12 de julho de 2025

O Recife que resiste ao abandono ou Como a cena cultural de uma cidade oxigena e mantém vivo o seu centro urbano

 Por Sierra


Ai que saudade do meu Recife,

da minha gente que ficou por lá.

Quando eu pensava, chorava, falava, dizia bobagem,

marcava viagem mas não resolvia se ia.

Vou-me embora.

Vou-me embora.

Vou-me embora pra lá.

                                                        Frevo nº 2. Antônio Maria 


Fotos: Arquivo do Autor
Flagrante da Rua da Roda: faça chuva ou faça sol, com ou sem crise econômica e pandemia, esse logradouro, situado no bairro de Santo Antônio, segue sendo um dos points mais movimentados da cena artística, cultural e etílica da área central do Recife. Só não vai à Rua da Roda quem já morreu - embora haja quem acredite que almas de outro mundo também vagueiem por lá para tomar umas e outras enquanto leem alguns livros de suas preferências


Há vários Recifes dentro de mim. Vários. Há o Recife que eu, então um menino que, com 8, 9 anos de idade, era levado por sua mãe, aos sábados, para a Rua Duque de Caxias, onde ela trabalhava na loja Cattan, principiei a conhecer. Há o Recife que eu, já adulto, passei a trilhar quando, também saindo de Abreu e Lima, ia trabalhar numa livraria e papelaria na Rua Barão de Souza Leão, no bairro de Boa Viagem. Há o Recife que eu comecei a investigar ao ingressar no Bacharelado em História da Universidade Federal de Pernambuco, na segunda metade da década de 1990. Há o Recife que eu encontrei lendo obras dos seus escritores,  historiadores, geógrafos, sociólogos, antropólogos, educadores e poetas: Gilberto Freyre, Josué de Castro, José Antônio Gonsalves de Mello, Fernando Pio, Flávio Guerra, Tadeu Rocha, Carlos Pena Filho, Manuel Bandeira, Mauro Mota, João Cabral de Melo Neto, Edson Nery da Fonseca, Antônio Maria, Jomard Muniz de Britto, Nilo Pereira, Vamireh Chacon, Paulo Freire, Leduar de Assis Rocha, Paulo Cavalcanti, Berguedof Elliot, Aníbal Fernandes, Mário Sette, Joaquim Cardozo, José Luiz Mota Menezes e Antonio Paulo Rezende. Há o Recife que eu vi nos filmes de Kátia Mesel, Hilton Lacerda, Cláudio Assis, Kleber Mendonça Filho, Lírio Ferreira, Paulo Caldas e Pedro Severien. Há o Recife que me embalou com a música de Nelson Ferreira, Capiba, Getúlio Cavalcanti, Lenine, Chico Science, Fred Zero Quatro, Canibal, Reginaldo Rossi e Alceu Valença. Há o Recife dos museus, galerias de arte, cinemas, teatros, sebos e livrarias que eu frequentei e frequento. Há o Recife das lojas, mercados, lanchonetes e restaurantes dos quais eu me sirvo. E há o Recife que eu percorro olhando para as suas ruas e avenidas, becos, pontes, parques, praças, cais e prédios testemunhos de acontecimentos de muito tempo atrás, ladeados por novas construções e transformações de cenários e paisagens num efervescente movimento de gentrificação que, aqui e ali, vai dando outras faces à cidade e, de alguma forma, sepultando pedaços consideráveis de sua memória urbana, memória essa que em nós outros se mistura  a aspectos intangíveis e impalpáveis que nos são muito caros, porque estão profundamente enraizados em nossas memórias íntima, afetiva e sentimental.





Rennat Said e José Rodrigues: os autores do livro que é uma verdadeira homenagem a Liêdo Maranhão













Não é de hoje que o núcleo primitivo do Recife, constituído pelos bairros do Recife Antigo, Santo Antônio, São José e Boa Vista, vem atravessando e enfrentando uma realidaede de esvaziamento, principalmente no que diz respeito às suas atividades comerciais. E isso não é uma realidade que marca apenas o centro do Recife; algumas capitais que eu conheço, como João Pessoa, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Natal, Aracaju e Salvador também estão enfrentando o mesmo problema. E um centro de cidade esvaziado de suas atividades econômicas e comerciais costuma assistir ao declíno e mesmo ao desaparecimento de outras que contribuem para que uma cidade se mantenha viva e pulsante, que são as atividades culturais, uma vez que, com a diminuição da circulação de pessoas, normalmente ocorre uma retração dos eventos nesse setor.


Severino Augusto, uma das figuras emblemáticas da Rua da Roda




Da esquerda para a direita: José Ítalo, Rennat Said, Turflay e José Rodrigues




O poeta Mauro Mota estava lá caladinho e observando todo o movimento


Cordel e xilogravura


 Banner do lançamento do livro em homenagem ao centenário de nascimento de Liêdo Maranhão, o fodão do bairro de São José

Não existe somente uma explicação para o fato de centros antigos de cidades como o Recife terem perdido o vigor e o brilho vivenciados em outros tempos. Esse movimento vem ocorrendo há mais de dez anos em razão de vários fatores, alguns deles ligados a mudanças comportamentais estimuladas pelo convívio com a disseminação das tecnologias eletrônicas ligadas à internet, algo que o período de isolamento social provocado pela pandemia de covid-19 só fez acentuar. De posse de um smaphone com acesso ao mundo virtual e dinheiro na conta ou um cartão de crédito, o indivíduo compra de comida pronta a roupas e calçados, faz transações bancárias, assiste a filmes e ouve músicas. Ou seja, ele faz tudo isso e muito mais sem precisar sair de sua casa, de modo que, "ir à cidade", como se dizia em décadas atrás, só faz sentido hoje para pessoas que, assim como eu, mantêm uma ligação muito forte com os bairros centrais da capital pernambucana e que os procuram não somente para arruar e flanar, mas também para desfrutar do seu comércio que resiste de pé e das suas cenas artísticas e culturais que se recusam terminantemente a entregar os pontos.




