19 de janeiro de 2019

O potente canto da sereia negra Lia ecoou para muito além da Ilha de Itamaracá

Por Clênio Sierra de Alcântara

Ela mora no mar
Ela cirandeia na areia
No balanço da ciranda
A resistência da cultura popular ela semeia.

Foto: Ytallo Barreto
Encontro de gigantes nos domínios da rainha Lia de Itamaracá

Diz uma máxima muitíssimo conhecida que “quem viver, verá”. E quem estava bem vivo, viu quão grandiosa, animada e agregadora de uma multidão foi a festa que aconteceu na Ilha de Itamaracá, no sábado passado, organizada para celebrar os 75 anos de vida de sua filha famosa, famosérrima, a rainha da ciranda e Patrimônio Vivo de Pernambuco, Lia de Itamaracá.

O dia amanhecera chuvoso; e parecia até que a chuva iria estragar a extensa programação dos festejos. Mas que nada, como diria Jorge Benjor; a chuva viera só para lavar a alma da gente de pouca fé que não acreditava que uma festa com uma dimensão daquela poderia ganhar corpo lá na ilha sem contar com um centavo sequer do poder público. “Mas que nada, sai da minha frente que eu quero passar, a ciranda está animada e eu quero é cirandar”, poderia ter dito Lia nas inúmeras entrevistas que concedeu para jornais, rádio e tevês.

E lá estava negona firme e forte, altiva, soberana e com um brilho radiante nos olhos à frente do cortejo que contou com passistas de frevo e alegorias do Galo da Madrugada, do Homem da Meia Noite e do Minhocão, e que saiu à tardinha da Praça José Mário Cordeiro Galvão, em Jaguaribe, e seguiu em direção ao palhoção do ainda inacabado Centro Cultural Estrela de Lia, abrindo os trabalhos do proclamado O canto da sereia – Um grito de resistência.

Que a rainha Lia tem muitos súditos quem estava ali e mesmo quem viu em imagens fotográficas e em vídeos não pôde negar. Fora dada a largada para o início de uma Virada Cultural como nunca se vira naquele lugar. Parecia até que o Carnaval na ilha fora antecipado. A alegria tomou conta do pedaço. Do meu cantinho eu fui seguindo o cortejo, acompanhando os sorrisos, os acenos, as filmagens e as fotografias que as pessoas faziam. Voleide Medeiros gritou da porta de sua casa: “Lia!”. Foi lindo, sabe? Lindo e inesquecível tudo o que se via naquela rua. E se alguém viesse até a mim naquele instante e me perguntasse: “E Lia merece uma festa de uma magnitude como esta?”, sem hesitar e cheio de mim, por ter tido o privilégio de estar ali, eu diria como estou dizendo agora: “Por ser quem é, por bem representar diferentes segmentos da sociedade, por toda a força e resistência para superar tantas adversidades e por seu talento, Lia de Itamaracá merece tudo do bom e do melhor”.

Quando chegou ao palco, Sua Majestade não deixou os ânimos esfriarem e botou logo aquele povo todo para dançar. E dali em diante, ora no palco principal, ora no terreiro diante do Som na Rural, artistas, amigos, admiradores e apoiadores da resistência e existência digna da cultura, em geral, e da cultura popular, em particular, porque ela é geralmente desvalorizada e/ou subvalorizada neste país, se revezaram em apresentações e mostraram ao púbico que foi prestigiar o evento, que uma ciranda não se dança sozinho, que o dar as mãos uns aos outros não é apenas um gesto de comunhão e de solidariedade, é de crença, também, na sobrevivência e permanência de um propósito que, neste caso, é legítimo e merecedor de valorização e de reconhecimento.

Dudinha Azevedo e Albino da Ilha comandaram, na locução, a chamada dos artistas: ele no palco e ela no terreiro, num ping-pong bem animado e descontraído.

E não faltaram diversidade e talentos para abrilhantar a festa em homenagem à Lia de Itamaracá: Lucas dos Prazeres, com sua energia contagiante; o grupo Nossa Cultura Tem Som dando o recado de que o futuro da cena musical na ilha está garantido; Viola Luz dizendo e cantando a poesia melodiosa de Erasto Vasconcelos; Dona Glorinha do Coco esbanjando vitalidade aos 84 anos  - Dona Glorinha, como a senhora me revigora e me emociona!  -; o Cassino Tropical trazendo para os dias de hoje as chamadas “músicas das antigas” – meus caros, para mim Diana é cool e acabou-se -; Vitor Trindade e integrantes do Teatro Popular Solano Trindade encheram o palco de lirismo; a banda Caboclo Mestiço, uma gente arretada que é uma dessas coisas que fazem de Pernambuco um dos principais celeiros de boa música do país – meninos, vocês são demais! -; o reggae maneiro do grupo Bantus; e a simbiose perfeita dessa coisa linda e elétrica chamada Daúde com a aparelhagem do DJ Dolores. O que dizer? Foi massa, massa, massa, não foi, Chicó da Burra?

