combater um incêndio num sobrado localizado na Rua da Glória, no bairro da Boa Vista, área central do Recife. Uma, duas, três, várias viaturas da valorosa Corporação seguiram para o local, tendo os seus componentes passado toda a madrugada empenhados em debelar as chamas que consumiam o imóvel que, logo se ficou sabendo, comportava quartos de aluguel. Uma testemunha que esteve presente no logradouro naquela hora fatídica em que o fogo parecia estar incontrolável me disse que o cenário era a um só tempo aterrorizante e desolador: as chamas rapidamente se alastraram pelo prédio e atingiram o pavimento superior, destruindo todo o telhado.













O bairro da Boa Vista é um dos núcleos de ocupação mais antiga da capital pernambucana; e em que pesem todas as transformações por que passou o núcleo primitivo do Recife, que compreende ainda os bairros de Santo Antônio, São José e Bairro do Recife, guarda a Boa Vista um considerável número de prédios que remontam a um passado longínquo da urbe recifense. Muito já foi desfigurado, mas ainda restam de pé dezenas de sobrados e casas térreas que evocam um tempo em que o porto dessa metrópole figurava como o segundo mais importante do Brasil, atrás apenas do do Rio de Janeiro, que era então a capital do país; e ter um porto movimentadíssimo além de significar entrada e saída de riquezas, conferia ao Recife não somente a condição de lugar de passagem de gente de várias partes do mundo, como também um sítio onde muitas pessoas buscavam se fixar, se instalando principalmente nas zonas adjacentes ao movimento portuário, bem como para as bandas da Boa Vista, que não demorou a figurar como um território bastante aprazível para o estabelecimento de moradias. No Recife cosmopolita de então, foi na Boa Vista que uma comunidade de judeus se instalou, abrindo pontos comerciais e residindo em suas ruas ainda sem o alvoroço medonho e maciço dos veículos automotivos que se vê nos dias de hoje.




Postes, fiação, carros, descaracterizações, ruínas.... A Rua da Glória está perdendo desde há muito a sua glória








Testemunhos desse Recife de tempos idos, não são poucos os edifícios do bairro da Boa Vista que estão caminhando para o desparecimento. Muitos já deram lugar a estacionamentos. Outros seguem abandonados. E outros tantos, como o sobrado da Rua da Glória que foi tomado pelo fogo dias atrás, estão seriamente abalados, como alguns da Rua Velha, que lhe fica próxima e que, igualmente a ela e à Rua da Matriz, concentra imóveis que, caso passassem por uma vistoria técnica rigorosa certamente deixariam de poder abrigar qualquer viva alma, dadas as más condições de suas estruturas.

No instante mesmo em que os bombeiros, ainda no dia seguinte à tragédia, se mantinham ali para retirar os corpos de dois moradores que morreram carbonizados, alguém lembrou de dizer que aquelas pessoas e outras tantas viviam e vivem em prédios que a Defesa Civil deveria interditar o quanto antes, porque esses “verdadeiros cortiços” apresentam paredes rachadas, madeiramento velho e instalações elétricas igualmente em estado precário. Ocorre que o Recife é, a exemplo de todas as capitais brasileiras, uma cidade que continua com acentuado déficit habitacional. Sim, eu concordo que pessoas correm risco de vida ao morarem em prédios como o que o fogo consumiu na madrugada do último domingo. Mas para onde vai toda essa gente? Para as favelas nos arredores do município? Para debaixo das marquises dos prédios da Av. Guararapes? Ou vai para as palafitas erguidas no Rio Capibaribe, a cerca de seiscentos metros da Rua da Glória?












O drama social e a precariedade existencial de tanta gente, como a dos indivíduos que residiam em quartos alugados no imóvel nº 366 da Rua da Glória, por outro lado, deixam ver também como o poder público e os seus proprietários mantêm uma postura de desinteresse para com a preservação do acervo do patrimônio edificado da cidade. As interdições, os desabamentos e as demolições vão se processando como se fossem meros fatos da vida e nada disso dissesse respeito à memória urbana do Recife. Paulatinamente a cidade vai perdendo seus edifícios antigos, que vão se desfigurando diante da indiferença de quem deveria se empenhar para que eles fossem preservados.

 A Municipalidade contestou o abandono daquele sítio informando, através de uma nota da Diretoria de Preservação do Patrimônio Cultural do Recife (DPPC), que o sobrado onde ocorreu o incêndio integra o perímetro de preservação do bairro da Boa Vista, inserido que está na Zona Especial de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural do município (ZEPH 8); que acompanha a situação da área; e que o imóvel nº 366 já havia sido notificado pela fiscalização da Diretoria Executiva de Controle Urbano do Recife (Dircon) pela ausência do alvará que permitisse o funcionamento do sobrado como pensão, motivo pelo qual seu proprietário recebeu uma multa de R$ 6.191,24. Ora, mas se aquele perímetro configura mesmo uma “Zona Especial de Preservação" por que, então, se veem ali tantos imóveis descaracterizados, arruinados e abandonados?

Na ensolarada tarde de ontem, eu fui percorrer mais uma vez a Rua da Glória em toda a sua extensão, mirando atentamente para a aparência das edificações que comportam moradias, pontos comerciais e instituições como o Convento de Nossa Senhora da Glória e a Delegacia do Idoso. De certa forma, a Rua da Glória é, atualmente, uma amostra bastante reveladora do muito de ruim que marca diversos logradouros do Recife detentores de casario antigo: em vez de fiação embutida para que se veja com inteireza as fachadas dos imóveis, postes com superabundância de fios; presença maciça de veículos automotivos num espaço tão estreito; construções abandonadas e em ruínas; edificações que perderam o pitoresco de seus desenhos arquitetônicos; e acúmulo de entulhos aqui e ali. 

















Este prédio está há muito tempo abandonado....



Já este outro pode desabar a qualquer momento


Segundo apurou o repórter Marcos Toledo, da Folha de Pernambuco (Marcos Toledo. “Vidas em ruínas”. Recife, Folha de Pernambuco, 1º de agosto de 2017, Cotidiano, p. 1), José de Arimateia Bezerra Luiz, de 43 anos, era epiléptico e casado com Verônica Marta Lídio da Silva, que era nove anos mais velha do que ele. José pagava os R$ 350,00 do aluguel com o benefício que recebia do INSS. Os corpos do casal foram resgatados do meio dos escombros pelos bombeiros na manhã da segunda-feira. José e Verônica morreram talvez vitimados por uma dessas fatalidades que vez ou outra acometem moradores de prédios degradados dos centros das grandes cidades.

Ali, naquela pensão instalada no edifício de nº 366, localizado na Rua da Glória, José de Arimateia e Verônica Marta, coitadinhos, moravam, tudo leva a crer, desprovidos da verdadeira glória da vida, que é poder viver com dignidade.
                                                    

2 comentários:

  1. Infelizmente o caso é irreversível, pobre rua da Glória e suas outras vizinhas !

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  2. É lamentável a memória da cidade sendo aos poucos destruída sob o olhar complacente das autoridades e a convivência da nossa população. Se sai daqui para a Europa para admirar esses prédios e tornar robusto o turismo de lá, enquanto aqui o descaso é total. Com as mesmas oportunidades

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