27 de janeiro de 2024

Crítica, autocrítica e pressão algorítmica: Manu Gavassi e a afirmação do eu como bússola e medida do fazer artístico

 Por Sierra


Imagem: Divulgação
Espécie de manifesto estético, Programa de Proteção à Carreira Artística é um tapa na cara de muita gente por aí que se apresenta como artista - e não só no cenário musical



Não é sempre. Na verdade, são poucas as vezes em que o algoritmo da internet encaminha para mim algo que realmente me interessa. A coisa funciona mais ou menos assim: você fez uma busca no YouTube, por exemplo, de uma música ou de um canal do qual ouviu falar; a partir disso, o sistema entende e/ou supõe que você ficou permanentemente interessado naquilo e lhe enviará diariamente um vídeo do dito canal ou outra música do mesmo artista que você buscara. É uma importunação isso. Mas, como eu disse, às vezes o sistema acerta: o fundamento dele é justamente esse: insistir, insistir até que você aceite alguma coisa dentre as tantas que ele recomendou e enviou para você.

No mês passado o YouTube me encaminhou um vídeo, um vídeo que eu considerei ser um curta-metragem. Tratou-se do incisivo e muito pertinente Programa de Proteção à Carreira Artística, roteirizado e estrelado pela cantora e atriz Manu Gavassi. Eu gostei tanto do que vi, que assisti a ele mais de uma vez a fim de ir depurando a minha apreciação do produto e absorver minúcias do que ele tratava e atacava.

Antes de eu me deter na avaliação do Programa de Proteção à Carreira Artística, eu quero e preciso fazer uma digressão e dizer o porquê de a Manu Gavassi ter me levado a escrever este artigo de hoje. Em primeiro lugar eu devo-lhes dizer que eu comecei a prestar atenção nessa artista na época em que ela participou do Big Borther Brasil, em 2020. Tempos depois ela lançou dois videoclipes que me agradaram bastante tanto pela estética visual como pela desenvoltura e postura da Manu Gavassi, com sua voz delicada e bem colocada, e pelas músicas em si. Os clipes em questão foram Bossa nossa e Gracinha. Foram esses trabalhos que me levaram a perceber que a jovem Manu Gavassi era e é uma cantora e uma artista que estava, naquele momento, contrariando, por assim dizer, o cenário musical brasileiro no qual jovens cantoras como ela - e também cantores - se encontravam empenhadas em entregar ao público músicas irrelevantes e descartáveis enquanto faziam uso de roupas mínimas que realçassem as suas bundas para que elas, rebolativas, pudessem descer até o chão exibindo seus "dotes artísticos". E, vendo  aqueles clipes, eu me perguntava: "Até quando será que essa garota vai aguentar manter essa postura e esse conceito musical e artístico numa realidade que abomina algo que seja mais elaborado e que não caiba nos reels e nem nos TikToks da vida?". Bom, a resposta a essa minha indagação chegou de modo impactante no mês passado com o lançamento do Programa de Proteção à Carreira Artística.

Não sei se você que está me lendo agora conhece e/ou já ouviu falar na Manu Gavassi e se  já assistiu ao vídeo Programa de Proteção à Carreira Artística. E, caso você não o tenha visto, procure vê-lo, porque não é apenas a respeito de estética musical que ele trata - mesmo que fosse só sobre isso ele seria muito relevante e interessante -; o videoclipe põe em debate e em questão o papel do artista e do fazer artístico numa realidade que praticamente determina o que é ser artista e qual tipo de arte esse artista deve produzir para que ele possa ser pelo menos visto no mundo virtual. Com seu clipe, Manu Gavassi trouxe à baila também a velha discussão do papel da arte e do artista numa sociedade; e aqueles conceitos de "arte engajada" e de "arte pela arte". Ela, além disso, me fez recordar o conceito de elucidação do filósofo Cornelius Castoriadis, que é o trabalho de "pensar o que se faz e saber o que se pensa".

Eu componho. E, como compositor, eu nutro um grande interesse pela produção musical alheia. A música é algo que muito me fascina. Música, como eu disse noutra ocasião, é um alimento, é uma necessidade vital para mim. Como todas as pessoas que gostam de música - sabe-se que o incensado poeta João Cabral de Melo Neto não gostava de música -, eu tenho minhas preferências tanto de estilos como de substância literal, digamos assim, porque eu aprecio fundamentalmente a música que é cantada; de modo que eu me importo com o que vai dito ao ritmo da melodia. E há muita coisa no mercado musical que, mesmo que eu aceite que tal produto musical existe porque há um público que o consome, para mim ele não passa de lixo cultural, de coisas inteiramente irrelevantes que em nada contribuem para o engrandecimento do cancioneiro nacional.