Perto da meia-noite Lia de Itamaracá, a dona da festa, e o seu conjunto retornaram ao palco. E rodas de ciranda novamente tomaram conta da área do palhoção. Foi surreal presenciar aquela multidão na boca da madrugada cirandando como se a festa tivesse acabado de começar. Foi demais. Em uníssono cantamos “Parabéns a você” para a aniversariante. E Lia perguntou: “Cadê a faca para cortar o bolo?”. Sara da Ilha correu até a banca da baiana Neide do Acarajé e pegou uma. O bolo estava, além de bonito, delicioso.

E pensam que a festa acabou? A boate Metrópole, do Recife, escalou os DJ’s Pax e Liukee para comandar o som até às seis horas da manhã do domingo. Duas horas depois as atividades no palhoção recomeçaram, tendo havido uma palestra ministrada por alunos da Escola Estadual Alberto Augusto de Morais Pradines, sob a orientação da professora Maria Ivo, que abordou os temas robótica e cuidado com o meio ambiente, nos lembrando que a alta tecnologia e o progresso podem sim ser conciliados com a preservação dos recursos naturais. E, à tarde, retomando a programação do evento, houve ainda uma oficina de percussão com um dos talentosos músicos do conjunto de Lia, Tony Boy; a apresentação da banda jovem Energia Alternativa; um número de acrobacia da graciosa Amália Assis, da Trupe Carcará; e o encerramento ficou por conta de um inspirador e motivador Concurs Miss Terceira Idade comandado por Márcio Mendes, o esfuziante vocalista do Trio Los Angeles.

Presente também no segundo dia de festa, Lia de Itamaracá exibia em seu semblante um misto de satisfação e de cansaço. E não era para menos, afinal, havia pelo menos uma semana que a negona estivera em idas e vindas ao Recife para atender compromissos profissionais, além de participar de filmagens na própria ilha. Quem manda ser famosa e muito querida, né, Lia?!


Por trás do glamour

Depois que vimos o glamour, agora passemos para o outro lado da história, para os bastidores da festa, para o making of, para o como tudo foi feito.

Eu não trabalhei na organização do evento, mas estive em alguns momentos por trás das “cortinas” e pude acompanhar o esforço tremendo de quem pegou no pesado para fazer a festa acontecer. Não sei se O canto da sereia – Um grito de resistência foi um sucesso de crítica, porém, de público eu lhes garanto sem sombra de dúvida que foi.

Até as conchas do mar e as palhas dos coqueiros da praia de Jaguaribe sabem que mesmo na ilha onde nasceu e mora e de onde se revelou como artista valorosa para o mundo, a cirandeira Lia de Itamaracá não é uma unanimidade. E seria uma tolice acreditar que o fosse: como certa vez disse outro pernambucano de 18 quilates, o admirado e prestigiado dramaturgo e escritor Nelson Rodrigues, “toda unanimidade é burra”. E Beto Hees, mais do que ninguém que está perto de Lia sabe bem disso, porque trabalha – e trabalha duro, gente, eu sei disso, porque compartilho sua luta diária a fim de manter a estrela de sua artista sempre brilhando ainda que uns e outros se esforcem em movimento contrário – há mais de vinte anos como produtor dela.

Não foi nada fácil conseguir realizar algo do porte d’O canto da sereia. Nem tudo saiu como fora planejado; a bem da verdade, algumas poucas coisas que constavam na programação não ocorreram, como o café da manhã que seria servido ao público no domingo e a mobilização de limpeza praia; decerto que o bingo que houve em dado momento de uma pausa entre as apresentações musicais poderia ter angariado mais prêmios e participação das pessoas que foram à festa; e deficiências pontuais que se tentou corrigir quando o evento já estava em andamento, como a iluminação do camarim e a colocação de luzes no entorno do palhoção, não foram falhas da produção e, sim, decorrentes de parcerias que foram firmadas e que, em parte, não aconteceram. Ora, se eu vou atrás de conseguir que fulano me patrocine com um palco e digo a ele que não tenho dinheiro para pagar o transporte desse palco, eu espero que ele faça a entrega. Outro exemplo: se o cara diz que vai mandar alguém fazer o serviço de terraplanagem e o sujeito vai lá e não realiza a tarefa a contento, é claro que o negócio não fica bem feito. Enfim, a coisa foi por aí.

Embora não sejam uma unanimidade, a cirandeira Lia de Itamaracá e o seu produtor Beto Hees gozam de algum prestígio. Todos os artistas que se apresentaram na festa não receberam cachê, mas, claro, a produção teve de arcar com a hospedagem e a alimentação deles. Muitas contas ainda precisam ser pagas; e não só de fornecedores, como também de pessoas que trabalharam no evento.

