23 de setembro de 2017

Arte como prática da liberdade

Por Clênio Sierra de Alcântara


Fotos: divulgação    "Travesti da lambada e Deusa das águas” (2013), de Bia Leite  



Os pregadores dos discursos ditos politicamente corretos, uma das pragas do nosso tempo, assim como os fundamentalistas religiosos, permanecem diuturnamente a espreitar o mundo real e o virtual a fim de apontar o que eles julgam ser indecente e inadequado, moralmente repulsivo e abjeto para desancar o infrator e lhe infligir chibatadas sem sopesar os açoites. Na mesma linha da tutela de um Estado autoritário, grupos, como o Movimento Brasil Livre (MBL), agem como se todos e cada um de nós fôssemos desprovidos de um mínimo grau de discernimento e, por isso, precisássemos ser ensinados: eles têm de dizer o que podemos comer, ler, vestir e assistir; em quem devemos votar, confiar e acreditar;  e estabelecer o que é verdade e o que é mentira.

Sempre devemos desconfiar dos arautos das verdades incontestáveis, esses fariseus que gastam sua retórica verborrágica para justificar suas ações por vezes arbitrárias e retrógradas dizendo que assim o fazem tão somente pensando no bem comum. Não nos iludamos: proclamar o bem comum é um dos recursos aos quais recorrem os mandatários dos regimes autoritários.

Na semana passada os tais benfeitores da sociedade, dentre os quais religiosos e os que militam no Movimento Brasil Livre, que ainda não se deram conta da inadequação do termo “livre” em sua denominação, marcaram mais um ponto na sua marcha em louvor do retrocesso. Foi em Porto Alegre, mais precisamente na unidade do Santander Cultural da capital gaúcha, que abrigava a exposição “Queermuseu – Cartografias da diferença na arte brasileira”. Inconformados e insatisfeitos com algumas das obras de arte que estavam sendo expostas ali, que, segundo eles, faziam apologia à pornografia, à pedofilia, à zoofilia e a outras barbaridades, e desrespeitavam símbolos religiosos, os militantes das causas teleológicas, tais quais cavaleiros do apocalipse, protestaram veementemente contra a exposição – inclusive molestando visitantes – e a tal ponto que, lamentavelmente o banco Santander resolveu encerrá-la muito antes do tempo previsto. Comemorando o feito o MBL teve o desplante de dizer que o encerramento foi uma “vitória da pressão popular”.

Compreende-se até certo ponto a decisão que foi tomada pelo banco tendo em vista os interesses mercadológicos, uma vez que, talvez, correntistas encampassem a causa do MBL e abandonassem a instituição como protesto. No entanto, emitir uma nota em que a certa altura diz que “algumas obras da exposição Queermuseu desrespeitavam símbolos, crenças e pessoas” é, no mínimo, afirmar que compactua com a mesma visão apequenada de mundo que têm e/ou tiveram os raivosos militantes do MBL; e é deixar no ar – e isso é tão grave quanto esse recuo – uma incômoda e preocupante indagação: será que doravante todas as exposições que o tal espaço cultural – ou qualquer outro - for abrigar terão de passar não pela avaliação prévia – destaque-se o termo prévia – de curadores e quetais e, sim, de membros de grupos como o MBL?

Em sua edição da terça-feira dia 12 de setembro, o programa Metrópolis, da TV Cultura, pôs a questão absurda em sua pauta, exibindo algumas das obras que os censores puseram no index prohibitorum, como “Cruzando Jesus Cristo com Deusa Shiva” (1996), do Fernando Baril, “Travesti da lambada e Deusa das águas” (2013), de Bia Leite, e “Cenas de interior II” (1994), da Adriana Varejão, bem como dando voz a pessoas realmente capacitadas e vinculadas ao mundo das artes, como Tadeu Chiarelli e Emanoel Araújo. E o que se viu, claro, foi uma reprovação geral ao que ocorreu em Porto Alegre, dada a fúria despropositada e infame com que a censura lançou suas garras animalescas sobre aquele evento cultural.