É claro que eu gosto de músicas alegres e solares; dessas que nos animam e nos jogam para cima. Mas eu não sou do tipo que enxerga a vida como se ela fosse uma incessante e festiva balada. Não, a vida não é só isso. A vida tem muitas coisas ruins. Eu aprecio também - e muito - músicas que me fazem pensar; que me ensinam algo;  que são como que crônicas de um dado acontecimento; músicas que denunciam dramas sociais; e de músicas que falam de reflexões existenciais. Eu não sou adepto de arte alienada. Daí por que, por exemplo, eu não consigo nutrir a menor simpatia por aquilo que eu chamo de "putaria music", que são músicas que só falam em sexo, bebedeiras intermináveis e farras sem fim: não me convidem para festas com essa trilha sonora porque eu não vou. 

Não concordo com a máxima que diz que "gosto não se discute"; tanto gosto se discute que é justamente por isso que existe a crítica; e o exercício crítico, o papel do crítico - e tem gente que odeia os críticos - é nos mostrar nuances que muitas vezes nos escapam na apreciação de determinadas coisas, principalmente quando somos consumidores passivos e acríticos, indivíduos que consomem um produto sem questionar e sem avaliar nada dele. 

A mim me parece que, no geral, aqui no Brasil, a figura do crítico não é benquista. Uns e outros só aceitam a crítica e a avaliação se elas forem positivas - eu nunca esqueci a celeuma que levou Zeca Camargo a ser processado pela família do cantor Cristiano Araújo; e, mais recentemente, os ataques sofridos pela antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz, porque não admitiram que uma "branca" escrevesse o que ela escreveu sobre a cantora "negra" Beyoncé: se Lilia fosse "negra" será que o que ela escreveu sobre a artista norte-americana não seria atacado? Duvido muito disso -; se as críticas são negativas, o crítico é chamado de elitista, de inimigo da pluralidade, de defensor de grupinhos, de irrelevante, de zé-ninguém e de frustrado - frustrado é o ataque considerado mais pesado.

Enquanto eu ia acompanhando o desenrolar de Programa de Proteção à Carreira Artística, no qual Manu Gavassi atua como ela mesma e como uma implacável e autoritária funcionária da empresa que "protege" artistas, inevitavelmente foram chegando à minha mente várias figurinhas e personagens tidos como comercialmente relevantes - acentue-se a palavra comercialmente - no atual cenário musical brasileiro, que eu vejo como inteiramente irrelevantes e descartáveis artisticamente falando. Eu recordei também o caso do processo já citado do Zeca Camargo e o desabafo feito pelo cantor Johnny Hooker, em 2022, ocasião em que ele lamentou o fato de sua música autoral não estar sendo muito procurada nas plataformas digitais. E eu  pensei no quanto Manu Gavassi foi corajosa ao roteirizar - a mim me parece que ela também vai longe como roteirista - e protagonizar um vídeo no qual fez críticas tão ácidas e cruas e tão pertinentes à realidade musical ora dominante, ao mesmo tempo em que fez uma autocrítica e expôs seus questionamentos como artista e como cantora e compositora que já pensou em desistir da carreira. O vídeo é um potente tapa na cara de uns e outros "artistas" que brotam por aí como ervas daninhas, que não possuem lastro artístico nenhum e que resolvem ser atrizes e cantoras  de uma hora para outra  por acreditarem que a exposição que tiveram num programa de TV e o número de seguidores nas redes sociais que eles passaram a possuir por causa disso, legitimam a sua "carreira artística".

Sabiamente Manu Gavassi não deu nomes aos bois no clipe Programa de Proteção à Carreira Artística, porque, além de se livrar de processos, ela certamente inferiu que, qualquer pessoa conhecedora do atual panorama musical brasileiro, inevitavelmente deduziria para quem ela estava apontando e/ou descrevendo. E, para que não houvesse dúvida de que Programa de Proteção à Carreira Artística não estreara somente como uma espécie de manifesto estético, ela nos brindou com mais alguns trabalhos muito bem pensados e elaborados: os clipes Sexo, poder e arte, Pronta pra desagradar e 31.

Não acredito que Programa de Proteção à Carreira Artística impactará de alguma forma e interferirá o mínimo que seja no modus operandi da fabricação de cantores e cantoras neste país. Nós continuaremos vendo surgir por aí "irrelevâncias importantes" que permanecerão mostrando a bunda - pelo menos enquanto eles e elas forem jovens e bonitos - como complementos e atrativos para suas músicas e "carreiras artísticas" e entoando canções com letras cheias de nada. Seja como for, me anima e me conforta saber que existem por aí também artistas genuínos e talentosos, como Manu Gavassi, que não são reféns do algoritmo e nem da pressão do tempo, que pensam e questionam o seu fazer artístico e que não estão dispostos a ficar com a bunda empinada e rebolativa para subir nos Spotifis da vida.

2 comentários:

  1. Obrigada por falar da manu gavassi. Ela tem muito talento e é multifacetada. Ela vai abrir uma produtora agora para fazer áudio visual.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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