Por Sierra
Sair de férias e viajar não
significam, para mim, um afastamento por completo de afazeres cotidianos. Eu posso
ficar sem malhar e sem ir a uma academia de musculação, mas sem ler eu não
fico. Eu posso dormir mal nos hotéis, mas sem ler eu não fico. Eu posso ficar,
por razão das ofertas, sem conseguir manter minha dieta 100% regrada, mas sem
ler eu não fico. Eu posso bater perna como um peregrino, mas sem ler eu não
fico. Eu posso me entregar a várias distrações durante as viagens, mas sem ler
eu não fico.
Não há viagem que eu faça
que eu deixe de levar livros comigo, como também não é raro que eu compre
livros por onde viaje. A leitura é inegociável para mim. É um hábito. É um
exercício. É uma necessidade. É uma procura constante. É um compreender-se. É um
dizer: eu preciso muito, muito disso.
Não sei se alguém que lê
cotidianamente consegue explicar por que ler para além do que pode ser uma
necessidade de trabalho. Digo isso porque existem pessoas que têm de ler porque
a ocupação que elas exercem exige isso. Eu falo de quem lê por prazer e como
necessidade existencial, como quem diz que não viveria sem o ter o que ler. Será
que dá para esclarecer isso? Bom, pode-se tentar; porém, eu acredito que toda
explicação será mera tentativa de fundamentar algo que é por demais pessoal
como, por exemplo, dizer por que gosta de alguém.
A prática da leitura, o
hábito da leitura, o exercício da leitura desenvolve em muitas pessoas não só
uma disciplina visando a tal propósito como também certos rituais. Sim, há
leitores que desenvolvem rituais em torno do hábito da leitura. Tem gente que
só lê pela manhã. Outros que reservam um tempo antes de dormir, à noite, para
isso. Enquanto que existem outros que leem a qualquer hora e em qualquer lugar,
bastando somente que tenham um tempinho para isso. Para esses, a leitura é algo
muito atrativo, como um ímã que atrai poderosamente o pensamento, ocupando
quase todos os espaços do intelecto. Que eu me recorde, eu até agora só não li
em velório, mas em hospital, em ônibus, em avião, em embarcação, em trem, em
sala de espera de dentista, em banco de praça, em quarto de hotel, em fila de
banco, em corredor de shopping, em biblioteca, em centro cultural... É uma necessidade
que não pode ser de maneira alguma ignorada, como a sede e a fome.
Dias atrás, trocando
figurinhas com um “leitor” deste meu blog, eu comentei que, dada a impaciência,
a falta de hábito e a força também poderosa do desinteresse, são poucos os que
têm fôlego, paciência e, claro, interesse para ler textos que contenham mais de
meia dúzia de linhas; e, por isso, muitos desses supostos “leitores” do mundo
digital não raro se atêm a somente três pontos das narrativas: 1º) o título,
ainda mais se o título for ambíguo, abusado, irônico, provocativo e/ou
engraçado; 2º) as imagens, principalmente se elas tiverem passado por algum
tipo de manipulação que as tornem algo para além do real; e 3º) as legendas
dessas imagens, quando elas trazem como que “resumos” do que está dito na
narrativa. Sem qualquer constrangimento e sem provocar em mim qualquer surpresa,
o tal “leitor” do meu blog disse que normalmente só observa mesmo esses três
pontos que eu elenquei aqui.
A prática, o hábito e o
exercício da leitura não são efetivamente fáceis de ser encontrados por aí. Há leitores
e leitores. E, leitores de fato, não abrem mão de modo algum da leitura, porque
ela é como que parte intrínseca das suas vidas; porque é a leitura que os
mantém em conexão realmente profunda com o mundo, em geral, e com o mundo das
ideias, em particular. E, quando se está disposto a buscar compreender,
decifrar, interpretar e mirar com acuidade o mundo, a prática, o hábito e o
exercício da leitura compõem o arsenal de ferramentas mais apropriado para
isso, porque livros que fundamentam o ser e o estar no mundo são os grandes
repositórios de conhecimento que a humanidade acumulou ao longo dos tempos,
desde aquelas tabuletas de argila com a escrita cuneiforme dos sumérios.
Como eu disse, existem
leitores e leitores. E eu tive o grande, o imenso privilégio de ter convivido
com o leitor mais dedicado, com o leitor mais disciplinado, com o leitor mais
criterioso e com o leitor mais apaixonado e admirador dos livros que eu até
hoje conheci: o bibliotecário, o professor, o escritor, o amante da poesia
bandeiriana, o gilbertólogo, o formador de bibliotecários e bibliotecas, o
maravilhoso e inesquecível Edson Nery da Fonseca. Quando não estava recebendo
visitas e/ou concedendo entrevistas, o erudito Edson estava lendo. Quando não
estava assistindo à sua missa, o gigante Edson estava lendo. Quando não esta
recebendo cuidados médicos nem fazendo exercícios fisioterápicos e nem comendo,
o incansável Edson estava lendo e empunhando também uma caneta esferográfica ou
um marcador de texto com os quais ele costumava grafar e anotar trechos dos
quais ele gostava e falhas e incorreções que o autor e o revisor deixaram
passar. E aquela paz em que Edson Nery da Fonseca mergulhava na leitura
mantinha serena aquela casa onde soprava a brisa marinha que entrava pela porta,
onde os gatos tantos faziam estripulias a valer e o sino do Mosteiro de São
Bento vez e outra quebrava o silêncio das horas de regozijo naquela que era
verdadeiramente uma morada do saber que engrandecia ainda mais a maternal
Olinda.
Existo, logo leio, logo
penso e reexisto.
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