Por Clênio Sierra de Alcântara
Os pregadores dos discursos
ditos politicamente corretos, uma das pragas do nosso tempo, assim como os
fundamentalistas religiosos, permanecem diuturnamente a espreitar o mundo real
e o virtual a fim de apontar o que eles julgam ser indecente e inadequado,
moralmente repulsivo e abjeto para desancar o infrator e lhe infligir
chibatadas sem sopesar os açoites. Na mesma linha da tutela de um Estado
autoritário, grupos, como o Movimento Brasil Livre (MBL), agem como se todos e
cada um de nós fôssemos desprovidos de um mínimo grau de discernimento e, por
isso, precisássemos ser ensinados: eles têm de dizer o que podemos comer, ler,
vestir e assistir; em quem devemos votar, confiar e acreditar; e estabelecer o que é verdade e o que é
mentira.
Sempre devemos desconfiar dos
arautos das verdades incontestáveis, esses fariseus que gastam sua retórica
verborrágica para justificar suas ações por vezes arbitrárias e retrógradas
dizendo que assim o fazem tão somente pensando no bem comum. Não nos iludamos: proclamar
o bem comum é um dos recursos aos quais recorrem os mandatários dos regimes
autoritários.
Na semana passada os tais
benfeitores da sociedade, dentre os quais religiosos e os que militam no Movimento
Brasil Livre, que ainda não se deram conta da inadequação do termo “livre” em
sua denominação, marcaram mais um ponto na sua marcha em louvor do retrocesso.
Foi em Porto Alegre, mais precisamente na unidade do Santander Cultural da
capital gaúcha, que abrigava a exposição “Queermuseu – Cartografias da
diferença na arte brasileira”. Inconformados e insatisfeitos com algumas das
obras de arte que estavam sendo expostas ali, que, segundo eles, faziam
apologia à pornografia, à pedofilia, à zoofilia e a outras barbaridades, e
desrespeitavam símbolos religiosos, os militantes das causas teleológicas, tais
quais cavaleiros do apocalipse, protestaram veementemente contra a exposição –
inclusive molestando visitantes – e a tal ponto que, lamentavelmente o banco
Santander resolveu encerrá-la muito antes do tempo previsto. Comemorando o
feito o MBL teve o desplante de dizer que o encerramento foi uma “vitória da
pressão popular”.
Compreende-se até certo
ponto a decisão que foi tomada pelo banco tendo em vista os interesses
mercadológicos, uma vez que, talvez, correntistas encampassem a causa do MBL e
abandonassem a instituição como protesto. No entanto, emitir uma nota em que a
certa altura diz que “algumas obras da exposição Queermuseu desrespeitavam
símbolos, crenças e pessoas” é, no mínimo, afirmar que compactua com a mesma
visão apequenada de mundo que têm e/ou tiveram os raivosos militantes do MBL; e
é deixar no ar – e isso é tão grave quanto esse recuo – uma incômoda e
preocupante indagação: será que doravante todas as exposições que o tal espaço
cultural – ou qualquer outro - for abrigar terão de passar não pela avaliação
prévia – destaque-se o termo prévia – de curadores e quetais e, sim, de membros
de grupos como o MBL?
Em sua edição da terça-feira
dia 12 de setembro, o programa Metrópolis, da TV Cultura, pôs a questão absurda
em sua pauta, exibindo algumas das obras que os censores puseram no index prohibitorum, como “Cruzando Jesus
Cristo com Deusa Shiva” (1996), do Fernando Baril, “Travesti da lambada e Deusa
das águas” (2013), de Bia Leite, e “Cenas de interior II” (1994), da Adriana
Varejão, bem como dando voz a pessoas realmente capacitadas e vinculadas ao
mundo das artes, como Tadeu Chiarelli e Emanoel Araújo. E o que se viu, claro, foi
uma reprovação geral ao que ocorreu em Porto Alegre, dada a fúria despropositada
e infame com que a censura lançou suas garras animalescas sobre aquele evento
cultural.