Na busca por apoio e patrocínio Beto Hees contou com o empenho e o desembaraço do sempre diligente e prestimoso casal Sara da Ilha e Sol Esoje. E apoios vieram de vários lugares: da Itamaracá Transportes, na pessoa de Amélia Bezerra; da fábrica Pitú; da empresária Maria do Céu, da boate Metrópole; do ex-vereador da ilha Sargento Edson; do ex-prefeito de Itapissuma Cal Volia; da fábrica Jeep; de Roger de Renor e Newton Pereira, do Som na Rural; das pousadas Ruínas do Pilar e Ciranda da Ilha; dos Chalés Bela Vista; da Quitanda de Luciano; do Armazém Jaguaribe; de Emerson Divulgações; de Silvia Construções; do Bar O Bem Amado; do Mercadinho Pechincha; do Bar do Dragão; do Bar da Claudete; do Bar da Rosa; e de Vivi Terraplanagem. Sem contar os préstimos dos estagiários do Centro Cultural Estrela de Lia Sandro Ramos, Maria Mayara e Luís Cláudio; o empenho incansável de gente da própria produção da cirandeira, como Marcos Paulo, Nelson Luiz (Babá) e Lucas Victor; além de Jane Travassos, que varou a madrugada da sexta-feira para o sábado a fim de aprontar o vestido de festa da aniversariante.

Como vimos, não foram poucos os apoios e as colaborações para que O canto da sereia saísse do papel e se tornasse uma realidade. Se a cultura popular não é objeto de uma efetiva política de Estado neste país e se muitas – a maioria, talvez – das pessoas que ocupam cargos públicos de mando nestas plagas geralmente se comportam não como administradoras e sim como donas dos bens que são de toda a sociedade e agem com mesquinharias, descasos e vingancinhas cobrando “fidelidade partidária” a artistas que não têm partido político nenhum, esquecendo elas que seus mandatos uma hora acabam e os artistas permanecerão com suas carreiras, muita gente boa da Ilha de Itamaracá e também de fora apoiou e acreditou na causa; e contribuiu para que a festa dos 75 anos de Lia acontecesse e fosse o sucesso estrondoso que foi. Lá pelas tantas Beto Hees empunhou o microfone e não se esqueceu de agradecer a todo esse pessoal; e, generoso como sempre, lembrou até de louvar a Prefeitura Municipal da Ilha de Itamaracá por ela ter mandado recolher a montanha de lixo que se acumulara por dias a fio defronte ao Centro Cultural Estrela de Lia, única “contribuição” que a gestão municipal quis e/ou pôde dar para a festa. Como diz outra máxima também bastante conhecida, “cada um dá o que tem”.

Pensado em parte como um manifesto contra a paralisação das obras do Centro Cultural Estrela de Lia e toda essa política que busca apequenar os artistas da cultura popular pagando a eles, por exemplo, cachês irrisórios, O canto da sereia – Um grito de resistência revelou-se um verdadeiro marco nas manifestações culturais até hoje havidas na Ilha de Itamaracá, consagrando e exaltando não somente a pessoa de Lia de Itamaracá e de Beto Hees, mas também de todos os outros artistas, produtores, fazedores de cultura, empresários e pequenos comerciantes que se empenharam de alguma maneira para que tudo desse certo.

Segue a ciranda!

Na mitologia grega ou pelo menos na longa tradição oral que os estudiosos dizem ter Homero compilado em sua Odisseia, as sereias são mulheres-aves mágicas que com seus cantos atraem os navegantes para a perdição e a morte. Em Pernambuco, mais precisamente na beira-mar da ensolarada Ilha de Itamaracá, a sereia é um colosso de mulher negra nascida Maria Madalena Correia do Nascimento que a tradição local coroou como Lia de Itamaracá, a rainha da ciranda; uma senhora que com muita garra, força e determinação conduz o seu canto e a sua dança para unir as pessoas, espalhar alegria e celebrar a paz e a vida na comunhão das mãos que se encontram para fazer a ciranda rodar.

Vida longa à rainha Lia de Itamaracá!

3 comentários:

  1. Boa noite...sua escritura são maguiníficas com todos os detalhes domonstrados ao seu ponto de vista manifestam a vontade de querer aprender cada vez mais.

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  2. Rapaz! Foi bom demais esta festa.
    Viemos de longe pra participr e se puder noix volta amanhan! Obrigado nosso ao Beto Hees pelo convite e a Dona Lia pela recepção. Ficamos bem hospedados, bem comidos, bem trasladados e tocamos com carinho e amor que dona Lia merece. Só fiquei triste porque comprei só dois doces de jaca na estrada. Deveria ter comprado uns dez...Pobre desavisado! Axé odara Família Itamaracá! Adupé!!!!

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  3. Apesar de todos os desafios como : falta de incentivos a cultura, pagamentos atrasados, apoio de empresários e outros. Todavia, as homenagens feitas a esta mulher, é certamente a consagração da ciranda, icone da cultura de Pernambuco, mas precisamente da cidade de Itamaracá, e repito, foi mais que merecido. Ratifico as palavras do autor, que diante de tantas pessoas envolvidas para que o evento acontecesse, até a chuva deu espaço ao sol, que conduziram centenas de pessoas as ruas, em um grande cortejo da celebração a estrela Lia. Salve lia de Itamaracá. Nã poderia de deixar de parabenizar o brilhante texto ,que como sempre carregados de detalhes, do escritor Clenio Sierra de Alcantara...

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