19 de outubro de 2024

As cidades indesejadas

 Por Sierra



Imagem: iStock/Gladston Barreto
Erguidas em terrenos os mais variados, as "cidades indesejadas" marcam de modo inescapável a imensa paisagem urbana brasileira. E, aqui e ali, elas vão avançando de modo quase que incessante sobre morros e encostas, mas também erguidas sobre palafitas à beira de rios e mesmo sob viadutos, entre outros lugares, porque, assim como ocorre no mundo animal, os seres humanos têm uma enorme necessidade de buscar um local onde se abrigar e se proteger das intempéries e de outras ameaças à sua integridade física

Normalmente, aqui neste país, as questões que dizem respeito às cidades e ao urbanismo só ganham pautas e despertam o interesse do grande público a cada quatro anos, porque é de quatro em quatro anos que ocorrem eleições para escolha de prefeitos e vereadores.

Olhar  criticamente para os cenários urbanos somente em lapsos temporais de um quadriênio é uma de nossas tragédias como sociedade. Os problemas de uma cidade, as precariedades de uma cidade, os transtornos de uma cidade, as deficiências de uma cidade, as demandas de uma cidade, os desafios de uma cidade, os planejamentos de uma cidade não podem e não devem ser expostos e discutidos somente a cada quatro anos

As cidades, como organismos dinâmicos, sofrem, por vezes, alterações consideráveis, quer seja em suas fisionomias propriamente dita, quer seja no modo como os seus habitantes lidam com elas. Você que agora está lendo este artigo já ouviu, eu presumo, falar em  "cidades fantasmas" ou mesmo em "bairros fantasmas". Esses lugares existem sim. Esses espaços urbanos revelam quão imperiosa pode ser uma realidade que provoca a evasão e abandono de certos territórios citadinos.

E por que isso acontece? O que leva pessoas a deixarem de ocupar tal e tal lugar de uma cidade temporária ou definitivamente? Várias podem ser as causas que provocam isso: a ocorrência de um desastre natural; o aumento expressivo dos preços dos aluguéis ou de compra e venda de imóveis; a carência e/ou grande falta de itens considerados básicos para as coisas da vida prática, como hospitais, escolas, supermercados, bancos, creches e transporte público de passageiros, abastecimento de água e de energia elétrica; conflitos bélicos; acidentes nucleares; afundamento do solo; disputas entre grupos criminosos; etc. 

E o que dizer daqueles pedaços da cidade - as muito conhecidas favelas que, de uns tempos para cá, uns e outros passaram a chamar de comunidades - que o poder público municipal e o Estado parecem não querer enxergar ou viabilizar? Por que essa manutenção da inviabilidade das favelas, territórios esses que eu chamo de "cidade à parte" e de "cidade indesejada"? Nesses lugares permanecem - para usar uma expressão do arquiteto e urbanista Lucio Costa - as "marcas tenazes do pauperismo"; quais sejam: o abandono, o descaso e a exclusão.

Por onde se ande por este país imenso nós nos deparamos com "cidades indesejadas" com os mais variados aspectos e dimensões - algumas delas são imensas, gigantescas, deixando mais do que evidente que é impossível não enxergá-las e fazer de conta que elas não existem. E a existência de tais espaços urbanos prenhes de necessidades de toda ordem revela que a expansão urbanística dos nossos núcleos citadinos historicamente não conseguiu tirar de nossas cidades o seu fundamento de exclusão dos mais pobres  e vulneráveis; em essência as nossas urbs - mesmo as que foram planejadas,  como Brasília e Belo Horizonte - empreenderam um percurso e um destino, ao longo de pouco mais de 500 anos de implantação de um processo civilizador europeu, que primaram em fazer delas espaços que, por razões de ordem racial, preconceituosa e elitista, não poderiam e não tinham por que, digamos assim, abrigar e oferecer conforto e dignidade a "todo tipo de gente". Daí por que tudo isso, em par com os fossos estabelecidos pelas desigualdades socioeconômicas - reflexo, também, eu não duvido disso, do nosso passado escravagista -, viram nascer, crescer e se multiplicar as ditas "cidades indesejadas".

Erguidas em terrenos os mais variados, as "cidades indesejadas" marcam de modo inescapável a imensa paisagem urbana brasileira. E, aqui e ali, elas vão avançando de modo quase que incessante sobre morros e encostas, mas também erguidas sobre palafitas à beira de rios e mesmo sob viadutos, entre outros lugares, porque, assim como ocorre no mundo animal, os seres humanos têm uma enorme necessidade de buscar um local onde se abrigar e se proteger das intempéries e de outras ameaças à sua integridade física.

A crise habitacional que assola este país, a bem da verdade, remonta há pelo menos 136 anos, se tomarmos como referência o ano de 1888, quando foi decretada a abolição da escravatura e milhares de negros foram largados à própria sorte em várias de nossas cidades. E essa realidade de déficit habitacional continua muito acentuada porque a demanda permanece bastante alta.

A forma, a estrutura, o espaço ocupado e a dimensão das "cidades indesejadas" variam; o que não se altera nelas é o drama social que esmaga a dignidade de todos e de cada um de seus habitantes que perseguem o ideal de ser vistos como cidadãos de fato e não como meros números de estatísticas.

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