Fazer protestos contra o que
quer que seja é próprio dos regimes reconhecidos como democráticos; e a
liberdade de expressão, até onde se sabe, consta nos fundamentos da Constituição
brasileira – liberdade que não é absoluta, como nenhuma outra o é, diga-se de
passagem. Dito isso, a manifestação promovida entre outros pelo pessoal do MBL,
por mais obscurantista que possa ser considerada por indivíduos realmente
esclarecidos, é legítima sim, porque podemos e temos o direito de dizer o que
nos incomoda, professar nossas crenças e manifestar nossas opiniões a respeito
de quaisquer assuntos, caso assim queiramos. Agora, eu não consigo deixar de
ver o episódio havido em Porto Alegre como um legítimo rompante de estupidez e
ignorância. Ora, é da natureza da arte ser libertária. O fazer artístico é um
exercício de criação que está muito embebido de coragem e de necessidade de se expressar
que pode ter um indivíduo. Muito embora a arte também consiga florescer sob
regimes ditatoriais – mesmo porque é de sua essência mais primeva o se rebelar,
o recalcitrar, o resistir desobedecendo -, é de liberdade que ela
fundamentalmente precisa para se ver inteiramente revelada, porque o fazer
artístico é, por assim dizer, uma causa e uma prática da liberdade.
“Cruzando Jesus Cristo com Deusa Shiva” (1996), do Fernando Baril |
A mobilização do MBL e
quejandos em torno da exposição que ocorria no Santander Cultural de Porto
Alegre fez muita gente pensar se essa “vaga de moralidade” e essa “adequação da
arte ao politicamente correto” fará com que o legado artístico de toda a história
da humanidade precise passar por uma espécie de recall para que se ajuste ao que essas pessoas tão preocupadas com
o bem comum entendem ser o zeigeist,
o espírito desse nosso tempo.
O modo como os integrantes
do MBL e outros tantos trataram a exposição “Queermuseu” fez com que, talvez,
os incautos que pegaram o bonde da história andando, pensassem que o Santander
Cultural estivera até então encobertando uma ação criminosa e não uma exposição
de obras de arte. A exposição não pregava o ódio, não estabelecia e nem impunha
regras de comportamento e crenças. O que o ocorrido deixou patente foi que
indivíduos como esses que cerram fileiras no MBL não toleram de maneira alguma
a diversidade, o debate de ideias e têm uma verdadeira ojeriza à pluralidade de
visão de mundo.
Nunca é demais dizer, mas
como estamos a viver em tempos tão bicudos, nos quais o patrulhamento está em
toda parte, saibam que é de bom tom ler o que está afixado nos quadros de
aviso, nas bulas dos medicamentos e nos manuais de instrução, além, claro, de
verificar a classificação indicativa do filme, da exposição, da peça de teatro,
da palestra, do culto evangélico e do que mais o seja. “Ah, mas na entrada da
exposição do Santander Cultural não havia nenhum aviso desse tipo!”, podem ter
alegado as criaturas das trevas. É uma pena que os seus organizadores tenham
deixado passar algo tão prosaico como esse. Dadas as circunstâncias do momento
creio eu que nunca mais se repetirá uma falha como essa, para que os seres
tenebrosos não se sintam convidados a tomar parte onde a razão intenta lançar sua
luz de esclarecimento.
“Cenas de interior II” (1994), da Adriana Varejão |
Reafirmemos a nossa
disposição de enfrentar o obscurantismo. Eles precisam saber que não adianta
querer e/ou tentar impor amarras e grilhões nas mãos dos artistas, porque cedo
ou tarde esses impedimentos e essas cadeias serão de alguma maneira rompidos.
Parafraseando o renomado
crítico e ensaísta inglês Walter Pater, eu quero finalizar este artigo dizendo
que toda arte aspira continuamente à condição de ser um objeto de reflexão.
(Artigo publicado também in Informa Garanhuns [Garanhuns], nº 12, Opinião p. 2, setembro de 2017).
(Artigo publicado também in Informa Garanhuns [Garanhuns], nº 12, Opinião p. 2, setembro de 2017).
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