Fazer protestos contra o que quer que seja é próprio dos regimes reconhecidos como democráticos; e a liberdade de expressão, até onde se sabe, consta nos fundamentos da Constituição brasileira – liberdade que não é absoluta, como nenhuma outra o é, diga-se de passagem. Dito isso, a manifestação promovida entre outros pelo pessoal do MBL, por mais obscurantista que possa ser considerada por indivíduos realmente esclarecidos, é legítima sim, porque podemos e temos o direito de dizer o que nos incomoda, professar nossas crenças e manifestar nossas opiniões a respeito de quaisquer assuntos, caso assim queiramos. Agora, eu não consigo deixar de ver o episódio havido em Porto Alegre como um legítimo rompante de estupidez e ignorância. Ora, é da natureza da arte ser libertária. O fazer artístico é um exercício de criação que está muito embebido de coragem e de necessidade de se expressar que pode ter um indivíduo. Muito embora a arte também consiga florescer sob regimes ditatoriais – mesmo porque é de sua essência mais primeva o se rebelar, o recalcitrar, o resistir desobedecendo -, é de liberdade que ela fundamentalmente precisa para se ver inteiramente revelada, porque o fazer artístico é, por assim dizer, uma causa e uma prática da liberdade.

“Cruzando Jesus Cristo com Deusa Shiva” (1996), do Fernando Baril

A mobilização do MBL e quejandos em torno da exposição que ocorria no Santander Cultural de Porto Alegre fez muita gente pensar se essa “vaga de moralidade” e essa “adequação da arte ao politicamente correto” fará com que o legado artístico de toda a história da humanidade precise passar por uma espécie de recall para que se ajuste ao que essas pessoas tão preocupadas com o bem comum entendem ser o zeigeist, o espírito desse nosso tempo.

O modo como os integrantes do MBL e outros tantos trataram a exposição “Queermuseu” fez com que, talvez, os incautos que pegaram o bonde da história andando, pensassem que o Santander Cultural estivera até então encobertando uma ação criminosa e não uma exposição de obras de arte. A exposição não pregava o ódio, não estabelecia e nem impunha regras de comportamento e crenças. O que o ocorrido deixou patente foi que indivíduos como esses que cerram fileiras no MBL não toleram de maneira alguma a diversidade, o debate de ideias e têm uma verdadeira ojeriza à pluralidade de visão de mundo.

Nunca é demais dizer, mas como estamos a viver em tempos tão bicudos, nos quais o patrulhamento está em toda parte, saibam que é de bom tom ler o que está afixado nos quadros de aviso, nas bulas dos medicamentos e nos manuais de instrução, além, claro, de verificar a classificação indicativa do filme, da exposição, da peça de teatro, da palestra, do culto evangélico e do que mais o seja. “Ah, mas na entrada da exposição do Santander Cultural não havia nenhum aviso desse tipo!”, podem ter alegado as criaturas das trevas. É uma pena que os seus organizadores tenham deixado passar algo tão prosaico como esse. Dadas as circunstâncias do momento creio eu que nunca mais se repetirá uma falha como essa, para que os seres tenebrosos não se sintam convidados a tomar parte onde a razão intenta lançar sua luz de esclarecimento.


“Cenas de interior II” (1994), da Adriana Varejão


Reafirmemos a nossa disposição de enfrentar o obscurantismo. Eles precisam saber que não adianta querer e/ou tentar impor amarras e grilhões nas mãos dos artistas, porque cedo ou tarde esses impedimentos e essas cadeias serão de alguma maneira rompidos.


Parafraseando o renomado crítico e ensaísta inglês Walter Pater, eu quero finalizar este artigo dizendo que toda arte aspira continuamente à condição de ser um objeto de reflexão.


(Artigo publicado também in Informa Garanhuns [Garanhuns], nº 12, Opinião p. 2, setembro de 2017).

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