Roman Maranhão e José Rodrigues




Eu garanti o meu exemplar autografado e, claro, a fotinha para exibir aqui






Paralelo aos esforços da Prefeitura Municipal e de instituições federais e estaduais para fazer com que o núcleo primitivo do Recife permaneça vivo e de alguma maneira atraente para pessoas que querem apreciar a vida para além do mundo virtual - e eu me refiro aqui aos cinemas, teatros e museus, como o Cinema São Luiz, o Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, a Caixa Cultural, etc. -, tem ocorrido ações de pessoas que, sem contar com incentivo e apoio financeiro de quem quer que seja, fazem a coisa acontecer. 

Na manhã do sábado passado eu saí daqui, desta Ilha de Itamaracá onde eu moro, e tomei o rumo do Recife para prestigiar um desses esforços de manutenção e/ou revitalização artística e cultural do centro do Recife.












Turflay em ação no microfone


Tendo como cenário e palco a Rua da Roda, no bairro de Santo Antônio, uma rua que é ela mesma um sopro vigoroso de resistência e de vitalidade por abrigar , de um lado, bares muito populares e, de outro, sebos que estão ali há muitos anos, aconteceu o envento No Pé da Parede, apresentado pela Cia do Cordel, do qual eu tomei conhecimento por meio do sebista José Ítalo que, em meio a outros, comercializa livros na calçada da Avenida Guararapes, que corre paralela à Rua da Roda.


Canário do Império: um artista de múltiplos talentos. Eita cabra danado!








Glauco da Rural  (o apelido se deve porque ele mantém um sebo na Universidade Federal Rural de Pernambuco) e José Rodrigues





Contando com declamação de poesias e cantoria sob uma tenda que foi montada junto à estátua de Mauro Mota e a exibição de literatura de cordel e xilogravuras, o evento que, infelizmente - e, talvez, devido à estratégia de divulgação - contou com um público muito pequeno para prestigiá-lo, foi cenário, também, para o lançamento de um livro que, tanto quanto um  relato de admiradores, é uma celebração do centenário de nascimento de um dos pernambucanos que mais amou o seu torrão natal: o recifense multiplamente talentoso que foi Liêdo Maranhão. Escrito por Rennat Said e José Rodrigues, dois flâneurs igualmente muito amantes das coisas do Recife, Liêdo Maranhão: o pesquisador do povo invisível veio a lume à custa dos seus próprios autores, o que, por si só, diz muito do empenho deles de fazer a roda da cultura e das manifestações artísticas girar.






Rennat Said aproveitou a ocasião para divulgar também outra de suas obras: o livro O Recife em carne e osso - Um inventário humano e sensível das ruas do Recife 



Pense num cabra rochedo que é esse José Ítalo










Eu não fui ao No Pé da Parede tão somente para prestigiar o evento e garantir o meu exemplar autografado do livro da dupla Rodrigues-Said. Eu saí daqui de casa disposto a ir apoiar e a engrossar o coro  e fortalecer o cordão daquelas pessoas que organizaram o evento, porque o Recife que me interessa e me atrai não é apenas o Recife apreendido livrescamente e o Recife de pedra e cal. Eu sou igualmente muito interessado por tudo aquilo que faz a vida artística e cultural acontecer no Recife; e foi por isso também que eu fui à Rua da Roda no sábado passado; eu fui até lá para conhecer o pessoal, me enturmar e, quiçá, começar a me juntar aos que se reúnem para manter o centro do Recife vivo.














Ali, na Rua da Roda, onde parte da vida cultural do Recife pulsa e ferve, eu acompanhei a apresentação de um talentoso e vibrante Canário do Império. Vi figuras como o Glauco da Rural e o próprio José Ítalo, dois sebistas, e o advogado e poeta Turflay pegarem o microfone para fazerem declamações. Conheci Roman Maranhão, que foi até lá saudar os autores do livro sobre o pai dele. Troquei figurinhas com Severino Augusto, do sebo Augusto Livros que, há 44 anos, está presente naquele espaço. Enfim, foi uma dessas experiências que se guardam para o resto da vida.

















Tem literatura de cordel? Tem, sim senhor!


Diferentemente do que muitos dizem, o centro do Recife não está morto. O centro do Recife permanece vivo porque nele trabalham, circulam, passeiam e militam indivíduos que buscam, celebram, vivenciam, louvam e amam o Recife e as coisas do Recife como amam e celebram a si mesmos.

3 comentários:

  1. Vibro de emoção por saber dessa aglomeração de pessoas lindas.
    O evento acontece com que regularidade??
    Como posso ser avisada sobre esse acontecimento??

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    1. Bom dia! Como eu disse no texto, eu quero me enturmar com o pessoal. Quando for ocorrer outra edição e eu tomar conhecimento, divulgarei no meu Instagram @sierramrmonster. Obrigado!

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  2. Guerreiros e guerreiras da cultura. Xero imenso pra essa comunidade linda, que espero ser parceira brevemente.

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