5 de janeiro de 2019

A vida não é uma virada de folhinha do calendário


Por Clênio Sierra de Alcântara

Imagem: Internet
Não voltamos ao começo do caminho. Nós seguimos caminhando

Na noite da última da última segunda-feira, após o jantar e antes de eu seguir para a Praia de Jaguaribe, na ilha onde moro, para acompanhar a virada do ano, eu sentei para assistir ao dvd Não se apague esta noite, do Flavio Venturini, um regalo que eu me dera na sexta-feira da semana passada. No repertório da apresentação desse cantor mineiro que eu tanto admiro uma canção em particular parecia ser bem apropriada para aquele momento em que o calendário estava prestes a ser renovado e reiniciar a contagem de um novo ano.

Trata-se da canção “Recomeçar”, uma composição de autoria do próprio Flavio com um dos seus parceiros mais constante, Ronaldo Bastos. Lirismo que transborda de tanta, por assim dizer, pieguice, os versos do Ronaldo seguem neste tom: “Recomeçar/Pintar de outra cor/Acreditar/Que a luz que deu a luz ao universo/Conspira a seu favor”. Faz rimas com Rimbaud e Truffaut. Até findar na meiguice de “Meu tempo bom de viver por viver/Ficou melhor porque tem você/Tem você”.

Tempo houve em que eu me deixava levar por essa coisa que vejo hoje como tão tola, de recomeçar a caminhada por causa da mudança da folha do calendário. Mais do que como pura e simples tolice, a mim me soa como um enorme autoengano. Como alguém pode pensar que vai recomeçar a vida porque “amanhã” se inicia um novo ano? Por que se entregar à crença de que tudo foi zerado e vai se começar mais uma vez?

Otimismo, perseverança, determinação, confiança no futuro... Tudo isso me faz pensar que a vida é um desafio permanente e que, justamente por essa razão, não podemos fraquejar. Agora daí a se prender a um pensamento mágico de que o dia de amanhã necessariamente será melhor do que hoje por si só, como se o porvir fosse sinônimo de mudança sempre para melhor, é se apegar de modo um tanto quanto ingênuo e eu diria que até irresponsável frente às vicissitudes. Essa coisa de futuro cor de rosa cai muitíssimo bem em certo tipo de poesia, mas a vida real não é assim rósea e nem leve: é multicor; e bastante pesada. E a clareza de entendimento nos ajuda a pôr os pés bem firmes no chão e a caminhar com a devida cautela enxergando no adiante, prazeres, obstáculos, alegrias e tristezas, pois bem sabem o que sabem da realidade, que o caminho da vida é marcado por tudo isso em doses por vezes mínimas e em doses por vezes cavalares. E nem se trata de ser pessimista, não, porque eu me esforço diuturnamente para afastar de mim o pessimismo e a tristeza para que eles não me abatam. Trata-se de encarar a vida sem filtros, enxergando-a e/ou tentando enxergá-la com a maior limpidez possível.

Será que a vida teria realmente a grandeza que tem se só existissem a alegria, a satisfação e o prazer? Creio que não. E se assim o fosse, acredito, seríamos completamente indiferentes para com o outro, porque nada saberíamos de dor, de sofrimento, de perda, de frustração, de desencontro, de abandono, de inadequação, enfim, nada saberíamos de tudo isso que nos acomete, revelando nossa fragilidade; e que nos faz perceber diferentes matizes e nuances do viver; e que por vezes nos impulsiona a querer ajudar o outro, estendendo a ele a nossa mão, nos proporciona a oportunidade de sermos solidários e até de alguma maneira nos transformar para melhor como pessoas.

Não entro mais nessa de enxergar a vida como se para mudá-la eu devesse simplesmente virar e/ou arrancar a folhinha do calendário. O verbo para mim não é recomeçar e sim continuar. Vou dar continuidade às minhas leituras, aos meus escritos, à minha vontade de saber, aos cuidados com o meu corpo, às tarefas do trabalho que paga as minhas contas, às minhas viagens, aos relacionamentos que permanecerem valendo a pena e à atenção que a minha mãe e o meu irmão merecem. E, afora isso, eu vou pôr fim, claro, a tudo aquilo que o transcurso do tempo me fez ver que a mim estava sendo muito daninho.

Não voltamos ao começo do caminho. Nós seguimos caminhando.

Nenhum comentário:

Postar um comentário