24 de dezembro de 2022

A propósito de leitura e de livros

 Por Sierra


Foto: Arquivo do Autor À beira-mar da praia de Ponta Negra, em Natal, curtindo dias de férias e lendo o meu Arnold Hauser. Maria farinha, que não é besta nem nada apareceu para dar uma espiadinha. Pense numa bichinha curiosa
 

Sair de férias e viajar não significam, para mim, um afastamento por completo de afazeres cotidianos. Eu posso ficar sem malhar e sem ir a uma academia de musculação, mas sem ler eu não fico. Eu posso dormir mal nos hotéis, mas sem ler eu não fico. Eu posso ficar, por razão das ofertas, sem conseguir manter minha dieta 100% regrada, mas sem ler eu não fico. Eu posso bater perna como um peregrino, mas sem ler eu não fico. Eu posso me entregar a várias distrações durante as viagens, mas sem ler eu não fico.

Não há viagem que eu faça que eu deixe de levar livros comigo, como também não é raro que eu compre livros por onde viaje. A leitura é inegociável para mim. É um hábito. É um exercício. É uma necessidade. É uma procura constante. É um compreender-se. É um dizer: eu preciso muito, muito disso.

Não sei se alguém que lê cotidianamente consegue explicar por que ler para além do que pode ser uma necessidade de trabalho. Digo isso porque existem pessoas que têm de ler porque a ocupação que elas exercem exige isso. Eu falo de quem lê por prazer e como necessidade existencial, como quem diz que não viveria sem o ter o que ler. Será que dá para esclarecer isso? Bom, pode-se tentar; porém, eu acredito que toda explicação será mera tentativa de fundamentar algo que é por demais pessoal como, por exemplo, dizer por que gosta de alguém.

A prática da leitura, o hábito da leitura, o exercício da leitura desenvolve em muitas pessoas não só uma disciplina visando a tal propósito como também certos rituais. Sim, há leitores que desenvolvem rituais em torno do hábito da leitura. Tem gente que só lê pela manhã. Outros que reservam um tempo antes de dormir, à noite, para isso. Enquanto que existem outros que leem a qualquer hora e em qualquer lugar, bastando somente que tenham um tempinho para isso. Para esses, a leitura é algo muito atrativo, como um ímã que atrai poderosamente o pensamento, ocupando quase todos os espaços do intelecto. Que eu me recorde, eu até agora só não li em velório, mas em hospital, em ônibus, em avião, em embarcação, em trem, em sala de espera de dentista, em banco de praça, em quarto de hotel, em fila de banco, em corredor de shopping, em biblioteca, em centro cultural... É uma necessidade que não pode ser de maneira alguma ignorada, como a sede e a fome.

Dias atrás, trocando figurinhas com um “leitor” deste meu blog, eu comentei que, dada a impaciência, a falta de hábito e a força também poderosa do desinteresse, são poucos os que têm fôlego, paciência e, claro, interesse para ler textos que contenham mais de meia dúzia de linhas; e, por isso, muitos desses supostos “leitores” do mundo digital não raro se atêm a somente três pontos das narrativas: 1º) o título, ainda mais se o título for ambíguo, abusado, irônico, provocativo e/ou engraçado; 2º) as imagens, principalmente se elas tiverem passado por algum tipo de manipulação que as tornem algo para além do real; e 3º) as legendas dessas imagens, quando elas trazem como que “resumos” do que está dito na narrativa. Sem qualquer constrangimento e sem provocar em mim qualquer surpresa, o tal “leitor” do meu blog disse que normalmente só observa mesmo esses três pontos que eu elenquei aqui.

A prática, o hábito e o exercício da leitura não são efetivamente fáceis de ser encontrados por aí. Há leitores e leitores. E, leitores de fato, não abrem mão de modo algum da leitura, porque ela é como que parte intrínseca das suas vidas; porque é a leitura que os mantém em conexão realmente profunda com o mundo, em geral, e com o mundo das ideias, em particular. E, quando se está disposto a buscar compreender, decifrar, interpretar e mirar com acuidade o mundo, a prática, o hábito e o exercício da leitura compõem o arsenal de ferramentas mais apropriado para isso, porque livros que fundamentam o ser e o estar no mundo são os grandes repositórios de conhecimento que a humanidade acumulou ao longo dos tempos, desde aquelas tabuletas de argila com a escrita cuneiforme dos sumérios.

Como eu disse, existem leitores e leitores. E eu tive o grande, o imenso privilégio de ter convivido com o leitor mais dedicado, com o leitor mais disciplinado, com o leitor mais criterioso e com o leitor mais apaixonado e admirador dos livros que eu até hoje conheci: o bibliotecário, o professor, o escritor, o amante da poesia bandeiriana, o gilbertólogo, o formador de bibliotecários e bibliotecas, o maravilhoso e inesquecível Edson Nery da Fonseca. Quando não estava recebendo visitas e/ou concedendo entrevistas, o erudito Edson estava lendo. Quando não estava assistindo à sua missa, o gigante Edson estava lendo. Quando não esta recebendo cuidados médicos nem fazendo exercícios fisioterápicos e nem comendo, o incansável Edson estava lendo e empunhando também uma caneta esferográfica ou um marcador de texto com os quais ele costumava grafar e anotar trechos dos quais ele gostava e falhas e incorreções que o autor e o revisor deixaram passar. E aquela paz em que Edson Nery da Fonseca mergulhava na leitura mantinha serena aquela casa onde soprava a brisa marinha que entrava pela porta, onde os gatos tantos faziam estripulias a valer e o sino do Mosteiro de São Bento vez e outra quebrava o silêncio das horas de regozijo naquela que era verdadeiramente uma morada do saber que engrandecia ainda mais a maternal Olinda.

Existo, logo leio, logo penso e reexisto.

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